quarta-feira, 22 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25551: Historiografia da presença portuguesa em África (424): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
O período versado neste apontamento, súmula da primeira e única história da Guiné existente corresponde ao período pós-Restauração, a presença portuguesa centrava-se em Cacheu e Bissau, teve companhias majestáticas, foram todas rapidamente ao fundo, fez-se fortaleza em Bissau, a terceira ainda está de pé. Como diz abertamente João Barreto, até ao trabalho admirável de Honório Pereira Barreto, a Guiné está praticamente esquecida, pesa o comércio estrangeiro, os franceses e ingleses afrontam-nos, a França pretendeu mesmo fazer uma fortaleza em Bissau, a Grã-Bretanha queria mais terreno entre a Gâmbia e a Serra Leoa. Barreto relata a verdade dos factos, uma decadência em que a própria tropa era fretada entre criminosos e degredados. Convém não esquecer que a Guiné até ao século XIX vivia primordialmente do comércio do resgate, o mesmo é dizer do negócio da escravatura.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (3)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Este distinto facultativo viveu os últimos anos da sua vida em Lisboa, é praticamente certo e seguro que foi aqui que investigou bastante documentação e consultou ou adquiriu obras de referência. Foi cuidadosíssimo na diacronia, inicia o seu trabalho com o reconhecimento da Costa da Guiné, o processo de colonização de Cabo Verde e o modo de instalação no litoral da Guiné, deu-nos um quadro do domínio filipino e as suas dramáticas consequências, veio depois a resposta de D. João IV, numa tentativa de consolidar o pouco que nos ficara da Senegâmbia; Barreto também nos presenteia com o quadro dos estabelecimentos estrangeiros na envolvente. E assim chegamos à fundação da Capitania de Bissau e ao aparecimento da segunda Companhia de Cacheu.

Refere o autor que por volta de 1685 o porto de Bissau era um centro comercial de relativa importância, para onde começavam a convergir os produtos agrícolas e escravos do interior; a sua pequena população era constituída, além dos indígenas por comerciantes portugueses e alguns estrangeiros. Bissau principiara a formar-se nos fins do século XVI, aqui se fixaram alguns moradores de Cabo Verde, que tinham ao seu serviço um certo número de escravos, os seus serviçais passaram a ser conhecidos pela designação de Grumetes, designação que mais tarde se tornou extensiva a todos os naturais que, convertidos ao cristianismo, tivessem adotado nomes e apelidos portugueses. Não havia em Bissau um representante oficial, embora a população vivesse sob a bandeira portuguesa, e por essa razão os mercadores franceses envidaram esforços para ali construir uma fortaleza, tentativa que foi combatida pelo régulo do chão Papel. Em 1687, as autoridades portuguesas instalaram-se no porto de Bissau com o objetivo de a defender contra as pretensões dos franceses. Encontrou-se um expediente para pagar as obras da fortaleza, criou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde (recorde-se que a primeira Companhia de Cacheu tivera vida efémera). É um período em que, graças à presença do bispo, Frei Vitoriano da Costa, se estabelece um bom relacionamento com o régulo local, da etnia Papel, que aceitou batizar-se. Bissau passa a ter Capitão-Mor, a Guiné tem duas Capitanias, a de Cacheu e Bissau, na época Bissau fica subordinada a Cacheu. Constrói-se a primeira fortaleza de Bissau e começaram as hostilidades das populações da ilha. Haverá novas tentativas francesas de se apoderarem em Bissau, todas fracassaram, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde fracassa, extingue-se a Capitania de Bissau e a fortaleza degrada-se. Vive-se um período de decadência.

É nisto que o Governo de D. José I se interessa pela ocupação do rio Geba, decide-se criação de nova fortaleza em Bissau, o régulo inicialmente mostra-se agradado pela ideia, mas cedo começaram as hostilidades. A resposta de Lisboa foi enviar mais tropa, não faltaram criminosos e indesejáveis. As obras da nova fortaleza custaram muitas vidas, segundo João Barreto mais de mil vidas, vitimadas por doenças locais.

As companhias que iam aparecendo foram todas votadas ao insucesso, depois das de Cacheu, deu-se a dissolução da Companhia do Grão-Pará e Maranhão. E assim, em 1783, decidiu o Governo Central arrendar a cobrança dos rendimentos públicos a uma empresa particular, a Sociedade do Comércio das Ilhas de Cabo Verde. São tempos em que a nossa soberania na Costa da Guiné se circunscreve aos estabelecimentos de Ziguinchor, Cacheu, Farim, Bissau e Geba. Como escreve Barreto, ninguém mais voltara a pensar na ocupação do rio de Bolola, e foi assim que se extinguiu praticamente a nossa influência a Sul de Bissau. Iam-se estabelecendo colónias autónomas, sobretudo de negreiros.

Enquanto na região do Casamansa a França procurava instalar-se, os ingleses, que já tinham presença na Serra Leoa e no rio Gâmbia quiseram apoderar-se de Bolama, em 1792 desembarcou nesta ilha uma estranha expedição composta por 275 ingleses, a pretensão era criar uma colónia agrícola, comprar terrenos, empregar neles serviçais, livremente assalariados. Mas tudo correu mal, primeiro os indígenas de Bolama foram hostis, roubaram e raptaram, a maior parte dos expedicionários resolveram abandonar a empresa e regressar a Inglaterra, ficaram poucos ingleses que foram morrendo aos poucos. Mas a Inglaterra não desistiu de tomar Bolama, o Governo veio a alegar os seus direitos à ilha, fundamentando-se na tentativa da colónia que era dirigida por Philip Beaver e nos contratos feitos por este com os régulos de Canhabaque e Guinala.

Estamos chegados ao século XIX e João Barreto escreve:
“Tínhamos assente definitivamente a soberania entre os rios de Casamansa e de Bolola, com duas capitanias: em Cacheu e Bissau; mas os seus comandantes tinham de sustentar uma luta permanente contra três adversários: os indígenas vizinhos, as dificuldades financeiras e a indisciplina dos comerciantes e dos próprios militares a quem estava confiada a missão de manter a ordem.”

E conta-nos peripécias da pouca abonatória desordem na Capitania de Bissau:
“O Capitão José António Pinto, que tomara conta da Capitania em 4 de maio de 1793, vira-se obrigado a fugir para Geba, por causa da insubordinação dos soldados que o acusavam de violências. Seguiu-se-lhe, em 1799, o Capitão João das Neves Leão e pouco depois António Cardoso Faria, que em 1803 era vítima de um envenenamento. Para acudir ao abandono em que a Praça se encontrava, o Governo da metrópole convidou Manuel Pinto de Gouvêa, que já servira em Cacheu, a tomar conta da Capitania de Bissau.
O novo comandante embarcou em fevereiro de 1805, acompanhado de 150 condenados retirados do Limoeiro de Lisboa, aos quais, na vila da Praia se juntaram mais 80 criminosos de Cabo Verde. Com tais homens foi organizada a guarnição militar de Bissau, porque não havia soldados que se dispusessem a ir voluntariamente suportar as inclemências do clima, com a agravante de não receberem os seus soldos em dia.”


E João Barreto passa em revista uma série de revoltas em Bissau e Cacheu; começaram as restrições num comércio de escravos, minguavam os recursos financeiros, Bissau e Cacheu não ficaram de fora das lutas entre liberais e miguelistas. Vai ser criado um posto em Bolama, dá-se a ocupação da ilha das Galinhas, a Guiné conhece uma restruturação administrativa: implanta-se um regime de Prefeitura e o distrito da Guiné foi convertido a uma comarca, com sede em Bissau. 

É neste contexto de desmotivação, falta de recursos, de um quase total abandono missionário, de rivalidades até entre governadores, que Honório Barreto ascende ao comando, dá-se a invasão dos franceses no Casamansa, o governador natural da Guiné começa a adquirir parcelas que oferece à coroa portuguesa, a revolta dos Papéis é permanente, um presidente norte-americano profere sentença sobre Bolama a nosso favor, e eis que se dá o massacre de uma coluna de operações em 1878, e o Governo Central decretou a autonomia da província da Guiné, torna-se província.
Planta da Praça de S. José de Bissau em 1796
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Nota do editor

Último post da série de 15 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25528: Historiografia da presença portuguesa em África (423): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

Sabe-se que havia uma grande paliçada a dividir Bissau entre a Fortaleza mais os europeus e a população nativa.
Na imagem da planta da Fortaleza não temos a marcação dessa paliçada feita em adobe.

Valdemar Queiroz