sábado, 25 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25560: Os nossos seres, saberes e lazeres (630): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (155): Em dia de muita chuva, a vagabundear pelas imagens que aguardam apeadeiro (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Era uma chuva impenitente, deu-me a medorra, resolvi remexer no passado, em objetos inertes que mereciam passar a público, era uma tarde chuvosa que encaminhou para esta partilha de imagens, um trecho de um admirável romance de José Cardoso Pires, uma viagem relâmpago à igreja de Arroios, onde o meu pai foi sacristão, e uma madrinha de registo, conhecida pela Isaura dos caixões, tinha a sua agência funerária mesmo em frente; ao contrário de muitos, acho um templo acolhedor e propício à devoção, mas não escondo que a minha eleição vai para o cruzeiro que nos acolhe no adro; e tinha depois estas peças soltas de leituras e viagens, aproveitei para inserir no blogue a cerimónia da entrega das boinas aos fuzileiros guineenses da DFE 21, estava-se em Bolama e era 27 de maio de 1970; e gostei muito de voltar à igreja de Nossa Senhora da Pena, templo seiscentista que resistiu ao terramoto, ao contrário da capelinha do mesmo nome, onde se misturaram as ossadas de muita gente, incluíndo as de Luís de Camões.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (155):
Em dia de muita chuva, a vagabundear pelas imagens que aguardam apeadeiro


Mário Beja Santos

José Cardoso Pires

Toca o telefone, é um amigo que trabalha numa rádio local, passou-lhe pela cabeça fazer um concurso sobre o mais belo trecho literário que abra um qualquer romance em língua portuguesa, pergunta se tenho uma resposta rápida, respondo que seria uma leviandade não ficar aqui um tempo a pensar sobre um texto que eu pudesse considerar culminante, que responderia dentro de uma hora, como aconteceu. Disse-lhe que adorava os primeiros parágrafos de um dos romances de José Cardoso Pires, Alexandra Alpha, que teve a sua primeira edição em 1987. E falei-lhe dos três primeiros parágrafos iniciais:

“O anjo sobrevoou a cidade às 12.00-12.27 (hora solar). Era louro e de asas vermelhas e tinha um belo rosto triangular em nada semelhante ao dos querubins da igreja. Planou em lentas e tranquilas curvas por cima dos arranha-céus das praias que contornavam a cidade, percorrendo com a sua sombra.

Foi escrito: a aparição teve lugar ao sétimo dia de um mês sobre todos radioso na linha do zénite, sol a prumo. Exata e inolvidável, exatíssima, pôs em alvoroço as multidões de banhistas que formigavam no areal (aquela era a estação do Sol e da festa do corpo) e suspendeu o trânsito nas avenidas da beira-mar, vogando, vogando sempre.

De súbito imobilizou-se, como que numa hesitação. E nesse instante percebeu-se que as asas rubras se tinham rasgado e que delas se levantavam farrapos como labaredas ao ondular do vento, e logo, veloz, cada vez mais veloz, a aparição alada despenhou-se das alturas celestiais, batida pelo Sol louco do meio-dia, e veio estatelar-se nuns rochedos do litoral conhecidos por Ponta do Arpoador. Um anjo cego, houve quem o declarasse. Outros, os banhistas que o viram a passar a caminho dos rochedos fatais, afirmaram que trazia uns olhos brancos de mensageiro suicida. Olhos brancos?”


Ainda hoje estou para saber o resultado do concurso, mas continuo ufano com a minha escolha, é prosa pirotécnica, digam o que disserem.

Fora ali pertinho comprar uns CDs com música de câmara executada por quartetos célebres nos anos 1960 e 1970. Decidi entrar na igreja de Arroios onde o meu pai foi sacristão e a minha madrinha de registo, ali mesmo em frente, era detentora de uma agência funerária. Este cruzeiro que está agora abrigado no adro da igreja, data de 1517, tem pormenores do tardo-gótico mas é manifestamente renascentista, justificadamente monumento nacional.
Outro pormenor do cruzeiro no adro da igreja de Arroios
É uma madona recente, talvez uma padroeira da comunidade luso-africana
Inaugurada em 1972, talvez pela sua enorme carga de cimento, todo ele à vista, foi criticada pelo seu brutalismo. Encontro-lhe harmonia e uma atmosfera espiritual enraizada. Todas as igrejas inauguradas depois da igreja de Fátima, obra de Pardal Monteiro e vitrais de Almada Negreiros, sofreram contestação, não sei exatamente o que é que os crentes esperam dos novos templos, como se eles não se tivessem de identificar com as correntes estéticas e com a viagem que as ideias fazem pelo mundo fora.
É uma presença obrigatória, Santo António é o santo dos santos, ninguém rivaliza com ele, confesso que a imagem é amorável, o santo é um jovem bonitão e o Menino parece olhá-lo com admiração e apreço. Creio que a imagem é proveniente da velha igreja.
Um dia encontrei esta fotografia num livro dedicado à obra arquitetónica de Luís Vassalo Rosa, foi capitão miliciano e comandou a CART 1661, sediada em Porto Gole, Enxalé e Bissá. Vassalo Rosa, que aqui vemos com o Geba ao fundo, adoeceu gravemente e regressou a Lisboa bastante cedo. Procurei falar com ele, atendeu-me amavelmente, não quis voltar ao passado.
Dera-me naquela tarde para ir visitar os Jardins do Torel, resolvi cirandar pelo Campo dos Mártires da Pátria e ver esta parte da Lisboa medieval como estava a ser recuperada, ao descer a calçada de Santana entrei na igreja de Nossa Senhora da Pena, obra do século XVII que resistiu ao terramoto, ao contrário da capela do mesmo nome, que derrocou, lá se misturaram os ossos de Luís de Camões. Estava numa semi-escuridão mas o seu altar e a sua padroeira resplandeciam.
Há imagens do fotógrafo Alfredo Cunha que têm simultaneamente algo de pungente e terno, será o caso de, no fim do império, quem regressou apressadamente de Angola e Moçambique viveu horas muito amargas, sabe-se lá o que vai na cabeça deste pai e desta filha rodeados dos seus últimos bens que os acompanharam na fuga.
“O essencial destas fotografias ocupa-se das unidades militares que, em abril de 1974, ocuparam as praças e as ruas da Baixa de Lisboa, do Município ao Terreiro do Paço, um dos raros locais ou momentos em que se chegou perto do afrontamento militar violento. Não surge ali glória militar, ferocidade revolucionária ou raiva policial. Parece um encontro, mais do que um confronto. Sabemos que ali se esteve a segundos, metros e gestos de violência sangrenta. Apesar disso, é surpreendente aquela paz, aquela doce serenidade de quem faz um trabalho, de quem executa uma tarefa.” – António Barreto.
Esta fotografia foi-me oferecida pelo Dr. João Loureiro, que passará à História por ter publicado assombrosos livros com bilhetes postais das parcelas do império. Num agradável encontro, ofereceu-me várias das suas recordações, entre elas esta fotografia onde se lê no verso: “Bolama, 27 de maio de 1970, cerimónia da entrega das boinas aos guineenses do DFE 21”. 
Creio que faltava esta imagem no nosso blogue de gente que veio a sofrer muito, anos depois.
Sempre que posso fotografo selos da Guiné onde reencontro seres humanos tão semelhantes àqueles que guardo no coração. Estes selos de 50 centavos do tocador de Korá estão destinados a mestre Braima Galissá, um amigo que exige estar sempre presente, e como tocador, nos lançamentos de livros sobre a Guiné.

Dou como muito proveitoso este meu dia chuvoso que me reteve em meditação pelas imagens, diga-se em abono da verdade, bem desconexas, que aguardavam um acaso para que eu cosesse o puzzle, como aconteceu.

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Nota do editor

Último post da série de 18 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25539: Os nossos seres, saberes e lazeres (629): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (154): Lembranças de Manuel de Brito e da Galeria 111 (4) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Valdemar Silva disse...

Conheci a antiga igreja de S. Jorge de Arroios (1830-1969), anterior a esta agora existente inaugurada em 1972.
O Cruzeiro de Arroios, na entrada da igreja, estava à entrada mas dentro da igreja antiga.
Na pintura de "A Sopa de Arroios", de Domingos Sequeira, de 1813, o Cruzeiro está no meio do Largo de Arroios dentro de uma pequena casa envidraçada, mas não se vê a igreja por só ter sido construída em 1830.
Anexa à antiga igreja, não sei se mantém nesta, funcionava a JOC que juntava muita rapaziada em diversas actividades e eu jogava lá ténis de mesa na equipa e lembro-me de aparecer por lá, ou à porta, os filhos de Jorge Sena, que moravam próximo e o pai estava exiliado no Brasil.

Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

Que diabo se passa com as fotografias, pelo menos com duas delas?! Uma mostra aquilo que parece ser a borda de uma toalha de mesa, mas a legenda diz que nela vemos um capitão com o Geba ao fundo!!! Outra mostra uma calçada de uma rua e uns pés que parecem ser de militares, enquanto a legenda cita António Barreto dizendo: «O essencial destas fotografias ocupa-se das unidades militares que, em abril de 1974, ocuparam as praças e as ruas da Baixa de Lisboa(…)»! Digam-me que estou com alucinações e só eu é que vejo isto.

Vivi durante cerca de quatro anos entre a Alameda D. Afonso Henriques e o Mercado de Arroios e, por isso, conheci bem toda a zona envolvente, incluindo a igreja (nova) e o cruzeiro de Arroios. Diz o Mário Beja Santos que o cruzeiro «tem pormenores do tardo-gótico mas é manifestamente renascentista». Estou em total desacordo. Para mim, o cruzeiro é manifestamente tardo-gótico, na sua versão nacional que é o estilo manuelino, e não tem pormenores renascentistas nenhuns. É um cruzeiro 100% manuelino. Tão manuelino é o cruzeiro, que até tem cordas esculpidas envolvendo as pontas dos braços da cruz.

Uma rápida pesquisa na internet sugere-me que a imagem da santa de pele escura que se vê numa das fotografias deve ser de Santa Ifigénia, que era etíope. Como diz o Beja Santos, deve ser «uma padroeira da comunidade luso-africana».