domingo, 19 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25540: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (18): "Mas a senhora, quem é?"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Mas a senhora, quem é?

Passei frente à loja onde se deu o crime e lembrei-me… - Mataram o meu filho, Sr. Doutor, e ele está aí. Isto dizia a voz rouca do outro lado da linha.

Pousei o telefone e desci imediatamente à urgência, que ficava no rés do chão. A primeira maca, que vi no corredor, tinha um corpo coberto com um lençol.

Levantei a ponta do lençol e vi logo que era ele, o filho do Sr. José. Tinha um botão de sangue coalhado acima da clavícula na parte esquerda da base do pescoço.

O Sr. José foi porteiro do prédio onde vivi no tempo em que os meus filhos eram crianças. Ainda hoje lá permanece a mesa em que ele sentava, muitas vezes, o mais novo.

Viviam, ele e a D. Amélia, numa casinha rasteira escondida numa das ilhas da rua do Bonjardim.

Muitas vezes os encontrei na rua, tristes, abatidos, mas muito amigos, sempre de braço dado.

A última vez que os vi, o Sr. José não me reconheceu. A doença começara, há muito, a comer-lhe a mente, até ficar vazia. A D. Amélia tomou as minhas mãos entre as suas e disse-me com as lágrimas nos olhos:
- Sofremos muito com a morte do nosso filhinho, Sr. Doutor, sofro muito com a doença do meu marido e com a minha, mas há uma coisa pior que tudo, que me atravessa a alma e quase me arranca o coração do peito. É quando ele, coitadinho, sentadinho na beira da cama, e eu lhe digo, Zezinho queres um chazinho quentinho, com umas bolachinhas, e ele me responde:
- Mas a senhora, quem é?

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Nota do editor

Último post da série de 12 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25512: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (17): "Uma moedinha, por favor"

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Adão, Deus nos livre da doença... do Alemão.

Hélder Valério disse...

Caro amigo Adão

Acompanho (quase) sempre o que o meu amigo disponibiliza para ser aqui publicado, embora poucas vezes comente. Preguiça? Desleixo? Incapacidade para o fazer? Não sei.

Mas a história de hoje, para além de nos trazer uma realidade que não é assim tão rara e que para quem tem que lidar com essa situação induz sempre alguma angústia, fez-me recordar as minhas visitas dominicais ao meu (nosso) camarada da Guiné, Nélson Batalha, meu antigo colega no IIL, na formação de TSF, no CTIG, no STM, na Escuta, a compartilhar o mesmo quarto, mais tarde meu padrinho da cerimónia religiosa do casamento e que, estando na ocasião ao cuidado da instituição CAID (Centro de Apoio a Idosos Dependentes) da S.C.Misericórdia de Setúbal.
Durante a visita esforçava-me por lhe retirar alguma palavra, alguma expressão, que me pudesse fazer pensar que ele me reconhecia e que interagia mas nunca fiquei com certezas. Sorria, ao que lhe dizia, procurando provocar-lhe recordações mas não passava disso.
Vinha sempre "doente" dessas visitas.

Um abraço, caro Dr.

Hélder Sousa