1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Outubro de 2022:
Queridos amigos,
Foi com imensa alegria que estive com o Tony Tcheka, ele honrou-me participando na sessão de lançamento de Rua do Eclipse. E deu-me este livro extraordinário "Quando Os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", quatro contos, todos eles invulgares, habituados como estamos a ver os portugueses a falar da tropa africana que combateu do lado português e foi execrada por quem se comprometera honrá-la, como manda a reconciliação; habituados que estamos a ver os portugueses a abordar o 25 de Abril na Guiné, é completamente inesperado, e merece ser saudado com ambas as mãos esta prosa ousada, desmistificadora, que só me parece possível a quem viveu todas estas situações de um fim de Império e sonhou pôr-se ao serviço do seu país, que tanto o dececionou. Como escreve o editor, Tony Tcheka é o escritor da madrugada, do dia inicial inteiro e limpo, com os pés e o coração divididos entre Lisboa e Bissau.
Um abraço do
Mário
Tony Tcheka, um corajoso denunciador de segredos e mentiras (1)
Mário Beja Santos
A obra intitula-se "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", o seu autor é o jornalista e escritor Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior), nascido em Bissau em 1951, Editorial Novembro, 2022. É muito mais do que uma surpresa literária, ficamos assombrados com a ousadia deste guineense que rompe com mitos, palavras de ordem e dogmas de fé em que a política bissau-guineense é exuberante.
Como escreve Pires Laranjeira no prefácio, “Trata-se de um livro corajoso, com seus contos estéticos, contos-ensaios, contos-testemunhos, contos-de-casos sociológicos – e – ontológicos, para ler de um fôlego e entrar numa área da vida guineense que a literatura nunca tocou, a dos guineenses que assumiam identidade portuguesa e dela não queriam abdicar, mesmo mergulhados em grandes infortúnios. Com conhecimento, compreensão e ternura contando a amargura de destinos malparados. Em última instância, todo o livro aborda o Estado-Nação formado por competências antigas e modernas, herdadas das colonizações (dos impérios antigos do oeste africano e do oeste europeu) e da revolução independentista, em que o valor consuetudinário continua a ter muita força e a revigorar na terra branku”.
Não é uma prosa de lamber as feridas, não há aqui qualquer manipulação a tirar esqueletos do armário, são contos de quem experimentou duas realidades, a colonial e a independentista, esventra agora os tiques, sopesa os arquétipos de cada uma das situações, e expõe a dura realidade de como o 25 de Abril de Portugal e a independência da Guiné-Bissau revolveram mentes, expuseram contradições e paradoxos, fomentaram silêncios imperativos, forjaram golpes de Estado indocumentados e interditos de discussão pública, montaram cavalas, os ajustes de contas mais ignóbeis, o que Tony Tcheka nos vem dizer é que os cravos vermelhos chegaram ao Geba e os vencedores mostraram uma total inabilidade em gerar uma reconciliação após tão dolorosa guerra, fratricida e divisora.
É arrepiante a leitura do primeiro conto Pekadur di Sambasabi, esta Sambasabi é uma tabanca onde depois do 25 de Abril regressa o seu filho de nome mais notável, Capiton Basinho Bikas ou Alferes Mon di Ferro. Logo o seu nascimento dá que pensar, ele veio ao mundo mas morreu o seu irmão gémeo. Nos anos em que decorreu aquela guerra, as suas façanhas galvanizavam os serões, até se esquecia o seu verdadeiro nome, João Bicanka Sory Bá. Quis ser enfermeiro, houve mesmo promessa de padre missionário, sonho gorado. Alistou-se no Gabu, os seus feitos heroicos deram condecorações.
Não é uma prosa de lamber as feridas, não há aqui qualquer manipulação a tirar esqueletos do armário, são contos de quem experimentou duas realidades, a colonial e a independentista, esventra agora os tiques, sopesa os arquétipos de cada uma das situações, e expõe a dura realidade de como o 25 de Abril de Portugal e a independência da Guiné-Bissau revolveram mentes, expuseram contradições e paradoxos, fomentaram silêncios imperativos, forjaram golpes de Estado indocumentados e interditos de discussão pública, montaram cavalas, os ajustes de contas mais ignóbeis, o que Tony Tcheka nos vem dizer é que os cravos vermelhos chegaram ao Geba e os vencedores mostraram uma total inabilidade em gerar uma reconciliação após tão dolorosa guerra, fratricida e divisora.
É arrepiante a leitura do primeiro conto Pekadur di Sambasabi, esta Sambasabi é uma tabanca onde depois do 25 de Abril regressa o seu filho de nome mais notável, Capiton Basinho Bikas ou Alferes Mon di Ferro. Logo o seu nascimento dá que pensar, ele veio ao mundo mas morreu o seu irmão gémeo. Nos anos em que decorreu aquela guerra, as suas façanhas galvanizavam os serões, até se esquecia o seu verdadeiro nome, João Bicanka Sory Bá. Quis ser enfermeiro, houve mesmo promessa de padre missionário, sonho gorado. Alistou-se no Gabu, os seus feitos heroicos deram condecorações.
E um dia aconteceu o 25 de Abril, andou por reuniões, tudo lhe parecia estranho, sentia não ter lugar naquele espaço novo em reconfiguração, estava a viver num cenário jamais pensado. Esteve na reza na Mesquita Grande de Pilum, depois foi rezar o Pai-Nosso e o Credo na Sé Catedral de Bissau. Confuso com tudo quanto aqui se passava, voltou à terra natal, à sua tabanca acolhedora, bem no Leste recôndito da Guiné. Em Sambasabi, o Capiton discorre todo o fio daquela memória, o poder dos ancestrais, o despotismo do progenitor, o não ter tido oportunidade de estudar, ter-se tornado num destemido combatente, voltava agora pronto a trabalhar a terra, tem uma plantação frondosa com bananeiras, laranjais, mangueirais. O seu passatempo guarda-o numa sacola, histórias aos quadradinhos.
Tony Tcheka é luminescente a descrever-nos a sua infância no Leste, a sua formatação militar, o seu património religioso. Na tropa, começou por baixo, guia e batedor, fez recruta em Bolama, foi depois selecionado para um curso especial, ainda pertenceu a uma unidade especial de comandos que viria a ser a génese dos comandos africanos. Ele e os seus homens eram um verdadeiro caterpillar de limpeza, ganhou estatuto de figura mítica. Agora, tudo acabou.
Em Sambasabi recebe uma visita inesperada, é alguém que vai em fuga, um fuzileiro guineense de nome Musna Na Faiõe, avisa-o de que é tempo de perigos, chegaram os ajustes de contas, Capiton decide ficar, tem uma explicação:
Tony Tcheka é luminescente a descrever-nos a sua infância no Leste, a sua formatação militar, o seu património religioso. Na tropa, começou por baixo, guia e batedor, fez recruta em Bolama, foi depois selecionado para um curso especial, ainda pertenceu a uma unidade especial de comandos que viria a ser a génese dos comandos africanos. Ele e os seus homens eram um verdadeiro caterpillar de limpeza, ganhou estatuto de figura mítica. Agora, tudo acabou.
Em Sambasabi recebe uma visita inesperada, é alguém que vai em fuga, um fuzileiro guineense de nome Musna Na Faiõe, avisa-o de que é tempo de perigos, chegaram os ajustes de contas, Capiton decide ficar, tem uma explicação:
“Se não posso fugir de mim mesmo, como e porquê fugir dos outros? Se não me reencontrar aqui onde tenho o meu umbigo enterrado, jamais serei eu. São muitos anos à procura de mim mesmo”.
E apareceram 30 guerrilheiros, vieram-no buscar, ficará detido no quartel de Mansoa, conversará com um amigo, Djondjon di Nha Maria Benta, falam da literatura aos quadradinhos, desabafa:
“Sou um homem a quem na adolescência arrancaram a alma. Nunca me encontrei. Pensei ter despertado, mas não. Não pude viver os meus sonhos. Nunca fui eu. Nesta vida, fui o que os outros de mim fizeram”.
Tony Tcheka não necessita de falar dos fuzilamentos nem das patranhas que foram inventadas de uma sublevação absurda de tropa especial e outra, o mais ridículo de tudo é que nenhum daqueles homens não detinha uma só arma, uma só bazuca, uma só granada. E desses fuzilamentos que mais pareciam aplacar o descontentamento interno forjando um inimigo fantasmático que atrasava o progresso do país, passa-se para quase o tempo presente.
Tony Tcheka não necessita de falar dos fuzilamentos nem das patranhas que foram inventadas de uma sublevação absurda de tropa especial e outra, o mais ridículo de tudo é que nenhum daqueles homens não detinha uma só arma, uma só bazuca, uma só granada. E desses fuzilamentos que mais pareciam aplacar o descontentamento interno forjando um inimigo fantasmático que atrasava o progresso do país, passa-se para quase o tempo presente.
Já estamos em 2017, o septuagenário de Musna Na Faiõe, sentado na sua casa de construção precária, na zona da Amadora, assiste a uma notícia da RTP-África, é o protesto de uma centena de membros da Associação de Antigos Combatentes, filhos e familiares das Forças Armadas Portuguesas, frente à Embaixada de Portugal em Bissau, reivindicando o cumprimento do acordo celebrado depois do 25 de Abril e não cumprido. O antigo fuzileiro pega no telemóvel e liga para um camarada das matas da Guiné, fala-lhe da notícia, mas qual cumprimento de acordo, quem se dignou a respeitar tanto sacrifício consentido e sangue derramado?
“Nós somos os mortos-vivos navegando num rio sem água. E o que somos nós hoje? Digo-te já: Entrudos! Fomos promovidos a entrudos… Sem esperar por qualquer reação, num gesto brusco Musna Na Faiõe desligou o telefone, enterrando-se no velho cadeirão”.
O leitor que se prepare para mais, como nos adverte o editor, temos pela frente “um entrelaçamento de culturas; aprendemos com os dialetos, as lendas, as tradições e os costumes, desta narrativa histórica romanceada, que nos adverte para o quanto é necessário ‘pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro’”.
Se Tony Tcheka já nos surpreendera por ser o estro mais flamejante e dolorido desta impenitente Guiné-Bissau, revela-se nesta obra um artista de mil prodígios.
(continua)
_____________
Nota do editor
Último post da série de 17 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25536: Notas de leitura (1692): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (3) (Mário Beja Santos)
O leitor que se prepare para mais, como nos adverte o editor, temos pela frente “um entrelaçamento de culturas; aprendemos com os dialetos, as lendas, as tradições e os costumes, desta narrativa histórica romanceada, que nos adverte para o quanto é necessário ‘pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro’”.
Se Tony Tcheka já nos surpreendera por ser o estro mais flamejante e dolorido desta impenitente Guiné-Bissau, revela-se nesta obra um artista de mil prodígios.
Tony Tcheka
Antigos combatentes das Forças Armadas portuguesas na Guiné Bissau, Global Imagens, com a devida vénia
Lançamento do livro “Quando os cravos vermelhos cruzaram o Geba”, de Tony Tcheka, no Centro Cultura Português em Bissau, maio de 2022(continua)
_____________
Nota do editor
Último post da série de 17 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25536: Notas de leitura (1692): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (3) (Mário Beja Santos)
Sem comentários:
Enviar um comentário