terça-feira, 21 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25546: Viagem a Timor-Leste: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II - A caminho das montanhas



Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.   Liquiçá (em tétum,  Likisá) é um município, visível neste mapa, com a capital na  cidade do mesmo nome, a 32 km a oeste de Díli, a capital do país. A cidade de Liquiçá tem 19 mil habitantes. Nas montanhas fica Manati / Boebau, onde a ASTIL construiu uma escola para crianças do pré-escolar e 1º ciclo.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 





Lourinhã > Praia da Areia Branca > 2 de dezembro de 2017 > Por ocasião de um almoço de um grupo de amigos de Timor-Leste, no restaurante Foz: em primeiro plano, Rui Chamusco e Gaspar Sobral, cofundadores e líderes da ASTIL.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das crónicas do Rui Chamusco, relativamente à sua primeira viagem e estadia de dois meses em Timor-Leste (partiu  de Lisboa a 5 de maio de 2016 e deixou Dili em 7 de julho, de volta a casa) (*). 

O Rui Chamusco, nosso tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, a viver na Lourinhã. Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião). É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste.

 A ASTIL irá construir e inaugurar, em março de 2018,  a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), nas montanhas de Liquiçá (pré-escolar e 1º ciclo). 

A primeira viagem do Rui a Timor Leste, em maio de 2016, é exploratória mas é nessa altura que ficará decidido construir-se uma escola nas montanhas de Liquiçá, em Manati / Boebau. Nesta viagem (e estadia de dois meses) , fez-se acompanhar do luso-timorense Gaspar Sobral, outro histórico da ASTIL, que há 38 anos não visitava a sua terra natal.  Em Dili eles vão ficar na casa do Eustáquio, irmão (mais novo) do Gaspar Sobral.

Dessas crónicas de 2016,  sob a forma de diário, decidimos publicar a maior parte dos apontamentos,  dado o interesse documental que nos parece ter  para os nossos leitores que, como nós,  ainda sabem pouco da história e da cultura dos nossos amigos e irmãos timorenses.



Viagem a Timor: maio/julho de 2016 - Parte II:  a caminho das montanhas

por Rui Chamusco


(Continuação)

 Dia 14 de maio de 2016, sábado  – Dia de muitas emoções

Já estava previamente combinado. O Gaspar, aproveitando a sua estadia em Timor, quis reunir todo a família. É que ele atualmente é o irmão mais velho dos 5 ainda vivos. E como a irmã mais nova, a Benedeta, fez 52 anos há dias,  aproveitaram a ocasião para celebrar os dois acontecimentos. 

Agora imaginem a agitação e o reboliço quando todos estavam presentes: bebés, crianças, jovens, adultos, netos, tios, primos, cunhados, sogros – uma panóplia de parentescos capaz de embaralhar qualquer um. 

E no meio de tudo isto o malae (que sou eu) tentando adaptar-se a esta grande família dos Sobral que, segundo se crê, é a única existente em todo o território timorense. Tarde e noite muito animada pelos cumprimentos efusivos que a toda a hora aconteciam, e também, por que não, pelo som e as canções das crianças acompanhadas por mim no acordeão. 

À noite cantaram-se os parabéns à Bene que nos deliciou com o saboroso bolo de anos. Depois foi a ceia para mais de 50 pessoas. 

Para terminar o Gaspar fez o grande (fala que se farta) discurso da praxe – um momento emocionante que algumas vezes o levaram às lágrimas. Segundo entendi, tratava-se de um apelo à unidade da família, tentado justificar alguns desentendimentos havidos, apelando ao perdão e à união da família Sobral.

“Se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé”

De manhã, mais uma viagem em mota para mandar fazer as fardas para a Adobe. Saltando poças e charcos porque tinha chovido muito no dia anterior, lá fomos rumo a Dili a caminho do alfaiate. Mesmo junto à berma da estrada, numa barraca das habituais, ali estava o artista rodeado de trapalhadas (farrapos, cadernos de apontamentos, fita métrica, máquinas de costura e outras coisas mais). Feito o negócio, vai de tirar as medidas certas à garota para que daqui a oito dias se possam vir levantar.

Mais uma pequena viagem e outra paragem para comprar sapatos e meias e algum material escolar. Loja chinesa. com certeza.

Depois foi a grande surpresa: visita ao David, um timorense que eu apoiei nos seus tempos de estudante em Coimbra e que eu só conhecia de voz por telefone. 

Também ele ficou surpreendido pois nunca pensou ser visitado na sua casa por alguém que ele sempre desejou conhecer. Várias vezes marcamos encontro em Portugal mas nunca se concretizou. Momentos agradáveis com a presença de bastantes familiares que iam chegando. 

Hoje o David trabalha com a primeira dama, mulher do primeiro ministro. E, claro, disponibilizou-se logo para o que for preciso, com vontade de que a gente se encontre em Dili.

Chegando a casa e já arrumadas as compras decidimos telefonar a D. Basílio, bispo de Baucau. Outra grande surpresa, sobretudo para ele, pois nunca teria pensado que o Rui estivesse em Timor. Basílio e eu fomos colegas de trabalho durante dois anos, na equipa de pastoral da comunidade emigrante de Gentilly nos arredores de Paris. Há 34 anos que não nos vemos. Está combinado um encontro nos próximos dias, em Dili. Espero dar- lhe aquele abraço que em tempos nos unia e fortificava. “Bien sûr”!...

Dia 15  de maio de 2016, domingo – A visita do Felisberto Oliveira da Silva

Hoje, domingo, tivemos a visita do vizinho Felisberto. Já falei deste senhor como figura e personalidade invulgar, a fazer lembrar o sábio filósofo que, de livros nos côvados dos braços, passeia a sua interpretação da vida, falando com convicção das suas experiências de vida e das sua ideias e pensamentos sobre os mais diversos temas.

Homem inteligente, com sentido crítico acentuado que Deus lhe concedeu e com acontecimentos ricos de significado. Eu e o Gaspar parecíamos dois alunos ávidos do seu saber. Durante uns bons minutos deu-nos a conhecer pontos essenciais da vida atual, sempre documentado por capítulos e versículos da Bíblia que sabia de cor. 

Fala razoavelmente o português porque fez parte durante três anos da unidade policial portuguesa que serviu em Timor; fez um curso intensivo de formação para ser professor, profissão que também exerceu; foi comandante das tropas da resistência; foi prisioneiro dos indonésios e agora, segundo testemunhas, passa o tempo lendo muito, escrevendo e partilhando as suas ideias. Já tenho o seu aval para quando quiser lhe telefonar ou o visitar. Parece que frequentemente é visitado para ser entrevistado. A sua coerência é muito apreciada. Das suas ideias não abdica seja perante quem for, mesmo em face dos indonésios.

Uma grande lição de vida!...

Dia 16 de maio de 2016, segunda feira – Ida à embaixada e outros sítios

Mais uma vez de táxi, a caminho da embaixada de Portugal porque o Gaspar não descansa enquanto os nossos nomes não forem lá registados. Não vá o diabo tecê-las, vale mais prevenir que remediar. À chegada ao edifício deparamo-nos com um grande grupo de timorenses que procuram obter o cartão de cidadão português, a fim de puderem entrar na Europa, Portugal e Inglaterra sobretudo, para estudar ou trabalhar.

Pois é! Aqui em Timor Portugal ainda tem algum significado. Falar português confere estatuto de gente importante que dá acesso a portas e caminhos por que muitos anseiam.

Um grande desejo é de ir estudar para Portugal. Gente que vem das universidades portuguesas tem quase garantido um bom emprego.

Na embaixada, lugar esquisito pois pouco conforto apresenta, pouca atenção nos deram: simplesmente o número de telefone da embaixada e o e-mail, aconselhando-nos a fazer o registo por correio eletrónico.

Depois fomos ao Páteo, beber um café dos nossos e fazer algumas compras, algumas bem portuguesas como o garrafão de vinho Castelões e latas de sardinhas Ramirez.

Longe da pátria, tudo sabe bem, nem que seja uma côdea de pão para matar saudades.

Telefonema para Austrália

Mais outra surpresa. Quando saí de Malcata,  prometi à família que, aproveitando a vinda a Timor, iria visitar o primo Quim, a residir na Austrália. Hoje foi o dia escolhido para lhe telefonar. Com sucesso, pois fui atendido de imediato. Conversámos de algumas coisas e ficou combinado de que, antes de regressar a Portugal, lhe iria fazer uma visita. Ficou com o meu contato para poder-me telefonar.

Já não vejo o primo Quim há mais de 30 anos, pelo que o nosso encontro vai ser com certeza emocionante, a lembrar os nossos tempos de infância,  os lugares de Malcata, as pessoas que já partiram e as que ainda vivem. Espero ansiosamente pelo encontro…

As influências e as cunhas

Ontem esteve connosco uma jovem de Luiquiçá, parente da família Sobral, que há três anos terminou o ensino secundário com a média de 19 valores. Não conseguiu entrar na universidade porque não tinha lá dentro ninguém da família. Segundo as más línguas, é assim que aqui funciona o acesso ao ensino superior. É muito difícil entrar lá dentro, sem alguém de referência.

É pena que assim seja pois há por aqui muito talento perdido. Normalmente quem vai estudar para Portugal, Indonésia ou outros países são filhos de ministros, de presidentes; muitos sem preparação intelectual para poderem progredir nos seus estudos. 

Daí que muitos voltam para Timor sem nada feito ao fim de alguns anos, para ocupar cargos públicos para os quais não estão bem preparados. Dizem os críticos que isto mais tarde ou mais cedo vai dar buraco pois a incompetência de muitos funcionários públicos é bem evidente

Aqui como noutros lados do mundo desaproveitam-se os dotados, os capazes, os inteligentes para dar lugar à banalidade, às cunhas, às influências. Ai Timor, Timor! Muito caminho te espera… Desejo-te todo o bem do mundo.

Noite 17 de maio de 2016, terça feira – Uma noite no hospital

Outra experiência diferente. Ontem a Adobe quando regressou a casa vinda da escola manifestava alguma tristeza provocada com certeza pelas dores. Estava com febre e pedia aconchego da mãe e do pai. Metade do comprimido para a febre deixou-a arrebitada mas, por volta das 1.30 da manhã, começo a ouvir o seu choro e as vozes do pai e da mãe que tentavam desesperadamente consolá-la. Levantei-me à pressa e quando apareci em cena já estavam com ela ao colo para a levarem ao hospital. Claro que me dispus logo a ir também. Assistida prontamente por quem estava de serviço, com boa observação médica que lhe administrou os respetivos remédios. Esteve em observação e tratamento até às 6.00h da manhã, hora do regresso a casa.

Pois é, nem sempre a vida é cor de rosa. Quantas vezes, para sermos solidários, temos de passar noites em branco. Quantas vezes temos de carregar as dores dos outros… Já alguém fez isso por nós, portanto não há nada de heroico nesta ação. Fica-nos a satisfação de um dever cumprido, de uma obra de misericórdia aplicada. (...)


Dia 18  de maio de 2016, quarta feira - Afinal, os bispos também mentem. Que Deus lhes perdoe!....

Hoje é o dia combinado para o encontro com o D. Basílio, por proposta sua, Ficou de ligar para dizer a hora mais conveniente. Se quem espera desespera, bem desesperado fiquei pois durante o dia todo não houve qualquer contato da sua parte. O encontro foi para as urtigas. Não sei se ainda o vou encontrar, mas se for caso, vai ter que me ouvir.

É assim que se respeitam os amigos? Afinal os bispos também mentem. Que Deus lhes perdoe!...


Dia 19 de maio de 2016, quinta feira  - Mais histórias (acontecimentos reais ) que nos fazem pasmar

Logo de manhã cedo começamos a ouvir relatos que deviam constar no catálogo das obras de misericórdia. À minha frente estava Bartolomeu Pinto, um rapaz entre os trinta e quarenta anos, simpático e que canta e toca guitarra muito bem, mostrou-nos as cicatrizes do antebraço, braço e cabeça. 

Sem que ninguém o esperasse, este jovem foi atacado por um senhor à catanada, só por estar a mexer no presépio. Foi no dia 23 de Dezembro de 2007. Esteve dois dias em coma, depois foi recuperando progressivamente. As forças da ordem, que por acaso era a GNR, quiseram prender o agressor, tendo a vítima declarado que não queria que ele fosse para a prisão. Não tinha nada contra ele e que “se Deus lhe perdoa sempre por que é que ele não lhe devia perdoar.” 

Vejam esta nobreza de sentimentos, próprio do Ano da Misericórdia que este ano a Igreja celebra. Apesar de tudo, o ministério público acusou o réu que, em julgamento,  apanhou dois anos de prisão. Bartolomeu nada pode fazer para que o condenado tivesse de cumprir a pena. Mas quando saiu da prisão foi ter com ele para o abraçar. Grande Bartolomeu! Obrigado pela lição do perdão,,,

Mesmo em atalho de foice, outro exemplo de perdão. Não fixei o nome do herói, mas trata-se de um combatente da resistência a quem um invasor indonésio cortou a mão.

Quando se esperava um sentimento de vingança,  este senhor respondeu a quem o questionava: “se encontrar esse indonésio vou cumprimentá-lo e dar-lhe um aperto de mão. Que importa ter perdido a mão. Importante mesmo é a nossa independência”. 

Sem explicação humana. Este povo é mesmo assim: muito crente, capaz de lutar e de perdoar as ofensas, ( assim como nós perdoamos?...


Dia 20 de maio de 2016, sexta feira –  Dia da Restauração da Independência

Hoje é dia da restauração da independência. Mas não foi por isso com certeza que hoje o pessoal da casa foi à missa às 6.00h da manhã, menos eu e o Gaspar. Perguntei porquê a missa tão cedo e responderam-me que aqui sempre foi assim.

Fomos outra vez a Dili, para levantar as fardas de Escola da Adobe. Azar! Estava fechado, talvez por ser o dia da restauração da independência. Mas o alfaiate mandou-nos lá ir hoje. Não se lembrou ou mentiu. Em poucos dias já levei dois tampos (mentiras).

Aqui, à minha frente, está o Gaspar a discursar, sempre o mesmo discurso, sobre o estado das coisas em Timor. Fala com razão mas a forma de o dizer não é a mais própria. Quer caçar moscas com vinagre. Não sei se terá algum êxito. Não sei se se esquece do que já disse, mas o facto de se repetir vezes sem conta cansa que se farta o pessoal (os ouvintes). 

Os irmãos dizem-lhe que tenha cuidado com o que diz porque as paredes ouvem e a situação pede contenção. Parece que “as secretas” estão em ação e, quando assim é,  todo o cuidado é pouco. Eu cá para mim estou-me nas tintas. Vamos resolver os nossos assuntos, quanto antes melhor, por que me estou marimbando para as quezílias internas.

Amanhã vamos para a montanha, para Boibau. Muita apreensão pois para além da aventura há quem diga que é uma loucura. A distância é curta mas o caminho é terrível, cheio de buracos, subidas e descidas. A ver vamos!... Mas mais ou menos 3 horas de caminho temos de contar. 

Dia 21 de maio de 2016, sábado - A caminho da montanha

 Eram mais ou menos 14 horas quando o jipe do Anô ficou pronto para arrancar: 6 pessoas dentro, mais as trouxas que cada um decidiu levar. A emoldurar o momento estava o rancho de crianças, à volta de 15, que ajudavam a fazer a festa. Foi uma despedida repleta de alegria. 

Depois foi andar, andar, andar  por mares (caminhos) nunca antes navegados numa casca de noz a rebentar por tudo o que era sítio, sob um calor húmido e abafado, resistindo às contrariedades que a cada passo se nos deparavam. Uma verdadeira prova de resistência a qual nem todos aguentaram. 

Enquanto eu cantava de galo, sempre bem disposto e a causar surpresa aos timorenses da comitiva, o amigo Gaspar foi uma desgraça, incapaz de suportar o seu corpo e a sua mente até ao fim. Queixas, vómitos, má disposição – muito reles,  afinal. Para quem duvidava da minha forma física,  foi uma chapada na cara. Toma, Gaspar! Para as outras vezes não ponhas em causa as capacidades dos outros. Valeram-te as viagens de moto. Caso contrário nem sei como chegarias a Boebau.

A receção no casebre Sobral onde vive a família do Don José foi acolhedora, ainda que eu tenha sido mirado de alto abaixo por todos. Não sei se gerei desconfiança ou medo, particularmente às crianças. Embora muito recomendado pelos familiares do Gaspar, há sempre alguma reserva em face de um malae (estrangeiro), mesmo que chegue com boas intenções. 

Todos são informados, em grupo ou individualmente, que a nossa visita se deve a um projeto de solidariedade de construção de uma escola, e que viemos para falarmos sobre o assunto. No domingo, dia seguinte, visitamos os túmulos/jazigos dos avós paternos do Gaspar, que estão em fase final de recuperação. Momentos emotivos com todos os presentes. 

O sr. Sobral era a autoridade máxima da região, uma espécie de comandante de posto, com tudo o que necessitava para tal função (armas, símbolos de chefia…etc…) uma pessoa estimada e respeitada por todos. Eu próprio fui testemunha. Justifica-se portanto o investimento em preservar as suas memórias. Bem o merecem.

Depois, sempre a subir e eu à frente por entre o capim até outro casebre onde nos esperava outra família. Aí  foi servido a cada um um coco que um moço de pé leve foi colher lá nas alturas. O coco que melhor me soube em toda a minha vida. 

Novas conversas sobre o projeto, que nos levaram a marcar uma reunião às 3 da tarde para tomarmos uma decisão: “Uma escola ou uma igreja", como alguém pretende?...

Convidamos o chefe do suco de Leotalá (presidente da Junta) que nos facilitou os cadernos de registo de crianças. À hora marcada começamos a reunião. Com o assunto já bem estudado e perante a pergunta “O que vos faz falta em Boebau Escola ou Igreja?"  

Todos foram unânimes: “queremos a escola, porque há muitas crianças que não vão às escolas circundantes”. 

Segundo os cadernos do suco, vivem em Boebau / Manati mais de 400 crianças das quais só 110 frequentam as escolas. A razão principal da falta à escola é o tempo que se demora no caminho, mais ou menos 5 horas diárias a pé que as crianças têm de fazer. Entenderam o sacrifício desta gente? 

Então ficou decidido, com o apoio de todos e em particular do chefe de suco, que irá ser construída uma escola, mais ou menos o projeto que trouxemos de Portugal, ficando o Anô encarregado de adaptá-lo às condições reais do local de construção. 

Com o orçamento a apresentar (mais ou menos 30.000 euros), a ordem é de avançar de modo a que a escola possa ser inaugurada em Janeiro de 2017, início do ano letivo em Timor. O trabalho mais difícil da nossa visita a Timor, tomada de decisões, está feito. 

Vamos continuar a lutar e a desenvolver o nosso projeto, seja em Timor seja em Portugal. Queremos fazer alguma coisa por esta gente tão necessitada mas tão querida. E Vamos conseguir!...



Alguns episódios na montanha

(i) Francisco da Conceição e a sua mulher parece que estavam já a nossa espera: a Marcelina, o Abeca e eu. 

Os cumprimentos efusivos da praxe, a conversa puxa conversa, o ritual da mama (mascar betel, areca e cal), equiparado ao vício do tabaco e histórias de vida que nos fazem pasmar. 

O sr. Francisco, homem pequeno e franzino vive aqui com a sua segunda mulher, sem filhos. No tempo da invasão indonésia a sua primeira mulher e os seu cinco filhos foram mortos. Mesmo assim, manifesta alegria de vida que nem a sua pobreza (miséria) consegue esconder. Pergunto-me: o que é preciso para ser feliz?... 

Junto às casas aqui próximas colocaram um posto de alta tensão. No entanto ninguém tem luz elétrica nestas paragens. Socorrem-se de “pequenos painéis solares que proporcionam uma débil luminosidade, incapaz de carregar um telemóvel". Por outro lado o senhor Francisco queixa-se que a pequena plantação de betel está a diminuir desde que existem ali implantados os postes. 

Aqui como noutras partes do mundo os pobres são explorados sem qualquer tipo de compensação. O pobre cada vez mais pobre e o rico cada vez mais rico. Para onde vamos?


(ii) O Eustáquio mostrou-nos lá do alto os montes e vales por onde andou escondido e errante com a mãe e alguns irmãos durante três anos. 

Remarcou em particular o monte onde foram apanhados pelos indonésios (uma casa com telhado verde no cimo de um monte) e o local de passagem do rio onde se deu o ”milagre” da casa que os protegeu de noite e que desapareceu ao romper do dia. 

A convicção do relato é tão forte que duvidar do que conta é um risco. O Eustáquio tinha 11 anos de idade percorria todos aqueles montes até Liquiçá para comprar sal que depois ia vendendo pelo caminho. Ainda hoje é frequente o negócio das crianças que passam com frequência pelos arruamentos e veredas dos bairros locais,  apregoando e vendendo produtos diversos.

(iii) Os obstáculos do caminho são uma constante. 

Hoje no regresso da montanha deparamo-nos com uma sinalização que nos indicava perigo. Uma vara e um senhor que ao avistar o gipe pagero azul chamou à atenção do aluimento duma passagem sobre troncos.

 Depois de inspecionado o perigo saímos da viatura e o corajoso e habilidoso Anô arranca sobre a faixa disponível conseguindo chegar são e salvo à outra margem. 

Nada mais houve a registar para além dos buracos constantes destas vias. Mas soubemos depois que o caminho estava intransitável e que corria uma informação falsa a nosso respeito: “foi um pagero azul que provocou a situação.” Sabemos também que não há estrutura nem serviços estatais que resolvam estas situações. Têm de ser os habitantes locais. E viva o povo!...

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4

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Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 20 de maio de  2024 > Guiné 61/74 - P25544: Viagem a Timor-Leste: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: As primeiras emoções e impressões

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Bom, a facilidade com que se usa(va) a catana... Em Timor, mas também em Angola (viu-se em 1961)...

Uma ferramenta de trabalho transformada em arma de morte.

Enfim, Rui, lembro-me, na minha região, Lourinhã, quando eu era miúdo, de ofensas corporais provocadas por enxadas, sacholas, forquilhas, etc., em disputas entre vizinhos, em geral, por questões de "honra ou propriedade"...

Esquecemo-nos, com demasiada frequência, que o "homos sapiens sapiens" (orgulhoso por estar no topo da escala da evolução das espécie) é também um "bicho", um "animal, classificado pelos zoólogos na ordem dos primatas... E, pior que tudo, "homo lupis homini est", uma expressão latina que tem mais de dois mil anos, e que é muito certeira, se não fora ofensivo para o lobo: "o homem é o lobo do próprio homem"...