quarta-feira, 12 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25635: Historiografia da presença portuguesa em África (427): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Interrogo-me amiudadas vezes quais as razões de fundo que levam a que a investigação histórica não tenha produzido, nas últimas décadas, uma História da Guiné, suscetível de suprir as lacunas do trabalho de João Barreto, face a revelações decorrentes de investigações em arquivos nacionais, pelo menos. Sente-se à vista desarmada que a Guiné Portuguesa requer uma investigação multinacional, logo o contexto da Senegâmbia e os impérios e reinos que se depararam ao comércio exercido pelos portugueses entre o Cabo Verde e a Serra Leoa, têm sido sobretudo os historiadores senegaleses quem têm produzido mais investigação, com a qual não convivemos; há, por outro lado, uma história comum entre as ilhas de Cabo Verde e estes pontos da Costa Ocidental Africana não só por causa do tráfico humano mas também pela presença comercial cabo-verdiana e as suas migrações para o que é hoje o Senegal e a sua inserção na administração pública portuguesa, do século XIX até à independência. Continuamos confinados à documentação existente no Arquivo Histórico Ultramarino e em bibliotecas de prestígio, como a da Sociedade de Geografia de Lisboa. Parece-me que chegou o tempo de os lugares universitários que se dedicam a estudos africanos encontrarem um entendimento e a formação de equipas a nível nacional e que daí saiam propostas para investigar em articulação com, pelo menos, Cabo Verde, Senegal e Guiné-Conacri. É neste amplo espaço que ganhará, estou seguro, uma maior clarificação sobre a presença portuguesa na região desde meados do século XV até à independência da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (6)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Caminha-se para o final do século XIX, depois do desastre de Bolor determinou-se a criação do Governo autónomo da Guiné, naturalmente acompanhada de autonomia administrativa própria de uma província independente, com efetivos militares autónomos e com uma orgânica de serviços públicos. O primeiro governador, Agostinho Coelho, assina tratados relativos à região do Forreá, mas o clima de lutas interétnicas é de enorme gravidade. O aspeto curioso é que as relações entre os portugueses e os Biafadas, até à segunda metade do século XIX, se tinham pautado por tranquilidade e havia bom acolhimento feito a comerciantes portugueses e estrangeiros. A chegada em força dos Fulas trouxe permanentes confrontos, cresce o número de chefes revoltados. As pontas e os lugares de comércio ao longo do Rio Grande de Buba, que eram em grande número, foram desaparecendo, a presença da Força Armada portuguesa era um mero paliativo. Em 1880, iniciou-se a revolta dos Fulas-Pretos contra os senhores do Forreá, estes Fulas-Pretos pediram auxílio a senhores que viviam na Guiné Francesa e também nas margens do rio Geba. Só em 1882, dadas as hostilidades entre os indígenas e Buba é que foi organizada uma coluna que veio a intimidar o régulo Bacar Guidali, este pediu para fazer as pazes, paz de pouca dura; entretanto, começavam as desavenças entre os chefes locais, como escreve Barreto:
“Mamadu Paté, de Bolola, querendo ser régulo do Forreá, declarou guerra a Guidali, com auxílio do chefe Iaiá, de Kadé. Bacar Guidali fugiu para a praça de Buba, diz-se que faleceu envenenado. A defesa do território do falecido régulo foi confiada a seu irmão, Mamadu Paté Coiada. Não podendo, porém, resistir à superioridade numérica dos seus inimigos, Coiada fugiu para o Cantanhez e dali para Bolama, irá estabelecer-se no Gabu. Com a derrota da família Guidali, o régulo Iaiá reforçou a sua soberania no Forreá. No final do ano de 1886, foi assinado em Buba um tratado entre Iaiá, rei do Forreá, Labé, Gabu e Kadé e o nosso governo. Paz temporária.”

O segundo governador foi Pedro Inácio de Gouveia, é um período de sucessivas operações militares: em Jabadá, Nhacra, tabancas da zona de Ziguinchor, entre outras. Criou-se uma alfândega de direção única em Bolama, com delegações em Bissau e Cacheu. O Boletim Oficial passara a ser uma publicação regular a partir de 1880. O terceiro governador, Francisco de Paula Barbosa, foi confrontado com sublevações na região de Geba, com a revolta dos Fulas-Pretos, houve que proceder a campanhas em Geba e Bissau, a hostilidade dos Papéis só terminou em 1892, também tranquilidade de pouca dura.

Barreto descreve a nova organização administrativa da colónia, a nova revolta dos Papéis, em 1894, as primeiras tentativas para a cobrança do imposto de palhota, o regresso da agitação no Forreá, as guerras de Oio e Caió, a chegada de um governador que deixou marca, Júdice Biker, em 1900. E o autor lembra como não foi fácil a delimitação da fronteira luso-francesa, que se prolongou até 1905, e que ficou definitivamente regularizada já nos anos 1930. Outro nome que deixará marca na governação é Oliveira Muzanty, chegado a Bolama em 1906, tempo em que a província foi dividida em um concelho e seis residências: o concelho de Bolama compreendia, além desta ilha, todo o arquipélago de Bijagós e os territórios de Quínara e Cubisseque; as residências eram Cacheu, Farim, Geba, Cacine, Buba e Bissau. Muzanty é confrontado com a sublevação do régulo Biafada do Cuor, com apoio de outros régulos, procurava-se impedir a navegação do Geba e cortar as relações comerciais com Bissau. Esta sublevação levará à constituição de uma força militar como nunca se vira na Guiné, vieram tropas da metrópole e de Moçambique, depois de uma série de combates o régulo Infali Soncó fugiu e o regulado foi oferecido a um colaborador, Abdul Indjai.

Mas houve mais operações militares, Barreto elenca os locais e as forças que repuseram a ordem. Ainda no tempo da monarquia, em 1909, chega novo governador, o Capitão Francelino Pimentel, o seu governo foi pouco acidentado, passou maior parte do tempo em Lisboa, entretanto Portugal mudou de regime. Curiosamente, Francelino Pimentel, nomeado durante a monarquia, logo que teve conhecimento da implantação do regime republicano em Portugal mandou publicar no Boletim Oficial a seguinte proclamação: “Cidadãos! Está proclamada a República em Portugal e seus domínios e vai ser arvorada neste momento solene a Bandeira Nacional, símbolo da Pátria e da conquista das Liberdades Públicas. Saudemos com entusiasmo tão feliz acontecimento e unamo-nos todos pela sua prosperidade. Viva a Pátria! Viva a República! Viva a Liberdade!” Não obstante a estes protestos de fidelidade, o Governo provisório da República nomeou novo governador, Carlos de Almeida Pereira. Será notória a atividade desenvolvida por este, a legislação colonial iria sofrer profundas alterações, isto a despeito de um acontecimento imprevisto ter flagelado a colónia em maio de 1911, uma epidemia de febre amarela. A maior parte dos funcionários públicos abandonou Bolama, só ficaram alguns corajosos e o governador da colónia. A doença foi considerada extinta no mês de julho.

Dá-se a reorganização dos serviços, que Barreto enuncia meticulosamente: nas Obras Públicas, na Agrimensura, nos Correios e Telégrafos, na Instrução Pública, na Agricultura e Pecuária. Época em que se publicou o Regulamente de Circunscrições Civis. A província foi dividida em dois concelhos (Bolama e Bissau) e sete circunscrições administrativas com sedes em Bafatá, Cacheu, Farim, Buba, Cacine e também em Bolama e Bissau.

Mas outros acontecimentos também foram dignos de nota: a demolição da muralha que cercava a vila de Bissau; o contrato com uma empresa britânica para a construção da ponte-cais de Bissau em cimento armado, como escreve Barreto no seu livro editado em 1938, “ainda hoje representa na Guiné a mais importante obra de engenharia e apetrechamento económico”. É nesta governação que o Capitão João Teixeira Pinto iniciou o seu plano de pacificação da colónia, o governador e chefe de Estado-Maior divergiam sobre a escolha de processos para alcançar o objetivo que ambos procuravam.

E chegamos ao derradeiro capítulo desta obra, em finais de dezembro de 1913 era nomeado governador Andrade Sequeira e seguidamente substituído pelo coronel de artilharia Josué de Oliveira Duque, é tempo de conflitos, a Primeira Guerra Mundial teve os seus impactos na Guiné, dão-se as campanhas de Teixeira Pinto, Barreto desenvolve um amplo capítulo sobre as missões religiosas e os serviços públicos, assim chegaremos a 1918, termo da publicação, será esta a matéria do último texto que dedicaremos à primeira e única História da Guiné que foi há poucos anos alvo de uma edição fac-similada, por vontade de um neto de João Barreto, Aires Barreto, com o apoio do historiador Valentino Viegas.

Trata-se da única fotografia que se conhece do médico João Barreto, imagem que me foi amavelmente concedida pelo historiador Valentino Viegas aquando do lançamento o opúsculo que lhe dedicou o seu neto Aires Barreto

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 5 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25606: Historiografia da presença portuguesa em África (426): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (5) (Mário Beja Santos)

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