sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22859: Notas de leitura (1403): Léopold Sédar Senghor, o poeta da Negritude (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Um achado num alfarrabista possibilitou-me conhecer uma antologia poética do então Presidente Senghor. Note-se que tudo o que aqui se releva é o homem e a sua poesia bem antes de ser iniciada a luta armada. Senghor era profundamente estimado pelos intelectuais franceses, reconheciam que a sua poesia era uma inovação em todo o lirismo escrito em francês. Não fizeram favor nenhum em torná-lo membro da Academia Francesa. Um poeta praticamente desconhecido entre nós e que procurou intervir desde a primeira hora numa solução pacífica de transição colonial para um país independente. Também temos esse dever de memória com o extraordinário poeta que foi Léopold Senghor.

Um abraço do
Mário



Léopold Sédar Senghor, o poeta da Negritude

Beja Santos

Em 1962, a conceituada Présence Africaine dava à estampa o estudo feito por Armand Guibert da poesia de Senghor, nascido numa região acima do Casamansa conhecida por La Petite Côte, recorde-se que esta região foi altamente frequentada, nomeadamente nos séculos XVI e XVII por judeus portugueses que aqui se implantaram, caso de Joal, aqui perto Senghor passou a sua infância. Já poeta consagrado, Senghor exprimia a sua satisfação por estes lugares não longe do oceano, cheios de coqueiros. Frequentou em jovem a missão católica de Joal, onde aprendeu as primeiras letras. Deixou La Petite Côte aos dezasseis anos para fazer os seus estudos em Dacar e em 1928 parte para Paris, nos bancos do Liceu Louis–le-Grand foi colega de Paul Guth, Georges Pompidou e Thierry Maulnier, entre outros. Aqui se vai robustecer o humanismo que lhe inculcará o ideal da libertação. Faz amizade com Aimé Césaire, nome influente no pan-africanismo. A sua poesia tem influências daquilo que ele vai designar como o conjunto dos valores culturais dos africanos negros. Entretanto, ganha os seus títulos universitários, regressa a Dacar, já tem em mente a independência futura do Senegal. É um adepto da não-violência, diz repetidamente que a liberdade cultural é a condição sine qua non da libertação política. A sua devoção é África mas mantém uma lealdade crítica à França, será combatente na II Guerra, feito prisioneiro em 1940. Depois da guerra será eleito deputado do Senegal à Assembleia Constituinte, como parlamentar fará inúmeras viagens, como a Estrasburgo, a Bruxelas, a Florença, a Lisboa e a Nova Iorque. Em 1955 e 1956 será Secretário de Estado na Presidência do Conselho.

O seu pensamento já está formado, Senghor é um homem livre de qualquer complexo de inferioridade, África deverá ser independente, acredita que vários países devem tentar a unidade. Em 1960 será proclamado Presidente da República do Senegal.


Para quem estuda a Guiné Portuguesa e a Guiné-Bissau, a política de Senghor merece atenção obrigatória: viu sempre com desconfiança o sonho expansionista de Sékou Touré, procurou a moderação, ofereceu-se para o diálogo para se obter uma transição pacífica de independência para a Guiné Portuguesa. Vigiou a presença do PAIGC no seu território, nos primeiros anos da luta armada, sentiu-se coagido a cortar relações com Portugal, não se furtou a conversações com o Governo de Lisboa, encontrou-se com Spínola, propôs o cessar-fogo e defendeu uma transição até dez anos, para que a administração guineense não ficasse em roda livre, os acontecimentos militares geraram um outro curso dos acontecimentos.

Mas é bom pegar na sua poesia anterior à luta armada, uma poesia animada pelo génio africano, o fascínio pelas máscaras na diversidade de cores; mas é igualmente uma poesia que se deixa impregnar por uma certa mansuetude, a caridade cristã, sem prejuízo da sua atenção por um mundo em convulsão desde a guerra civil de Espanha, a guerra da Etiópia, a sua poesia ganha uma enorme fraternidade com aquela África submetida, redige mesmo poemas com termos jalofos e que pudessem ser recitados acompanhados por korás. Aliás, no seu relatório ao I Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, ele destacou as línguas africanas como línguas essencialmente concretas, em que as palavras aparecem associadas a imagens, possuídas pelo valor do signo, falou em imagens analogias e imagens mesmo surrealistas.

A sua formação permitiu-lhe um conhecimento aprofundado da cultura greco-romana e mesmo das culturas mediterrânicas. Muitos dos seus poemas estão estreitamente associados às culturas do Mediterrânio Oriental, possuem um veio popular e não islamizado, muito próprio dos povos nómadas e pastores, mas há também claras referências aos trovadores muçulmanos e aos guerreiros.

No final da obra Armand Guibert conversa com Senghor, começa por o interpelar sobre a sua inspiração, a tónica dos elementos da Natureza, a magia e o fascínio das civilizações de cunho negro, a que Senghor responde que procura para o Senegal uma cultura nova, assente na negritude, sem detrimento das linhas da cultura francesa em que se formou. E não nega que a sua poesia possui um equilíbrio instável entre um passado anterior à colonização, o processo da aculturação e a tomada de consciência de que os africanos deviam seguir o seu próprio rumo. Observa mesmo que escolheu uma área geográfica muito confinada para os temas fundamentais da sua poesia, La Petite Côte, está marcado pelo sol, pelos instrumentos musicais como o korá, as flautas, os tambores, sente-se atraído pela rítmica da tragédia grega e dos trovadores medievais. E responde ao seu entrevistador dizendo que no Senegal a cultura é o fim último da política. Confessa que tinha interrompido a sua atividade poética porque estava a escrever um ensaio sobre a civilização negro-africana, considerava este trabalho a sua missão mais urgente para dar à política um fundamento cultural. Concluído esse ensaio, contava ainda escrever algumas elegias, e escrever mesmo para o teatro, um teatro simbólico e lírico na tradição negro-africana.

Eis um Senghor completamente desconhecido com a imagem que dele se faz ao tempo da luta armada na Guiné, tentou para o seu país uma via democrática, sujeitando a elevado controlo a existência dos partidos políticos.

Confessava-se adepto de um socialismo democrático, repudiou todos os quadros políticos marxistas que fizeram moda no seu tempo, naquele rincão africano.

Desaparecido da cena política em África, é tido hoje como o detentor de uma lírica inultrapassável na linha do encontro entre as culturas ocidentais e da África Negra.


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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22849: Notas de leitura (1402): Memórias de um alferes, Leste da Guiné, 1967-1969: A CART 1690, uma das mais sinistradas, em toda a Guerra da Guiné (Mário Beja Santos)

1 comentário:

antonio graça de abreu disse...

Como está hoje o Senegal, sem Leopold Senghor?

Abraço

António Graça de Abreu