sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22858: Homenagem da Tabanca Grande ao Jorge Cabral (1944-2021), ex-alf mil at art, cmd, Pel Caç Nat 63 (Bambadinca, Fá e Missira, mai 1969 / ago 1971) - Parte I: "Alfero Cabral", uma genial criação literária, um "alter ego" do autor, usado como arma de irrisão contra o absurdo da guerra (Luís Graça)


Foto nº 1  > O nosso "alfero Cabral" passou por todos os ramos das Forças Armadas: a... Marinha...


Foto nº 2 > O nosso "alfero Cabral" no Exército...


Foto  nº 3 > O nosso "alfero Cabral" na Força Aérea...


Foto nº 4 > O O nosso "alfero Cabral" na Milícia...

Lisboa > Belém > 10 de junho de 2016 > "Foto com o ex-alferes de artilharia dr. Jorge Almeida Cabral e Maldu Jaló, natural de Catió,  e que combateu comigo no sul da Guiné, fazendo parte da Milicia do João Bacar"...

Fotos do Mário Fitas (ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67).

Fotos (e legendas): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Lisboa > Belém > 10 de junho de 2009, Dia de Portugal > Encontro Nacional de Combatentes, em Belém, junto ao Forte de Bom Sucesso > Vacas de Carvalho à direita da foto, Jorge Cabral deliciosamente "cercado" pelas camaradas da Polícia do Exército (PE).

Foto: © Mário Fitas (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lisboa >  XXVI Encontro Nacional de Homenagem aos Combatentes do Ultramar >  Belém > 10 de junho de 2019 > Da esquerda para a direita: Luís Graça, Francisco Silva, Humberto Reis, J. L. Vacas de Carvalho e Jorge Cabral


Lisboa >  XXVI Encontro Nacional de Homenagem aos Combatentes do Ultramar >  Belém > 10 de junho de 2019 > Jorge Cabral e Juvenal Amado

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Lisboa, Belém, Forte do Bom Sucesso > 10 de Junho de 2009 > Mini-encontro do pessoal da Tabanca Grande Ei-lo, o mais desalinhado, quiçá o mais pacifista dos Homens Grandes da nossa Tabanca Grande, o autor das saborisíssimas "estórias cabralianas, já então à procra de um editor, o Cabral mais Cabral da Guiné, o Jorge Cabral ele mesmo... Com o seu inseparável cachimbo... Não perde um 10 de Junho desde que deixou as terras de Fá, Missirá, Bambadinca... Nostalgias...  (Em segundo plano, o J. L. Vacas de Carvalho, seu contemporâneo em Bambadinca, 1969/71)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 

Montemor-O-Novo > Ameira > Hotel da Ameira > I Encontro Nacional da Tabanca Grande > 14 de Outubro de 2006 > Um momento de fraternidade, pensa (e sente) o Jorge Cabral, em primeiro plano, tendo à sua direita o nosso baladeiro de Bambadinca (1969/71), e hoje fadista amador, o Zé Luís Vacas de Carvalho, comandante do Pel Rec Daimler 2206.

De pé, afinando as gargantas ou cantando ao desafio, outras duas grandes aves canoras: o Fernando Calado e o Manuel Lema Santos, o exército e a marinha de braço dado... O fotógrafo que estava de serviço apanhou o flagrante, era o David Guimarães, radiante, felicíssimo...

Foto: © David Guimarães (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


“Cabral só há um, o de Missirá, e mais nenhum” (*)

por Luís Graça

Agora que o Jorge Cabral partiu na "barca de Caronte" (**), este livro vamos guardá-lo com enorme saudade e relê-lo, talvez com outros olhos. 

O prefácio que lhe escrevi ( "o charne discreto da humanidade ou a arma da irrisão contra o absurdo da guerra") (*) , continua atualíssimo e estou só a revê-lo aqui e ali. 

“Cabral só há um, o de Missirá, e mais nenhum” continuará a ser o subtítulo, não explíicito deste livro, algo de saudavelmente provocador, mesmo que que não seja imediatamente percetível, para o leitor de hoje, a referência ao antropónimo Cabral e ao topónimo Missirá…

Missirá ficava na “portuguesíssima província” da Guiné, “muito longe do Vietname”, hoje República da Guiné-Bissau, país independente, de língua oficial portuguesa. E Cabral não era o Amílcar, o senhor engenheiro, de origemcabo-verdiano, mas nascido na Guiné,  e líder de um movimento nacionalista que combatia os “tugas”, e considerado hoje o fundador do novo país lusófono que se chama Guiné-Bissau, mas o “alfero Cabral”, um personagem literário criado como um “alter ego” por Jorge Cabral…

Tal como muitos jovens da sua geração, o autor foi chamado para a tropa, ainda antes de acabar o seu curso de direito, e fez o caminho do calvário de muitos outros portugueses, milicianos ou do recrutamento geral (, sem esquecer os militares do quadro), acabando mobilizado para a então “guerra do ultramar”. (Estamos a falar do tempo em que o serviço militar era obrigatório e havia, desde 1961, uma guerra em três frentes, a milhares de quilómetros de casa.)

Alferes miliciano, “atirador de artilharia”, com passagem por Mafra e Vendas Novas, tinha nascido numa família de militares (, segundo creio), sob uma frondosa árvore genealógica que já dera à Pátria “muitos Cabrais e que tais” (, ironizava ele). 

Não desertou como outros “meninos das Avenidas Novas”: foi comandar o Pelotão de Caçadores Nativos, nº 63, dividindo a sua comissão,  entre 1969 e 1971, em dois destacamentos, Fá Mandinga e Missirá,  no Leste da Guiné, região de Bafatá, Sector L1, Bambadinca. Foi, pois, meu vizinho e contemporâneo, e inclusive fizemos operações juntos.

No regresso à Pátria, foi advogado e docente universitário E, nomeadamente, dedicou uma vida à formação de técnicos superiores de serviço social, uma profissão largamente feminina (, ainda hoje). 

E continuou a ser do “contra” mas… “sempre discreto”. Um dia, em dezembro de 2005, apresentou-se à Tabanca Grande, à “tertúlia” criada à volta do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, nestes termos singelos, muito reveladores da sua maneira de ser, estar e escrever:

“Através do blogue, recordo. E sinto. Vejo os rostos dos camaradas, oiço os sorrisos das crianças, e até, calcula, consigo admirar de novo os belos seios das bajudas. Peço permissão para pertencer à Tertúlia, oferecendo o ‘pícaro’ de alguns episódios que vivi.”

Foi o início da série “Estórias cabralianas”, seguramente uma das mais populares que tivemos o privilégio de publicar no blogue, e que foi muito bem acolhida pela crítica literária de então… Cite-se, por exemplo, o nosso saudoso Torcato Mendonça (1944-2021): 

“Só tu, meu caro Jorge, me embacias os óculos com o cloreto de sódio que me saíram dos olhos e molharam os ditos”…

E, de facto, ninguém melhor do que o “alfero Cabral” para nos fazer (sor)rir, ao descrever, em traço grosso, numa frase, numa linha, num parágrafo, numa legenda, uma situação-limite, uma fantasmagórica personagem de carne e osso, um hilariante ambiente de caserna, um garboso chefe militar da “tropa-macaca”, um episódio grotesco mas sempre humaníssimo da nossa (co) vivência na guerra, enfim, uma cena rocambolesca, pícara, brejeira, relativamente à nossa passagem pela Guiné “em defesa da soberania portuguesa”.

Eu, que fui seu contemporâneo e camarada de armas, passei depois a ser fã das suas “short stories”, os seus micro-contos, as “estórias cabralianas”, para mais sabendo que ninguém podia invejar o lugar de comandante deste tipo de destacamentos, isolados, na “linha de fronteira da guerra”, na terra de ninguém, guarnecido por pelotões de caçadores nativos, mais uns tantos “milícias” locais, com a família às costas, os cães e os tarecos, e mais meia dúzia de graduados e especialistas de origem metropolitano, à beira do abismo, esquecidos e abandonados...

Intrinsecamente do “contra” e “antimilitarista” (ou não tivesse sido ele também um “menino da Luz”, uma "rata" do Colégio Militar do ano de 1955), o criador das “estórias cabralianas” não tem qualquer propósito panfletário de denunciar a “guerra colonial”, pôr em causa a gloriosa tradição da “honra & glória” dos nossos africanistas, ou sequer de “ofender a instituição militar”, tão apenas o de manifestar a saudável loucura, própria dos seres humanos que são “condenados” ou “postos à prova” em situações-limite, face à morte, o sofrimento, as privações, o absurdo, o “non-sense”, a irrisão de uma guerra de fim de império... E aquela guerra, naquele espaço e tempo, tinha tudo isso.

Mas as “estórias cabralianas” são, também, um hino à idiossincrasia (lusitana e africana), à plasticidade comportamental dos nossos soldados, à enorme capacidade de resistência, de resiliência, de imaginação e de adaptação da nossa gente...

O Jorge Cabral que, quanto estudante universitário, leu o Ionesco e conhecia o teatro do absurdo, não coloca o seu “alter ego” na situação, confortável, do marionetista... Ele faz parte, de alma e coração, da peça, dos adereços, do cenário, do texto e do contexto… Ele expõe-se, como ninguém

Devo dizer que Jorge Cabral foi o mais “paisano” dos militares que eu conheci na Guiné. Em Fá Mandinga e depois em Missirá, e sempre que ia a Bambadinca, não se limitava a ser um heterodoxo “tuga”, representante da tropa, oficial miliciano, ator e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, régulo, chefe de tabanca, conselheiro, psicólogo, ‘amigo do turra’, poeta, socioantropólogo, feiticeiro, ‘cherno’ (catequista), ‘mauro’ (padre), ‘médico (com a difícil especialidade de ‘obstetra e ginecologista’, “consertador de catotas”), sexólogo, advogado e não sei que mais. 

À força de ser propalada e levada pelo vento, de bolanha em bolanha, a histórica e temível frase “Cabral só há um, o de Missirá e mais nenhum” terá tido um efeito “contrassubversivo” e até “perturbador” nas “hostes do PAIGC”… Ao reivindicar ser ele "o único e legítimo Cabral", punha em xeque, o outro, o de Conacri, o "usurpador", que defendia os seus pergaminhos de Kalashnikov na mão…

Chegou por certo aos ouvidos do temível Corca Só, o chefe da 'barraca' de Madina / Belel, a sul do Morés, a tal ponto que no tempo do "alfero Cabral” não mais voltou a meter-se com a malta de Missirá…

Em Missirá, um destacamento mais exposto às morteiradas, canhoadas e roquetadas do IN (abreviatura de inimigo) do que Fá Mandinga, contava-se que o "alfero Cabral”, mais do que temido, passara a ser "respeitado" (e quiçá "venerado") pelos “camaradas do PAIGC”, desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los: “Vocês não fujam, não tenham medo!!!... Sou o Cabral!!!”...

Eis, pois, um verdadeiro Lawrence, não das Arábias, mas do Cuor,  das terras do Cuor, na Guiné!... Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente ‘cafrealizado’ ou ‘apanhado do clima’.

O “alfero Cabral”, sua genial criação literária, nunca acentua o lado do “bestiário da guerra” que há no Homo Sapiens Sapiens, mas sim o da sua humaníssima, frágil, quase tocante, condição de primata, de primus inter pares na ordem zoológica do mundo... O único animal que, afinal, consegue esta dupla proeza: (i) ser capaz de rir-se de si próprio; e (ii) e mostrar, pelo outro, compaixão (no seu sentido etimológico cum + passio: sofrimento comum, comunidade de sentimentos, partilha da dor… e prazer).

O seu sentido de humor é muito próprio: nu, de tanga (uma toalha à volta cintura), e de G3 às costas, é uma figura impagável, que nos acompanha, de princípio ao fim, fazendo destas “short stories” pérolas literárias, que só podiam ser fruto de um espírito aberto, fraterno, pacifista, sadio, maroto, provocador, lúcido, irreverente, desconcertante, descomplexado.

A par da imensa tragédia que provocou (com perdas e danos, materiais e simbólicos, irreparáveis), a guerra da Guiné foi também palco (hilariante) de muitas peças do Teatro do Absurdo (envolvendo as NT, o IN, os nossos oficiais superiores, o “Caco Baldé”, os nossos camaradas, de diferentes cores e feitios, a população local e, claro, as "bajudas")...

Por outro lado, Jorge Cabral é um dos poucos que tem o engenho e a arte de nos conseguir falar (e, sobretudo, enternecer e comover), com um subtil toque de humor, de maneira descomplexada, das nossas relações com as mulheres locais, sem nunca cair na “ordinarice de caserna”…

Veja-se, por exemplo, essa fabulosa estória, da primeira vez que veio passar férias à Metrópole, em janeiro de 1970, a compra, num grande armazém de Lisboa (, takvez o Grandela), de trinta e oito sutiães de todos os tamanhos e cores, e que ele levou consigo, na bagagem, de regresso a Fá Mandinga, para oferecer às suas queridas bajudas. Mas não se pense, malevolamente, que ele tinha um harém: simplesmente organizou “a festa do corpinho, para a alegria das bajudas, que envergaram o seu primeiro sutiã”…

À laia de conclusão e incentivo para a leitura, acrescentarei este excerto de uma mensagem que em tempos lhe dirigi e que não perdeu nem acuidade nem atualidade, depois agora que ele partiu na barca de Caronte:

“Só tu, meu querido Jorge, consegues pôr a malta e o resto a tropa a fazer... o pino!...Tu és a subversão total, o iconoclasta, o bombista-suicida, o terrorista intelectual, o humorista-mor e outras figuras que tais, que em muito contribuíram para o fim do nosso longo, vasto e glorioso Império... 

O teu humor é(era) subversivo, corrosivo, demolidor... Depois de te ler, um homem, um ‘tuga’, já não é mais o mesmo... Tu devias ir a tribunal militar, porque tu tiras a ‘tusa’... a qualquer combatente... Depois de te ler, quem é o combatente (até mesmo o de Alá!) que se sentirá com ‘tomates’ para ir combater na guerra, nas próximas ‘guerras santas’ que se avizinham?!”...

Luís Graça, editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (*)

 [Na altura, em outubro de 2020, o Jorge Cabral manifestou-me o seu agrado e apreço pelo prefácio que lhe escrevi, mas, modesto como era, disse-me que não merecia tantos... adjetivos!]


Escreveu o seu filho, Pedro Almeida Cabral, em 28 do corrente, na sua página do Facebook:


Jorge Almeida Cabral, 1944-2021. Jorge Almeida Cabral

O meu querido e adorado pai faleceu hoje de manhã, em paz e ao meu lado, vítima de um cancro de pulmão raro e agressivo. Como sei que muitos o admiravam, deixarei, quando souber, os detalhes das cerimónias fúnebres.

Esta fotografia, de que gosto particularmente, é dele em Moscovo, no verão de 2019, a jantar comigo num restaurante da moda. Está com a típica expressão a dizer que eu sou maluco (uma das suas frases preferidas), acompanhado do seu inseparável cachimbo.
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Notas do editor:

(*) Adapt. do prefácio de Luís Graça ao livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Dá-me algum "conforto" saber que o nosso Jorge morreu, em paz, de mão dada com o filho, Pedro Almeida Cabral...Julgo que ele teve tempo para fazer o difícil "luto interior", a despedida da vida, a preparação para a morte...Sabia que já não tinha muito tempo, e que a doença era avassaladora... Um exemplo para todos nós, que estamos na "lista" do "barqueiro de Caronte"...LG

antonio graça de abreu disse...

Texto maravilha, meu caro Luís Graça.

Abraço,

António Graça de Abreu