terça-feira, 6 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25812: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte III: mortos em Angola




Quadro 1 - Lista d0s mortos de Fafe no TO de Angola (1961/1975) (pp.  44/45)






SILVA, Jaime Bonifácio da - Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal- In:  Artur Ferreira Coimbra... [et al.]; "O concelho de Fafe e a Guerra Colonial : 1961-1974 : contributos para a sua história". [Fafe] : Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 23-84.



1. Estamos qa reproduzir, por cortesia do autor (e com algumas correções de pormenor),   excertos do  extenso estudo do nosso camarada e amigo Jaime Silva.  Esta III parte é dedicada a Angola.


Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar – Uma visão pessoal   Excertos ]  - Parte III (pp. 44-57)

por  Jaime Silva



(...) 2.1 Quadro-referência com a identificação dos nomes dos militares de Fafe mortos em cada uma das três Províncias Ultramarinas

A. ANGOLA > QUADRO 1 – Lista dos mortos de Fafe em Angola (vd. acima)


(...) Ao analisarmos o quadro acima,  com a identificação dos militares de Fafe tombados em Angola, podemos verificar que em Angola morreram dezasseis militares,  naturais de Fafe, Como causas da morte e usando a terminologia do Arquivo Geral do Exército, sabemos que tombaram por:

  • “Ferimento em combate com armadilha”, um;
  • “Ferimento em combate com mina anticarro”, um;
  • “Ferimentos em combate”, três;
  • “Combate”, dois;
  • “Acidente de viação”, três;
  • “Acidente – afogamento”, dois;
  • “Acidente com arma de fogo”, dois;
  • “Acidente por outros motivos”, um;
  • “Doença”, um.


Resumindo: 7 em combate; acidente, 8; doença, 1,

Quanto ao posto e especialidade, podemos verificar:

  • em primeiro lugar, que doze eram soldados, tendo as seguintes especialidades: Atiradores, três; Apontador de Morteiro, um; Caçador Especial, um; Radiotelegrafista, um; PM – Polícia Militar, um; Condutor auto, um; Reconhecimento e Informações, um;
  • existem três sem anotação da sua especialidade e, destes, um é de uma Companhia de Caçadores (CCAÇ) e dois de Companhias de Artilharia (CART);
  • em segundo lugar, três tinham o posto de 1.º cabo (um maqueiro e dois atiradores) e, em terceiro, um era oficial miliciano com a patente de alferes.

Dois militares ficaram sepultados em Angola nos cemitérios locais: 

  • soldado atirador Artur de Sousa, natural de Ardegão, pertencente ao BCAÇ 92 e à CCAÇ  94, falecido em 3 junho de 1961 em consequência de acidente com arma de fogo, ficando sepultado no adro da Igreja de Sanza Pombo (Norte);
  • e o soldado atirador Alberto Moniz Nogueira, do BCAÇ 1863 e da CCAÇ 1450, natural de Arões S. Romão, falecido em 16 de dezembro de 1966, em consequência de acidente de viação no destacamento de Messibi (Leste) e está sepultado no cemitério do Luso.

O primeiro militar de Fafe a tombar em Angola e, também, na Guerra Colonial foi o soldado atirador Artur de Sousa, natural de Ardegão. A última vítima da guerra em Angola e, também, o último a morrer na Guerra Colonial  (...)  foi o 1.º Cabo José Pereira Dias, natural de Armil, onde está sepultado. (op cit., pp. 46/47).


  • 1.º Cabo João Pedro Alexandre,  nº mec. 12804373 (op cit., pp. 47-52)


(...) A morte ocorre já depois de se ter dado a Revolução de Abril em 1974. Foi incorporado nas fileiras das Forças Armadas em 6 de maio de 1974 (...)  e é nomeado em agosto para servir no Ultramar com destino à ComAgr  6001, vindo a embarcar em Lisboa a 11 de dezembro de 1974 e a desembarcar em Luanda a 12 do mesmo mês. 

Uma vez em Angola, é destacado para prestar serviço no Comando de Agrupamento  6001/74, em Cabinda, onde veio a falecer a 27 de setembro de 1975, em consequência de acidente de viação.

Do seu processo individual, que consultei no Arquivo do Exército por deferência do seu irmão, que agradeço, transcrevo a participação do acidente feita pelo 1.º cabo João Pedro Alexandre n.º 12804373 e assinada por este e pelo 1.º cabo João Pedrosa Alexandre:


Comando Territorial de Cabinda

Exmo Senhor Comandante Militar

Participo a V. Exa que hoje pelas 12h00, quando seguia na viatura “UNIMOG” N.º MG-27-89 conduzida pelo soldado condutor Auto N.º 03225674 António Gonçalves Capelas, do CMD. AGR. 6001/74, e após a viatura ter desfeito uma curva pouco acentuada, à saída da cidade de Cabinda, guinou em direção à berma da estrada do lado direito, não conseguindo o condutor trazê-la ao sentido de origem apesar de todos os esforços que fez para isso. Em consequência da posição em que ficou a viatura, isto é, com as rodas do lado direito a um nível mais baixo do que as do lado esquerdo os caixotes e os ocupantes que seguiam na carroceria caíram da viatura tendo um dos caixotes atingido gravemente o 1.º cabo NM 026905774 José Pereira Dias do CMD AGR N.º 6001/74. Verificaram-se ainda ferimentos ligeiros nos seguintes militares:

1.º  Cabo NM 12804373 João Pedrosa Alexandre

1.º Cabo NM 14105574 António Fernandes Santos Silva
Soldado NM14105574 António Gonçalves da Silva

Todos deste CMD AGR N.º 6001/74. A viatura não sofreu danos materiais.

São testemunhas: - 1.ºCabo NM 14105574 António Fernandes Santos Silva e o Soldado NM14105574 António Gonçalves da Silva.

Quartel em Cabinda, 27 de Setembro de 1975.
(pág. 48)


Ainda do seu processo individual e referente ao acidente, transcrevo da “Informação n.º 17 / 77”, emanada do Quartel-general da RM (Região Militar) de Lisboa em 20 de janeiro de 1977, assinada pelo Chefe de Serviço de Justiça  ten cor Alfredo Marques de Abreu, o seguinte:

(...) No ponto - 02. Da análise do processo verifica-se que:

a) No acidente contraiu as lesões descritas das quais resultou a morte no mesmo dia.

b) O acidente ocorreu sem culpabilidade do sinistrado.

Ponto - 03. Em face dos elementos existentes no processo é este SJ (serviço de justiça) do parecer que:

a) O acidente deve ser considerado resultante do exercício das suas funções e por motivo do seu desempenho
.  (pág. 48).

“A certidão de Narrativa Completa de Registo de Óbito”,  passada pela Conservatória do Registo Civil de Cabinda,  da Província de Angola,  regista que faleceu no Hospital Regional de Cabinda de "traumatismo toráxico".

  • Onde está o Costa ? (op. cit., pp. 49-52)

Militares casados antes de serem incorporados no serviço militar, existe um na relação dos mortos em Angola. Trata-se do soldado António Matos Costa, que pertenceu à CCAÇ 1783, sediada no destacamento de Magina e integrada no BCAÇ 1930, do qual também fazia parte o fafense furriel António Amável Marinho Mota, da Companhia  1782, destacada no Luvo.

Tenho em meu poder três documentos escritos e o testemunho do Furriel Mota que identificam as causas da morte do Costa, e um deles contradiz os outros quanto às causas da morte:

O primeiro, com a relação dos militares de Fafe tombados em Angola e cedido pelo Arquivo Geral do Exército, diz que o António Matos Costa é filho de Bento Jorge da Costa e Isaura de Matos, natural da freguesia de Vila Cova, casado com Florentina Pereira Rodrigues e pai de uma menina. 

Foi soldado com a especialidade de atirador a quem foi atribuído o Número Mecanográfico 2469367, pertenceu à CCAÇ 1783, integrada no BCAÇ 1930, sendo a Unidade Mobilizadora o RI 2 (Abrantes), que faleceu a 1 de junho de 1968 em Magina e cujas causas da morte são ferimentos em combate (armadilha). Está sepultado no cemitério de Queimadela.

O segundo documento está arquivado na Delegação de Fafe da APGV e foi-me cedida cópia, para este efeito, pelo seu presidente Manuel Ribeiro. Trata-se do “Processo de Trasladação” onde refere que a “Causa da Morte” foi por Acidente com arma de fogo. 

O documento atesta, ainda, que o Governo do Distrito do Zaire, com sede em S. Salvador e através do Alvará n.º22/G/968, datado de 17 de junho de 1968, declara: 

“Hei por bem autorizar a trasladação solicitada pelo Comando de Setor F para se proceder à Trasladação de São Salvador para um cemitério da Metrópole, do corpo de que foi sodado António Matos Costa, cuja urna se encontra em São Salvador. O Encarregado do Governo, Manuel Dias Peão." (op. cit, pág. 49)

O terceiro documento é um livro extraordinário escrito pelo Capelão do Batalhão, Padre Manuel Leal Fernandes, intitulado: Angola - As Brumas do Mato. Foi publicado em 1977 pela Livraria Telos Editora e foi-me oferecido pelo meu amigo António Mota, então furriel e camarada de Batalhão do António Costa. Descreve os momentos mais marcantes e dramáticos do BCAÇ 1930 durante a sua comissão entre 29 de novembro de 1967 e 27 de janeiro de 1970.

Durante a minha comissão vi, conheci e testemunhei no Norte e Leste de Angola os sacrifícios, as dificuldades de sobrevivência a que foram sujeitos muitos dos meus camaradas das Companhias do Exército destacados em locais recônditos, longe de tudo e onde, por vezes, foram sujeitos ao extremo da falta de apoio militar vendo, por isso, morrer os seus camaradas por falta de apoio aéreo para evacuar os feridos, como aconteceu com o meu primo Arsénio no Norte, e de mantimentos, passando fome.

O Padre Manuel Leal Fernandes, através dos depoimentos dos seus camaradas, transcorrido já mais de quarto de século sobre os acontecimentos vividos, retrata com uma grande seriedade e grandeza, que deve ser enaltecida, os momentos mais marcantes de sobrevivência de um grupo de homens que viveram durante dois anos em destacamentos construídos e situados no meio do mato e onde nada existia. No meio do nada, como escreve. É um excelente livro de apoio pedagógico para a disciplina de História nas escolas e para aqueles que querem saber a verdade dos factos.

O fafense António Costa fez parte do grupo da Companhia que não regressou vivo. Nas páginas 171 a 177, o autor dedica um capítulo ao António Costa, intitulado: Onde está o Costa, e no qual descreve a circunstância da sua morte.

Considero-o um documento histórico muito importante, porque, para além de nos dar a conhecer as circunstâncias da tragédia da morte do António Costa, permite-nos, também, ficar a saber e compreender o modo como se defendiam os aquartelamentos dos ataques do inimigo e como se colocava o sistema de minas no terreno.

Por isso, com esse objetivo e com a devida vénia, tomo a liberdade de transcrever e sintetizar algumas partes do seu texto:

Pelas 4 da manhã de 1 de junho de 1968, tinham rebentado duas armadilhas, habitualmente dispostas lá em cima, no morro, para defesa periférica do aquartelamento. O Comandante da companhia destaca o furriel de minas e armadilhas Aníbal Martins de Matos para ir lá acima ver o que se passou. O local ficava a uns 200-300 metros e o furriel Matos faz-se acompanhar da secção do furriel Figueira que estava de baixa, constituída por dez homens e da qual fazia parte o Costa. 

Chegados ao local o furriel lentamente, com redobrada cautela começa a inspeção das armadilhas. Faltava-me ver ainda duas, continua o furriel Matos – e dou com o Costa junto do meu ombro esquerdo. O furriel retirou-o do local e colocou-o a uma distância de segurança fora da zona armadilhada, continuando a inspeção. Voltei atrás, à penúltima armadilha. Eu tinha-as colocado de sete em sete passos. Como estavam numa zona lateral, nunca havia o perigo de eu tropeçar nelas. Elas estavam colocadas no meu lado direito e mesmo que eu desse um passo mais alargado não havia problema. Ao fim de sete passos, mais ou menos centímetros, lá estaria uma. Tinha visto já a penúltima armadilha e ia ao encontro da última, teria eu dado os dois primeiros passos e de repente há um rebentamento, uma explosão. (…) 

Com o impacto da explosão da armadilha o furriel Matos fica caído enfiado no capim. O Paiva levou uns estilhaços e o 1.º cabo Melo apanhou com uns estilhaços nas pernas e na cara. Quando recuperei a mente – continuou o furriel Matos (…) gritei para que ninguém se mexesse. Tive medo que entrassem pela zona perigosa e houvesse mais problemas (…). 

Onde está o Costa? (…) Caído no chão, todo esfacelado, barriga aberta, intestinos saídos, encharcado em sangue, o Costa esvai-se. Era a luta entre a vida e a morte (…). A avaliar pela posição em que ficou – deve-se ter inclinado sobre ela, e ao roçar de leve no capim ou no arame de tropeçar, tão sensível, acionou involuntariamente a sua explosão. (...)

Pela minha experiência pessoal, não resisto em destacar um comentário do furriel Matos, responsável e comandante do grupo, abalado pela morte do Costa, quando afirmou: 

"Cheguei ao ponto de começar a dizer que sou eu que o tinha matado. É que as armadilhas tinham sido feitas por mim, eu sou que as tinha montado e nelas morria um camarada me”. (…) De maneira nenhuma, Matos – dizia-lhe o Cap. Vilas Boas. Nem pense nisso. Você não matou ninguém. Tudo isto acontece no cumprimento da nossa missão."

Só quem sentiu a responsabilidade de comandar homens num teatro de guerra, sendo responsável pela vida dos que comanda, também seus amigos, perceberá a angústia do furriel Matos. Eu compreendo-o muito bem. Nos Montes Mil e Vinte, não muito longe do local onde o Costa tombou, também vivi um momento semelhante com a morte de um soldado do meu pelotão numa operação precedida do lançamento de bombas de napalm pelos aviões da Força Aérea. Com toda a honestidade o digo, ainda hoje revejo o assalto ao acampamento, os tiros, o local, e interrogo-me sobre o que poderia ter mudado para evitar a morte do meu camarada!...

Finalmente, o testemunho do furriel Mota do mesmo Batalhão e que deu a recruta e a especialidade ao Costa, na Metrópole. Apesar de não pertencer à mesma Companhia em Angola, diz que se encontrava frequentemente com o Costa no cruzamento das picadas do Lucuso, local onde a coluna de viaturas das três Companhias que constituíam o Batalhão se encontrava às quartas-feiras para, em conjunto, seguirem para a sede do Batalhão em S. Salvador, a cerca de noventa quilómetros, a fim de recolherem e transportar os mantimentos frescos chegados de Luanda no avião Nord Atlas. Tinham-se encontrado dias antes do acidente nesse local e, por ironia do destino, é na coluna que o furriel Mota apanha boleia para Luanda para vir de férias ao “Puto” que é transportada a urna com os restos mortais do conterrâneo e amigo António Costa.

Perguntei ao António Mota se sabia a razão da contradição entre os documentos quanto às causas da morte do António Costa.

Disse que esse procedimento era normal e que o faziam por causa das famílias. Segundo ele, na altura da guerra era mais fácil para a família aceitar um acidente provocado por negligência do que morrer com uma mina e ficar todo esfacelado. Disse-lhe que não concordava, se bem que nunca tenha vivido durante a minha comissão uma situação idêntica.

Realçou que a guerra do seu batalhão não se comparou a nenhuma outra. Foi a guerra deles. Lembrou que, quando chegaram à entrada do aquartelamento, se depararam com uma placa que dizia: nunca dês o último cigarro. Nunca bebas o último gole de água. Nem nunca gastes a última bala. Os irmãos não se escolhem. Os amigos sim. A partir daqui começa a guerra.


  • Alferes mil Venâncio Marinho da Cruz (pp.52-57)


O Venâncio Marinho da Cruz  (...)  foi o primeiro oficial miliciano fafense a morrer na guerra. Consultei em Lisboa, no Arquivo Geral do Exército, o seu processo individual por deferência da família, que agradeço. 

Apesar de não ter nascido em Fafe, o alferes Cruz quando foi incorporado nas fileiras das Forças Armadas já morava com a família em Seidões, onde está sepultado, e o seu nome consta, também, no Monumento aos Combatentes da Guerra Colonial, em Fafe. 

Nasceu em 25 de janeiro de 1941, na freguesia de Rego, concelho de Celorico de Basto. Frequentou o Seminário Conciliar de Braga. A 4 de maio de 1965 é incorporado na EPI (Escola Prática de Infantaria em Mafra), onde termina o 1.º Ciclo do COM (Curso de Oficiais Milicianos) a 5 de agosto e, aí, jura Bandeira a 4 de agosto. 

A 8 de agosto é colocado na EPC (Escola Prática de Cavalaria) para frequentar o 2.º Ciclo do COM na especialidade de Atirador de Cavalaria, terminado a 30 de outubro. A 1 de novembro de 1965 é transferido para o RC3 (Estremoz) e promovido ao Posto de Asp. Of. Mil. de CAV. 

 No seu processo consta que a 9 de fevereiro de 1966 pelas 14h30 "caiu durante o tempo de instrução no RC 7 (Lisboa), batendo com a cabeça no solo, tendo ficado inconsciente, sendo transferido para o Hospital Militar de Lisboa. São testemunhas os 1.º cabo mil 6953364 Regala e Leal n.º 7939664". Assina a participação o tenente cav João Nunes e Sena.

No RC3, a sua Unidade Mobilizadora, é nomeado para servir no Ultramar nos termos da alínea c) do Art.º 3.º do Dec. Lei 42.937 de 22.4 1960, embarcando em Lisboa com destino à Região Militar de Angola no navio Niassa a 15 de abril de 1966, data em que é promovido a Alferes, e desembarca em Luanda a 26 do mesmo mês.

Em 5 de maio pelas 06h00, marchou em coluna auto do Centro Militar do Grafanil em Luanda para o estacionamento do BART  753, tendo feito a sua apresentação naquele local no mesmo dia pelas 11h00. Em 15.4.66 é colocado no RC 3”.

Em março de 1968 faz parte da CCAV 1537 pertencente ao BCAV  1883/RC 3, e na noite de 27 para 28 de março sofre, durante uma operação de combate, uma violenta emboscada, vindo a falecer em consequência dos ferimentos em combate.

Em todas as operações militares realizadas e após o regresso do mato, o comandante do grupo de combate tinha que fazer e entregar ao superior hierárquico um relatório circunstanciado das movimentações e ocorrências durante a operação.

Com a intenção de informar e dar a conhecer como funcionava a máquina administrativa militar durante a guerra nestas circunstâncias, transcrevo uma síntese do Relatório da Operação de Combate em que veio a falecer o Alf. Cruz, juntamente com o furriel mil cav  José Martins Cavaco e o soldado Manuel Caetano Nunes.

“Relatório Imediato da Acção N.º 1/68”

O relatório, datado às 15h00 de 30 de março de 1968, é assinado pelo Comandante da Companhia de Cavalaria 1537,  pertencente ao Batalhão de Cavalaria  1883, Capitão Graduado de Cavalaria João Manuel da Fonseca Nunes e Sena, estacionado no Luacano (Zona Militar Leste – Luso), do qual fazia parte o Destacamento de Lago Dilolo, sendo seu Comandante o alf Venâncio.

O Relatório “Imediato da Acção nº 1/68” é organizado ao longo de seis pontos:

1. Local e grupo data /hora em que teve lugar a acção

Lago Dilolo, 27 março 1968, com início às 21.00 horas.

2. Descrição da ação (síntese)


Em 27 de março de 1968 pelas 18.00 horas apareceu no Estacionamento da NT (nossas tropas) no Lago Dilolo um nativo, que informou o Comandante do Destacamento, Snr. Alf Mil, Cruz, que um grupo IN (inimigo / turras) tinha estado na “Embala” do Soba (chefe nativo da sanzala /aldeamento nativo) NHACHICULO, dizendo que iria nessa noite atacar o Estacionamento matando todos os soldados. 

Em face das declarações do nativo” o Alf Cruz organiza uma patrulha de 13 elementos e desloca-se na única viatura que tinha, um UNIMOG UN3, pelas 19.00 horas, com o objetivo de averiguar a informação. Chegado ao local indicado pelo nativo, que ficava a cerca de 3 Km do Estacionamento na Picada Dilolo – Luacano, faz uma batida nas imediações, não encontra ninguém, dando, por esse facto, ordem para regressar, pelas 20.30 horas. (…)

Quando regressava a patrulha e a cerca de 300 metros da Escola Lago Dilolo, no mesmo local onde em Abril de 1967 o IN já tinha feito uma emboscada às nossas tropas, o IN estimado entre 15 a 20 elementos desencadeou uma forte emboscada atirando uma granada de mão defensiva que rebentou à frente da viatura UN3 e imediatamente abrindo fogo com as armas automáticas, lançando granadas incendiárias que lançaram fogo à viatura cujo depósito de gasolina explodiu.

Logo nos primeiros tiros foram alvejados diversos elementos das NT, tendo o Furriel Martins Cavaco, sido atingido mortalmente e calcinado pelas chamas uma vez que foi o único que ficou dentro da viatura.

Neste momento o Alf Cruz, ao organizar NT para resistir ao IN dentro do capim, verifica que o Furriel está inanimado e a ser devorado pelas chamas em cima da viatura e volta para junto da viatura tentando puxá-lo para fora da viatura, ao mesmo tempo que o IN lança uma granada de mão incendiária para a picada tendo com o clarão detetado o Alferes, atingindo-o de imediato com 3 tiros no tórax. O Alferes ainda consegue dar ordens aos seus homens para tomarem conta das armas dos Soldados feridos, arrastando-se mortalmente ferido e sangrando abundantemente para o capim.

O IN continuou a flagelar as nossas tropas com armas automáticas e granadas, não retirando a algumas delas as cavilhas de segurança, aproveitando-se da claridade das chamas da viatura incendiada.

Como resultado imediato da emboscada, tinham ficado ilesos somente 3 soldados da Patrulha. É então que o Soldado Condutor Auto N.º 2491/65, António Nunes Soares, toma iniciativa com grande coragem e sangue frio de retirar da “Zona de morte” cinco dos seus camaradas gravemente feridos, recuperando as respetivas armas automáticas, e arrastá-los às costas para o meio do capim, salvando-os, assim, da morte certa. Vendo, ainda, que um IN tentava assaltar a viatura e capturar a arma do Furriel que ardia em chamas em cima da viatura, o Soldado Nunes corre para a viatura e tentou fazer fogo com a sua arma que se lhe encravou (…), carregou para cima do IN e com uma cronhada na cabeça do bandoleiro (turra) atirou com ele para o capim e recuperou a arma que o mesmo já segurava.

Quando chegou junto dos seus camaradas, Soldados 2714/65, Helder Martins e 692 /65 António José Brito Fadista, disse a este último que fosse a corta mato pedir socorro ao Estacionamento. Os dois soldados, Soares e Martins transportaram os feridos para uma mata próxima até que chegaram os reforços (9 homens) sob o comando do 1.º Cabo n.º 2649 /65, João António, continuando o IN a flagelar as nossas tropas.

Os quatro feridos mais graves foram transportados com a ajuda dos camaradas e dois soldados foram dados como desaparecidos. Estes, os soldados 2669/65 Manuel Gomes Pires e 2674 /65, Cândido de Sousa Mata Rosa que se encontravam feridos, arrastaram-se para o capim, tendo chegado pelos seus próprios meios às 6.00 horas do dia 28 ao Estacionamento, pelo que não foram encontrados no local e durante aquele tempo foram dados como desaparecidos.

É o 1.º Cabo auxiliar de Enfermeiro n.º 2723/65 Constantino António Teixeira que trata dos feridos, ao mesmo tempo que o IN continuava a flagelar o Estacionamento (00.00 horas, 00.45horas e 02.00 horas do dia 28 março de 1968.

Pelas 11.30 horas do dia 28 é evacuado por HELI para o Luacano o ferido que se encontrava em piores condições, o soldado 2646/65, Manuel Caetano Nunes, que, atingido por dois tiros, sangrava abundantemente, tendo vindo a falecer durante a evacuação Heli.


O relatório resume este ponto do seguinte modo:

MORTOS:

– Alferes Venâncio Cruz, Furriel José Cavaco e Soldado Manuel Nunes.

FERIDOS GRAVEMENTE:

– 1.º Cabo n.º 2640/65 Manuel Paulo Gomes da Silva, Soldado 2683/65 Manuel Francisco Mourão Gaspar, Soldado 2703/65 Fernando Pereira de Carvalho e Sodado 2709/65 Helder de Sousa Cristóvão.

FERIDOS:

Soldado 2669 Manuel Gomes Pires e Soldado 2674/65 Cândido de Sousa Mata Rosa.

3. Apoio aéreo

Em 28 de março às 09.00 horas começaram a ser feitas evacuações de Héli de Lago Dilolo – Luacano e com dois DO-27 de Luacano para o Luso.

4. Transmissões

O destacamento da NT do Dilolo esteve em contínua ligação com a CCAV  1537 na rede AM NA /GRC – 9, muito embora fosse difícil a ligação devido às más condições atmosféricas.

5. Resumo dos resultados


a) Causadas pelo In:

- Mortos ………………. 3 (1 Oficial, 1 Sargento e 1 Praça)

- Feridos graves……….4

- Feridos ligeiros ……. 2

Destruída pelo fogo a Viatura UNIMOG UN3 – MX-O1-55

- Carbonizada a Espingarda Mauser n.º 9961

b) Obtidas pelas NT:

- Mortos prováveis …. 2

- Feridos não controlados. … Alguns

- Gr. M. Def. F-1 …......2 e outra destruída.

- Invólucros …..........127


6 . Conclusões, ensinamentos, diversos

a. Conclusões e ensinamentos

A emboscada sofrida pelas NT no mesmo local que em abril de 1967 as NT foram emboscadas, revela que o IN (MPLA) regressou, como vinha desde há muito referido por este Comando, à Zona do Dilolo moralizado e fortemente armado e com um efetivo bastante considerável (…).


b. Diversos

Citações


O relatório realça a ação em combate dos principais intervenientes na operação:

Alferes Venâncio Cruz, a quem será atribuída uma Cruz de Guerra, a título póstumo, o 1.º cabo auxiliar de enfermeiro Constantino António Teixeira, 1.º  cabo João António, os soldados António Nunes Soares e os soldados Helder Martins e António José Brito Fadista.

A todos é realçado o exemplo da sua coragem: 

(…) "Deu um exemplo frisante de valentia, sangue frio, qualidades de comando e desprezo pelo perigo debaixo do fogo do IN que mereceu a geral estima e admiração dos seus camaradas presentes que contribuiu para o prestígio do Exército."

Transcrevo, também, o louvor atribuído ao Alferes Cruz, publicado na O.S. (ordem de serviço) N. 226 do RC3:

Nesta ação, comandando uma patrulha de pequeno efetivo e tendo a maioria dos seus homens sido atingidos aos primeiros tiros, deu rapidamente as ordens para a reação e vendo que em cima da viatura que os transportava, e que estava incendiada jazia um seu subordinado que começava a ser devorado pelas chamas, voltou para junto daquela e, não só, indiferente ao fogo nutrido do inimigo, tentou puxar o corpo, quando descoberto no meio da picada e iluminado pelo clarão de uma granada incendiária foi mortalmente atingido por uma rajada do inimigo. 

Logo que se sentiu ferido, o Alferes Cruz incitou os seus homens para o combate, recomendou-lhes que cuidassem das armas dos seus camaradas feridos e, sangrando abundantemente, arrastou-se para o capim onde veio a falecer. A admirável valentia deste oficial e o excelso altruísmo e rara abnegação que o levaram, conscientemente a sacrificar a vida por um seu subordinado, são paradigma das mais acrisoladas virtudes militares, causam o comovido orgulho dos seus camaradas de armas, contribuem para a Glória do Exército que devotamente serviu e honraram a Pátria. Morto em combate em 27.3.1968.

Louvado por despacho de 6 maio de 1968 de Sua Ex.ª o General Comandante da RMA, por proposta do Exmo comandante da ZILESTE “pela maneira brilhante esforçada e aguerrida como comandou a sua equipa.

Condecorado com a medalha de Prata de Valor Militar com Palma, a título póstumo nos termos do Art. 7.º, com referência ao primeiro do Art.51.º do Regulamento da Medalha Militar, de 28 de maio de 1946, pelas suas extraordinárias qualidades de coragem, abnegação e camaradagem demonstradas
(Fim do relatório) (op. cit. 53-57).

Como nota, gostaria de salientar que o soldado Joaquim Augusto Alves, sepultado no cemitério de Antime, não consta desta lista em virtude de ser natural do concelho de Cabeceiras de Basto, apesar de já estar a morar em Antime com os seus pais na altura da sua incorporação militar.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos:  LG)



Jaime Bonifácio Marques da Silva (n. Seixal, Lourinhã, 1946): (i)  foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72); (ii)  tem uma cruz de guerra por feitos em combate; (iii)  viveu em Angola até 1974; (iv)  licenciatura em Ciências do Desporto (UTL/ISEF) e pós-graduação em Envelhecimento, Atividade Física e Autonomia Funcional (UL/FMH); (v)  professor de educação física reformado, no ensino secundário e no ensino superior ; (vi) autarca em Fafe, em dois mandatos (1987/97), com o pelouro de cultura e desporto; (vii) vive atualmente entre a Lourinhã, donde é natural, e o Norte;  (viii) é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/1/2014; (ix) tem 86 referências no nosso blogue.

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2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Jaime, encontrei aqui uma referência ao padre Manuel Leal Fernandes, natural de Bismula, Sabugal:

Bismula – Padre Manuel Leal Fernandes
Bismula / 6 de Setembro de 2013

(...) Entre 1967 e 1970, foi nomeado capelão militar com uma comissão em Angola. A este propósito, afirma: “ foram dois anos muito duros, passados em pleno mato, no Norte de Angola. Eram rapazes de grande bravura, com muito espírito de camaradagem e solidariedade. Não gosto de recordar esses anos, e se escrevi um livro – “ Angola – As Brumas do Mato”-, para contar o que aconteceu nesses anos de guerra e mato, foi sobretudo para exorcizar lembranças, ou seja, é a tal “ catarse” ou purificação de memórias de que já falavam os antigos filósofos gregos.” (...)

Anónimo disse...

... a supra citada obra (epigrafada "Angola - as brumas do mato"), publicada em edição de autoria do Padre Manuel Leal Fernandes, não é de 1977, sim de Dez1997.
(ass.: João Carlos Abreu dos Santos; CC-01085661)