sábado, 10 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25827: Os nossos seres, saberes e lazeres (640): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (165): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 4 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Não deixa de ser intrigante que um significativo acervo de um artista que a historiografia de arte põe permanentemente em rodapé, só pode ser visitável se o turista souber antecipadamente que esse museu existe. Pedro Cruz estudou em Paris e parecia fadado para altos voos, o que verdadeiramente não aconteceu, teve mesmo que meter as mãos em trabalhos que não eram de ateliê, certamente para garantir sustento. Confesso que admiro o seu traço no desenho, e há qualquer coisa na observação do artista que nos permite quase falar com o retratado, é como se aquele traço dominante chegasse à essência de quem para ele posava. O acervo permite ver uma sucessão de nus, certamente parte fase obrigatória da iniciação em Belas Artes, há imensas paisagens e ramalhetes de flores mas tudo de um academismo mofo, e há aquele desenho que da contemplação nos faz passar ao diálogo com o invisível, a essência do retratado. E gosto a valer do edifício da Santa Casa da Misericórdia de Pedrógão Grande, quase tanto como da pintura ao gosto popular do altar-mor da igreja.

Um abraço do
Mário


Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (165):
Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior – 4


Mário Beja Santos

A vila de Pedrógão Grande tem um acervo digno de visita: a igreja matriz, já referida, o Centro de Interpretação Turística que aproveitou o que terá sido uma bela casa senhorial, a ponte filipina, classificada como monumento nacional e que foi, até 1964, a única ligação entre Pedrógão Grande e Pedrógão Pequeno com o distrito de Castelo Branco; há uma casa-museu do Comendador Nunes Corrêa, legou à terra dos seus ancestrais várias coleções de objetos com destaque para um belo quadro de João dos Reis; o folheto turístico não refere o Museu Pedro Cruz que é digno de visita, como também não há uma palavra para as valiosas coleções que podem sem contempladas em Vila Isaura, constituída por vários núcleos, como o do Povo Ratinho, o Maçónico e o inteiramente dedicado à I República; iremos agora falar deste Museu Pedro Cruz e da Misericórdia de Pedrógão Grande, fundada em 1470, possui um apreciável museu de arte sacra.

Para quem estuda as artes plásticas do século XX, Pedro Cruz (1888-1980) é um ilustre desconhecido. Foi aluno de Malhoa, partiu para Paris em 1906, aparece a sua imagem na fotobiografia de Amadeo Souza-Cardoso, foram seguramente conviventes em refeições e estúrdias; ainda foi a Londres, voltou para Portugal, visitou a Suíça e passou um ano em Angola e Moçambique; o Marechal Carmona condecorou-o como Oficial da Ordem de Santiago da Espada; nos anos 1960 e 1970 pinta muitas paisagens e naturezas mortas e uma grande parte dos seus trabalhos estão hoje em coleções privadas nos EUA, está representado em museus de Lisboa, Porto, Sevilha, Rio de Janeiro e Brighton. O seu museu em Pedrógão Grande foi inaugurado em 1982, acolhe 62 dos seus quadros e 63 desenhos, foi uma doação do seu filho, o Almirante Souto Cruz.

Talvez por não ser um nome considerado cimeiro das artes plásticas portuguesas, teve que se dedicar a outros trabalhos para ganhar a vida, a exposição mostra alguns desses labores, como os desenhos que ele fazia em lenços de cachiné. Confesso que me impressiona muito o seu traço em desenho, carvão e sanguínea, linhas bem delineadas, Pedro Cruz seria um excelente observador, os seus retratos deixam transparecer a personalidade do retratado; não poderei dizer o mesmo das suas paisagens e desenhos florais, demasiado formais, mantidos dentro de uma linha puramente académica; e os seus nus, homens e mulheres, permitem perceber a têmpera e o dom artístico que ele possuía. É o que aqui se procura mostrar numa seleção de imagens dos seus trabalhos que mais me impressionaram.
Busto de Pedro Cruz
Pedro Cruz – também fez parte da Fábrica Carpe, de tecidos e estampagens de Cachiné – lenços de cabeça – 1935

Este Museu Pedro Cruz, como já se referiu faz parte de um conjunto de três museus que estão à responsabilidade da Santa Casa da Misericórdia de Pedrógão Grande. A menina que nos acompanha sugeriu a visita da igreja e do museu da Santa Casa, o tempo está péssimo, parece uma boa sugestão, pomo-nos a caminho. Numa das ruas do centro histórico encontro Nuno Soares, funcionário da biblioteca municipal, onde doei um acervo em memória de uma filha. Falamos disto e daquilo, é nisto que ele me recorda que a população do concelho se tem vindo a transfigurar, 44% dos recenseados são estrangeiros, uma boa parte dos serviços públicos teria colapsado sem gente oriunda do Brasil e das antigas colónias africanas. E vou pelo caminho a meditar como temos a desfaçatez de andar a injuriar os imigrantes que se prestam a pôr em funcionamento o que os aborígenes não querem fazer. E assim chegamos à Misericórdia.
Aprecio imenso esta fase transacional entre o maneirismo e o barroco ao gosto popular, veja-se este quadro do retábulo à direita, S. José a apreciar a situação, os louvores que vêm dos anjinhos do céu, como foi possível termos enquistado a ideia de que aquela noite em Belém permitia apresentar o menino nu já com o corpinho desenvolvido. As colunas são de capitel coríntio, estão aqui três cenas fundamentais da mensagem cristã: o anúncio da vinda do Messias, o nascimento e a morte que prepara a ressurreição.
Gostei tanto da imagem que agora lhe dou destaque, o pintor deve ter tido um esforço enorme em martelo a ovelhinha, pôs o burro e a vaca a diferentes níveis, e gosto muito daquele olhar cândido da mãe a olhar o seu Filho.
Banco do século XV para uso dos irmãos da Misericórdia
A antiguidade desta confraria fala mais alto, fizeram bem, em intervenções posteriores, não alterar a forma do edifício primitivo, ele embebe-se no corpo da igreja, guarda uma severidade rústica impressionante
Fachada da igreja da Misericórdia de Pedrógão Grande

Até agora, houvera uma chuva mansinha, desta vez o céu descarregou em força, toca de ir a penates, ler no aconchego até amesendar, e ter esperança de que a informação do IPMA para amanhã se confirme, haja bom tempo para ir ao Moinho das Freiras e muito mais, deu-me uma vontade enorme de voltar às Fragas de S. Simão, são só quatro dias de festejo, não vale a pena meter-me em cavalarias altas e sonhar com idas à Sertã e a Oleiros, há mais marés que marinheiros.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 3 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25805: Os nossos seres, saberes e lazeres (639): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (164): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 3 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

O banco do séc. XV é uma raridade, talvez seja do refeitório.
No período anterior à Reforma, os bancos de igreja eram raros, apenas no século XV, quando os bancos de pedra do século XIV foram substituídos por bancos de madeira.

Valdemar Queiroz