quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25817: Historiografia da presença portuguesa em África (435): Quando o Governo de Cabo Verde só noticiava as receitas alfandegárias da Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Março de 2024:

Queridos amigos,
Finda que estava a preparação deste livro que intitulei "Guiné, Bilhete de Identidade", considerei que era o momento propício para arrumar as botas quanto a pesquisas do século XV ao século XX. Uma senhora bibliotecária olhou-me a direito quando lhe disse que preparava a minha saída da cena, considerava espiolhada a bibliografia essencial, o que havia nos reservados, e falta-me força anímica para me atirar às caixas do Arquivo Histórico Ultramarino, sonhava gozar o tempo de lucidez que me resta a folhear papéis nos Arquivos da Defesa Nacional e do Ultramar. E com o mesmo olhar firme fui advertido de que teria ainda umas pratadas de substância, os "Boletins Officiais do Governo de Cabo Verde e da Guiné Portuguesa", infelizmente na Biblioteca da Sociedade de Geografia há lacunas nos primeiros anos, mas há lá muito para ler. Comecei pelos anos 1844 a 1849, não escondo o meu pasmo por a Guiné só valer para Cabo Verde o que dão as receitas alfandegárias de Bissau e Cacheu, há igualmente umas referências a nomeações ou destituições ou passagens de licença para tratamento, insignificâncias para mim totalmente incompatíveis quando naquela porção continental os franceses se preparavam para dominar o Casamansa e os ingleses procuravam criar colónias em Bolama. Retive um quadro de fomes em Cabo Verde e umas picardias de imprensa a propósito de navios estrangeiros que tinham ajudado a defender Bissau, em 1844, de ataques de Grumetes e Papéis.

Um abraço do
Mário


Quando o Governo de Cabo Verde só noticiava as receitas alfandegárias da Guiné

Mário Beja Santos

Quando me preparava para dizer adeus à papelada que se prende com a História da Guiné Portuguesa, a competente bibliotecária da Sociedade de Geografia de Lisboa lembrou-me que havia duas fontes ainda não espiolhadas, de fio a pavio: o Boletim Oficial de Cabo Verde e o Boletim Oficial da Guiné Portuguesa. Comecei então pelos anos 1844 a 1849, do Governo-Geral de Cabo Verde, tudo reunido num só volume. Deu para perceber que a Costa da Guiné nem chegava a ser um parente pobre, estamos numa época em que franceses e ingleses comprimem a Pequena Senegâmbia, há vultos como Honório Pereira Barreto que enviam documentos fundamentais para o governador que poisa em diferentes paragens, Ilha da Brava, Vila da Praia ou Ilha de Maio, nem uma só palavra sobre tais acontecimentos, as referências à Guiné prendem-se fundamentalmente com as pautas aduaneiras, descritas minuciosamente, tudo quanto se importa, desde aduelas e pregos a mobiliário ali vem mencionado com as respetivas taxas; há igualmente algumas referências de alferes promovidos a tenente ou suspensão de atividades por motivos de saúde, por exemplo, do comandante da Praça de Bissau. Do que me foi dado ler nestes anos de 1844 a 1849 é deveras intrigante perceber o que é que o senhor governador e a sua equipa pensavam da Guiné, não há mesmo qualquer menção de que o senhor governador tenha para ali viajado.

Mas encontrei alguns documentos que podem ajudar o leitor a entender melhor o que se passava naquelas paragens, isto em termos de mentalidade colonial. Estamos em 1846 e no número de 14 de março é publicado um despacho de D. José Miguel de Noronha, Brigadeiro Governador-geral. Retenho o que me parece de mais esclarecedor:

“Sendo indispensável lançar mão de medidas extraordinárias para conjurar a terrível calamidade da fome, que ameaça a vida de uma grande parte dos habitantes desta Província, que, por falta de meios, e pela impossibilidade de os obter pelo trabalho, não podem comprar os mantimentos de que carecem por mais módicos que sejam os preços com que os mesmos géneros entrem no mercado,
o Governador-geral da Província, em Conselho, convencido de que chegou o caso de prover por todos os meios possíveis à salvação pública, determina o seguinte:

Artigo 1.º - É criado um imposto com a denominação de patriótico para se aplicar o seu produto à compra de mantimentos que se distribuam aos indigentes e miseráveis que não puderem trabalhar.

Artigo 2.º - Este imposto será lançado por uma vez somente sobre os senhores escravos; e cobrado na razão de 15 tostões por cabeça de escravo empregado em serviço doméstico, ou em ofício, e maior de 14 anos, sem distinção de sexo; e de 10 tostões para os dessa idade até à de 7 anos inclusive da mesma forma.

Artigo 3.º - Pelos escravos que andam efetivamente no campo, ou seja, empregados na cultura, ou na pastoreação de gados, desde agosto do ano passado, e que excedam a 14 anos, o imposto será de 840 reis por cabeça, sem distinção de sexo.

Artigo 4.º - O lançamento e cobrança deste imposto far-se-á pelo recenseamento dos escravos concluído em 1843: mas os senhores de escravos a quem desde então hajam morrido alguns, serão isentos do imposto que por eles lhe coubesse apresentando certidão legal de óbito.

Artigo 7.º - Este imposto será arrecadado em dinheiro, ou em género à vontade do contribuinte - milho, ou feijão ou farinha de mandioca – pelos preços a que estão avaliados para o recenseamento eleitoral. Artigo 8º - As câmaras municipais fornecerão as casas necessárias para armazenagem dos géneros havidos pelo imposto, e comprados com o produto dele.”


Mas logo a seguir a esta circular seguia-se outra aos chefes das alfândegas determinando que a semente de purga de exportar para o Reino e Ilhas pagará no acto da saída os direitos de 10% de seu valor no mercado, que o tabaco em folha pagará por entrada os direitos de 85 reis o arrátel: os charutos de Havana 1.600 reis por milheiro, e os de outros países 1400 reis também por milheiro.

Mais adiante temos uma circular temos uma circular para os presidentes das comissões especiais, que começa assim:

“Depois de exaustos todos os meios para as classes mais abastadas da província a concorrerem ao socorro dos seus concidadãos indigentes, que ou por não terem trabalho em que se empreguem ou por lhes faltarem as forças necessárias para ele, carecem de meios para comprarem o sustento de que se hão de alimentar-se, conheceu o Governo, por uma triste experiência, que os socorros obtidos eram tão imensamente mesquinhos que não só não melhoravam a situação mas agravavam-na, pelas ideias que podiam incutir nas pessoas quando uma tão grande calamidade ameaça o País.”

E explica-se a seguir que foram criadas comissões de subscrição, estudados os próprios recursos, concluiu-se que o mal era muito grande para se curar com paliativos; o Governo não podia fazer adiantamentos, faltava-lhe meios pecuniários. E diz-se o seguinte:

“A suspensão dos pagamentos aos empregados públicos, que são nesta Província os únicos agentes da circulação, era não só uma barbaridade, mas era até um erro político, porque essa circulação pararia imediatamente e a estagnação redundaria em mal para o povo e em mal também para o Governo. Nenhuma providência pareceu mais suave, mais regular, e ao mesmo tempo mais expedita, porque ela tem a vantagem de recair unicamente nos lucros dos artigos alimentares; tem a vantagem de ser mais proporcional às possibilidades de cada um; e oferece ainda a vantagem de ser de rápida cobrança, e por isso, de não trazer o inconveniente de distrair a parte dos rendimentos públicos, correspondente à importância do imposto, na aquisição dos artigos de consumo para que é aplicado.”

E considera-se igualmente que a distinção feita entre escravos empregados no uso doméstico ou em ofícios e na pastoreação de gados ser equitativa.

Esta uma descrição que me surgiu num período de fomes, em tempo de escravatura, uma tentativa do Governo em encontrar dinheiro mediante uma tributação especial.

Mas quem procura sempre alcança, lá se encontrou uma referência no Boletim Oficial à Guiné a acontecimentos referentes a 1844. Vale a pena transcrever:

“A Nação Portuguesa tem na sua passada e presente História mui gloriosas reminiscências pelos altos feitos que cometeu, e pelos imensos serviços que prestou à humanidade, à religião e à civilização, para que se deixe fascinar por uma mesquinha e mal cabida inveja.

Respondemos a um artigo que se lê na Presse, jornal de Paris, com a data de 20 de abril deste ano, e de que somente agora tivemos conhecimento.

O ilustre redator daquela Folha foi sem dúvida mal informado quando lançou ao Governo português a mui severa e injustíssima acusação de ingrato para com os serviços que em Bissau prestou o comandante Baudin, oficial da Marinha francesa, em setembro de 1844; e para os que prestou o capitão Potestas, da referida Marinha, quando os Grumetes e Papéis atacaram aquela Praça: eis o final do seu artigo que fielmente traduzimos:

‘Que recompensa teve o comandante Baudin por esta devotação cavalheiresca, a que nada o obrigava? O seu próprio Governo aprovou este procedimento, o Governo de Bissau agradeceu-lho, mas o Governo português nem ao menos lhe mandou uma carta de agradecimento, ou ao capitão Potestas.’

Esta é a acusação; que se não é justa, ao menos tem o mérito de ser precisa e clara; a nossa resposta sê-lo-á também, e de mais a mais justa.

Começaremos por afirmar que é esta a primeira vez que ouvimos falar de um capitão Potestas, que tivesse estado em Bissau, e muito menos que ali houvesse feito serviços; nem as comunicações oficiais nem as cartas particulares falam de semelhante indivíduo: este capítulo da acusação perdeu, pois, toda a sua importância.

Quanto ao comandante Baudin, a quem o Governador de Bissau oficialmente, e as cartas particulares, fazem justiça por a sua inteligência e bravura, consta-nos que S. Ex.ª o Governador-Geral desta Província lhe dirigira uma mui lisonjeira carta de agradecimento pelos serviços que ali prestara, assim como por via do comodoro americano dirigira uma carta semelhante ao capitão de fragata dos Estados Unidos Preble, e por via de S. Ex.ª o Governador da Gâmbia outra ao comandante de um brigue de guerra inglês, que todos fizeram serviço naquele ponto aos portugueses de Bissau, traiçoeiramente atacados pelos negros.

Eis aqui prostrado por terra o segundo capítulo da acusação. Para nada faltar à acusação, tem até o defeito gravíssimo de haver sido feita com muita precipitação. Nada mais diremos sobre o assunto.”


Fica-se, pois, a saber que Bissau fora apoiada num período crítico por forças navais estrangeiras, não será acontecimento singular, antes e depois os Grumetes e Papéis da ilha de Bissau farão a vida negra a quem habita dentro dos muros ou circula até ao cais do Pidjiquiti. Reparei nos termos da escrita de que o bispo se apresenta como Bispo de Cabo Verde e do Continente da Guiné Portuguesa e o governador como Governador de Cabo Verde e da Costa da Guiné. Se dúvidas subsistissem de que não se sabia bem de que território se falava, basta ver como se apresentavam o bispo e o governador.

Três imagens retiradas do Boletim da Agência Geral das Colónias, ano 5º, fevereiro de 1929, nº44, dedicado à Guiné
Capa das Memórias fotográficas, dedicadas a Raquel Soeiro de Brito, 2021
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Nota do editor

Último post da série de 31 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25798: Historiografia da presença portuguesa em África (434): Na sua "Memória - Sobre a Prioridade dos Descobrimentos Portugueses na Costa da África Ocidental, Para servir de ilustração À Crónica da Conquista da Guiné de Zurara"; Paris, Livraria Portuguesa de J. -P. Aillaud,1841, o 2.º Visconde de Santarém refuta os falsos argumentos da França sobre a Guiné (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Valdemar Silva disse...


"E considera-se igualmente que a distinção feita entre escravos empregados no uso doméstico ou em ofícios e na pastoreação de gados ser equitativa.
Esta uma descrição que me surgiu num período de fomes, em tempo de escravatura, uma tentativa do Governo em encontrar dinheiro mediante uma tributação especial."

Pois, isto passava-se em 1846 e ainda não estávamos em 1854.
Não fora Beja Santos "coscuvilhar" e publicar estes artigos da Sociedade de Geografia só ficávamos saber o que aprendemos na escola sobre as nossas províncias ultramarinas do Minho a Timor, neste caso da Guiné com a população de varias "raças" de papeis, balantas e bijagós.

Valdemar Queiroz