quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25815: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte IX: A exposição Lameta, na Univesdade de Díl, e a magia da música em língua portuguesa





Timor Leste > s/l > 2019 >  Naprimeira foto de cima, o Rui Chamusco


Fotos: © Rui Chamusco (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Continuação da publicação de uma selcção das crónicas do Rui Chamusco, respeitantes à sua segunda estadia em Timor Leste (janeiro / julho de 2018) (*). 

Membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último, é cofundador e líder da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015 e com sede em Coimbra.

Professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, e a viver na Lourinhã, o Rui tem-se dedicado de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem desenvolvido no longínquo território de Timor-Leste.

Desta vez, o Rui Chamusco partiu para Timor, em 25 de janeiro de 2018, com o seu amigo, luso-timorense, Gaspar Sobral (foto acima, à direita), cofundador também da ASTIL. 

Em Dili  ficaram em  Ailok Laran, nos arredores de Díli, na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do Gaspar Sobral, e que andou, com a irmã mais nova, a mãe e mais duas pessoas amigas da família, durante três anos e meio, refugiado nas montanhas de Liquiçá, logo a seguir à invasão e ocupação do território pelas tropas indonésias (em 7 de dezembro de 1975) (tinha "apenas" 14 anos...).

 A menina dos seus olhos (dos très, o Rui, o Gaspar e o Eustáquio) é a Escola de São de Francisco de Assis, de Manatti / Boebau, município de Liquiçá. A escola e as suas crianças da montanha que finalmente podem aprender música e português.


II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)


Parte IX -  A exposição Lameta, na Univesdade de Díl, e a magia da música em língua portuguesa


Dia 28.04.2018, sábado  - Sempre em festa...


A vida em Ailok Laran e Dili é mais calma mas menos interessante (desculpem-me os citadinos). No entanto, vão acontecendo coisas que não posso deixar de descrever.

Desde que chegamos da montanha que se tem ouvido música em alta intensidade que começa ao final da tarde e termina ao amanhecer do dia seguinte. Quem tiver problemas em adormecer está tramado. Mas aqui, em Timor, é assim. Não há qualquer legislação que tal impeça. E ninguém individualmente tem coragem e ousadia de fazer queixa.” Não há problema”, dizem eles, “é sempre assim!”. Pois que seja. Agora que incomoda, lá isso incomoda.

Questionados sempre a origem de tanto barulho, mas com boa música, fomos esclarecidos. Nos primeiros dias (noites) devia-se à celebração do “final de luto” da família do defunto falecido há um ano, que a partir de agora deixam os sinais de tristeza. Outras culturas, bem diferentes das ocidentais. Festa rija a culminar a celebração de um ritual ligado à morte.

A segunda dose, que ainda está em vigor, é a festa de casamento, que dura há umas boas noites, e em que os convidados e outros comem, bebem e dançam à conta do legado que ninguém sabe qual é, pois é entregue em envelope fechado. 

Diz o Gaspar que na sua juventude, ela e os seus amigos juntavam muitas moedas para parecer muito dinheiro e assim puderem entrar e usufruir das benesses desta cerimónia. Como não era de bom tom os noivos abrirem o envelope à frente dos oferentes, divertiam-se à grande e à francesa sem que alguém os incomodasse.


Dia 29.04.2018, domingo - As crueldades 
da guerra

Logo de manhãzinha, ouviu-se uma voz não habitual de alguém que chegava e que cumprimentava os da casa. Curioso, tentei saber de quem se tratava. Era, nem mais nem menos, um senhor por volta dos cinquenta anos, que vinha visitar o padrinho Gaspar. Diz o padrinho que é o único afilhado que tem em Timor.

Depois de algum tempo associei-me ao grupo, e mais do que falar tentei ouvir as conversas em tétum, algumas vezes com tradução, que descreviam tempos passados e recordações. Mais uma vez se lembraram as cenas da invasão indonésia. 

O pai do senhor que chegou,  foi amarrado e morto pelas tropas invasoras, logo aqui ao lado. Os irmãos Mariano (Mari) e João Moniz (Eustáquio) contam que a destruição da casa de família onde agora estamos,  foi presenciada por eles próprios mais o irmão Abeca, e que os indonésios depois de lhe pegarem o fogo por todo o lado, laconicamente lhes disseram: “Podeis ir a buscar as vossas coisas lá dentro.”

O que mais me admira é que eles falam nestas cenas com tranquilidade, sem qual quer esboço de ódio ou de vingança. Há quem por aqui diga que o grande erro dos indonésios foi terem matado tanta gente. Duzentos mil mortos num universo de setecentos mil é realmente significativo. 

Caso contrário teriam todas as condições para serem queridos desta gente, pois as coisas boas que cá fizeram são muitas e das quais este povo ainda beneficia. Em qualquer invasão, a guerra é sempre cruel para qualquer das partes beligerantes. 

O Gaspar comentava, com toda a razão: “a guerra é o grande mal da humanidade”.



Dia 30.04.2018, segunda feira  - A magia do “Mundo Mágico”


Não. Não se trata de truques ou de ilusionismo. O “Mundo Mágico” é uma escola que, como muitas outras, se dedica de alma e coração à educação de crianças desde as mais tenras idades. A sua diretora, a professora/educadora Diana Rebelo, tem sido incansável no apoio que nos tem prometido e dado à nossa escola em Boebau. Senhora de muito trabalho mas que não nega ajuda a ninguém. “Naquilo que eu puder contem comigo”, diz-nos ela.

Pois hoje estivemos de novo no "Mundo Mágico", a fim de concretizarmos o estágio de duas senhoras de Boebau para que, quanto antes, elas possam trabalhar Escola de São Francisco de Assis. Com certeza que irão aproveitar ao máximo os ensinamentos deste estabelecimento. As crianças mais pequenas de Boebau agradecem.

Sabemos de antemão que a ajuda do “Mundo Mágico” pode não ficar por aqui, porque já me apercebi do espírito de solidariedade que a sua diretora possui, bem como toda a sua família. A magia não é fruto de um efeito da varinha mágica mas sim de muito trabalho e competência.



Dia 02.05.2018, quarta feira - Preparando a exposição


É já na próxima sexta feira que terá lugar a exposição LAMETA, na Universidade UNTL em Dili, no contexto de celebração da Língua Portuguesa, organizado pelo Departamento de Língua Portuguesa desta instituição de ensino. 

Aqui na casa, em Ailok Laran, é uma azáfama na confeção dos painéis que serão o suporte dos documentos a expor. Mais de cem folhas A3 que teremos de afixar. Estávamos a contar com o empréstimo dos expositores da escola portuguesa Rui Cinati, mas tal não é possível devido às necessidades da própria escola durante estes dias. 

Mas o Eustáquio, que é um homem desenrascado, já pôs ombros à obra e os painéis estão quase todos prontos. Amanhã serão transportados para a universidade, onde irão ser devidamente preenchidos e colocados. Pode o amigo João crisóstomo ficar descansado que a exposição vai ser um êxito.

Esta exposição será enriquecida com música. Um pequeno grupo de crianças de Ailok Laran irá cantar, acompanhadas ao acordeão, um reportório de músicas em português, que com certeza farão o deleite de muitos dos ouvintes. 

Até a mim, que os ensaiei, me comovem e dão esta alegria de, muito longe de Portugal, poder ouvir estrangeiros cantando tão bem as nossas canções. Estamos ansiosos, mas com muita confiança de que tudo sairá bem.


Dia 04.05.2018, sexta feira - Grandes momentos!...

nossa presença na Universidade Nacional de Timor Leste (UNLT), através da exposição Lameta e das crianças de Ailok Laran está a ser alvo de muitas atenções. Por isso temos confiança de que tudo vai correr bem. Algum cansaço na véspera e alguma apreensão, mas nada que nos incomode ou nos demova.

Às 9.00 horas a exposição já está montada e , a pouco e pouco, vão chegando ao local alunos, professores, convidados. Esperam altas individualidades que, à medida que vão chegando,  nos vão cumprimentando e mostrando o seu interesse pelo conteúdo desta exposição. 

Saliento atitude do senhor Reitor da UNTL, acabado de chegar de Lisboa, que demoradamente conversou comigo dando conta do que esta universidade irá fazer em prol da Língua Portuguesa. Notei-lhe muito entusiasmo nas iniciativas que apresentou.

Seguidamente, no auditório aqui ao lado, procedeu-se à abertura da sessão desta jornada dedicada à Língua Portuguesa, sob o lema “Língua Portuguesa um elemento da nossa identidade”. 

Vários oradores fizeram as suas intervenções: Diretora do Departamento da Língua Portuguesa;  Reitor da Universidade, Embaixador de Portugal em Timor; o editor do livro hoje aqui lançado;  o Dr. Benjamim Corte Real (antigo reitor desta universidade) que fez uma intervenção sapiencial sobre o livro em questão;  e finalmente, este vosso humilde servo, a quem pediram, por ausência do amigo João Crisóstomo, que dissesse algumas palavras sobre a exposição. 

Não me fiz rogado, até pelo respeito e carinho que o João nos merece, e avancei para o palco, acompanhado dos meus pequenos cantores. Pela primeira vez na minha vida, escrevi numa folha o que pretendia dizer, e li:

“ Exmo Sr. Reitor da UNTL, Exma.Sra. Diretora de Departamento de Língua Portuguesa, Exmo.Sr Embaixador de Portugal em Timor Leste, ilustres convidados, senhores professores e estimados alunos.

É para nós uma honra podermos participar neste evento promovido pelo Departamento de Língua Portuguesa desta universidade, através da exposição Lameta e da interpretação de algumas canções em português por este pequeno Grupo de Crianças de Ailok Laran.

A exposição Lameta do nosso amigo ausente João Crisóstomo, que podemos visualizar no átrio deste auditório é um desconhecido contributo que as comunidades luso americanas deram para a auto determinação de Timor Leste. E, mais do que as palavras estão os fatos registados nos documentos expostos. 

Esta coleção representa um bem inestimável do património deste povo, e pretende ser, sobretudo para os jovens, um instrumento de informação e de preservação da memória coletiva de Timor Leste. 

Foi graças à influência e pressão exercida pelo Lameta (Movimento Luso americano para a Autodeterminação de Timor Leste) que os Estados Unidos alteraram a sua posição de apoio a Timor leste, que antes era pró indonésia. Esta exposição é a comprovação desta influência e dos caminhos que o movimento Lameta percorreu durante os ano nos de luta.

A presença destas crianças para interpretação de canções em português pretende demonstrar que a música tem um papel muito importante no processo de aprendizagem de qualquer língua, também da Língua Portuguesa. Um longo caminho ainda a percorrer. Com o esforço e boa vontade de todos conseguiremos atingir estes objetivos.

Agradecemos ao Departamento de Língua Portuguesa de ter confiado em nós e de nos ter concedido esta oportunidade.

A todos MUITO OBRIGADO.”



Depois fui entregar dois exemplares do livro Lameta que o João me deixou, um ao Senhor Reitor da UNTL e outro à Sra. Diretora do Departamento.

O que veio a seguir, foi magia para aquele público. Quando se começou a ouvir o acordeão e as vozes no Hino da Alegria (cantado e tocado em notas de bambu), na canção A Chuva que a Adobe cantou, na canção As Notas do filme Música no Coração, o público delirou e não parava de aplaudir. 

Sim, foi magia e muita emoção difícil de controlar para mim. Os elogios e parabéns foram tantos que até parecíamos vedetas de televisão. Muitas fotografias a pedido, alguns videos ( o próprio reitor não resistiu a fazer a sua reportagem). Os miúdos então exultavam de alegria ao verem tanta aceitação. 

Para cúmulo, já no local da exposição, brindamos os visitantes com mais umas quantas canções portuguesas (Rama de oliveira, Ao passar a ribeirinha, A minha terra é linda, Rosa enxertada, Ó minha rosinha) e mais havia ainda por cantar, não fosse a preocupação dos responsáveis do evento em que as crianças fossem comer e beber qualquer coisa.

Um dia a não esquecer por adultos e sobretudo por estas crianças que abnegadamente participaram neste evento.

Dia 05.052018, sabado  - Sorrisos contagiantes


Mais uma vez fico enfeitiçado com os sorrisos desta gente. Tu passas onde passares e, aonde parece materialmente tudo faltar, surgem caras sorridentes que dão o “bom dia”, a “boa tardi!”. Como pode alguém, que sabemos de antemão ter carência de pão(arroz) para a boca expressar tamanhos sorridos? E pronto! Ficamos apanhados para acudir a qualquer emergência.

Hoje de tarde passamos como muitas vezes o fazemos em frente da casa do falecido Vitor, já várias vezes referido nestas crónicas. Olhei para dentro da mesma e só vi um grande vazio. Poucas coisas haverá por lá. Cá fora, gente e mais gente, que aqui é que se está bem. Aquele “boa tarde” coletivo, acompanhado de vénia e de sorriso aberto, dirigido ao Eustáquio e a mim que passávamos de carro, ficou-me na retina dos olhos como um quadro que dificilmente esquecerei.

Compreendem agora a nossa solicitude e os apelos de ajuda que de vez em quando fazemos? Não há como esquecer este povo, esta pessoas em concreto. Não me interessa que digam: “ mas o Estado timorense é rico “; “ não tens mais onde gastar o teu dinheiro?...” 

Quando à nossa volta há gente com fome de pão e de outras necessidades básicas, não podemos ficar indiferentes, cuspir para o ar e desculpar nos com o que os outros (incluindo o Estado) deve ou não deve fazer. Claro que não somos nós que vamos salvar o mundo. Mas ajudamos. E isto não estar a armar-me em herói. Eu queria ver se qualquer um de vocês na mesma situação ficaria ficaria indiferente a estes sorrisos... (...)

 (Continua)

(Título, excertos, revisão / fixação de texto, itálicos e negritos:  LG)
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