quarta-feira, 31 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25795: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte VIII: Antigamente só de cavalo ou a pé, hoje já há "motores" e "carretas"...para chegar às montanhas de Liquiçá



Foto nº 1 > Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > Escola de São Francisco de Assis > 2020


Foto nº 2 > Timor Leste > Díli  > 2016 >   João Moniz Sobral ("Eustáquio") e Rui Chamusco


Foto nº 2 > Timor Leste > Díli >  2020 > "Eustáquio", esposa  (já falecida) e os seus quatro filhos (um dos rapazes, vive e trabhalha no Reino Unido)


Foto nº 4 > Timor Leste >  s/l > 2014 > Um paisagem da montanha

Fotos da página do Facebook do João Moniz, com a devida vénia
 


1. Continuação da publicação de uma seleção das crónicas do Rui Chamusco, respeitantes à sua segunda estadia em Timor Leste (janeiro / julho de 2018) (*).

Membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último, é cofundador e líder da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015 e com sede em Coimbra. Professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, e a viver na Lourinhã, o Rui tem-se dedicado de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem desenvolvido no longínquo território de Timor-Leste.

Nesta viagem (e estadia, de cinco meses), o Rui Chamusco partiu para Timor, em 25 de janeiro de 2018, com o seu amigo, luso-timorense, Gaspar Sobral, cofundador também da ASTIL. 

Em Dili ele costuma ficar na casa do Eustáquio (alcunha de João Moniz), irmão (mais novo) do Gaspar Sobral, e que andou, com a irmã mais nova, a mãe e mais duas pessoas amigas da família, durante três anos e meio, refugiado nas montanhas de Liquiçá, logo a seguir à invasão e ocupação do território pelas tropas indonésias (em 7 de dezembro de 1975). Tinha "apenas" 14 anos, o valente Eustáquio, hoje viúvo e pai de quatro filhos.

Poucos de nós conhecem os últimos 100 anos da história de Timor... Estas crónicas do nosso amigo Rui Chamusco são um bom contributo para a gente saber algo mais sobre o povo, irmão, de Timor Leste. Que, afinal de contas, continua no nosso imaginário: somos da geração que aprendeu a ouvir (e a dizer) que Portugal ia "do Minho a Timor"...


II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)

Parte VIII - Antigamente só de cavalo ou a pé, hoje já há "motores" e "carretas"...para chegar às montanhas de Liquiçá 



Dia 19.04.2018, quinta feira  - Quem ao mais alto sobe...



O amigo Cesáreo, que já é pai de três filhos, tem uma agilidade impressionante. Em conversa informal apercebeu-se de que eu estava desejoso de beber a água de coco. E, de repente, prontificou-se a subir a um alto coqueiro para deitar abaixo uns quantos frutos a fim de saciar a minha sede. 

Por mais que eu insistisse para não o fazer devido aos riscos que corria, ele depressa trepou e, lá nas alturas, munido de catana, decepou uns quantos frutos mais maduros, que em alta velocidade atingiram o chão. Cá em baixo, eu mais umas quantas crianças esperávamos com ansiedade que o Cesáreo descesse a fim de preparar para todos nós a deliciosa bebida. 

Claro que não esquecemos de guardar alguns para o Gaspar e o Eustáquio que durante esta tarde iriam chegar.


Chegada do Gaspar e do Eustáquio

Telefonaram a dizer que vinham hoje. E assim foi. Mais ou menos pelas seis horas da tarde, enquanto um grupo de crianças e alguns adultos soletrava as frases da pequena brochura “Grão a grão” (oferta do BNU Timor) e ensaiava o hino da escola, um “motor” dá sinal de chegada ao local. 

Com facilidade nos demos conta que eram os amigos Eustáquio e Gaspar. Foram de imediato surpreendidos ao serem recebidos ao som do hino, e vai daí a s fotos e gravações para a publicidade.

Claro que, estando eu sozinho há alguns dias, e nem o meu tetum nem o português dos residentes sendo fluente, fiquei muito contente com o regresso dos meus amigos. Mas dizem os de cá que aprendem melhor comigo o português, talvez devido à carência de entendimento e ao esforço que para tal fazemos. 

De qualquer maneira, bem vindos ao nosso meio. Sempre é bom desenferrujar a língua através de uma conversa corrente. Contar histórias, recordações, anedotas faz bem a toda a gente. Momentos de bom humor e de descontração fazem-nos muito bem. Amanhã outras lides nos esperam.


20.04.2018, sexta feira - Os esplendores da natureza


Se há coisa que nos encanta nesta terra são os esplendores da mãe natureza. Logo de manhã ao nascer do dia, são as “laudes” ao Criador. O sol nascente faz-nos o convite; as aves do céu começam os seus louvores; os animais da terra expressam a sua alegria. 

Cantam os galos, grunhem os porcos, ladram os cães...e os homens? Quase todos ainda dormem. Tenho por hábito deitar cedo e cedo erguer. Talvez por isso é me dado contemplar coisas que outros não vêem.

Durante a tarde levantou-se um temporal impressionante. O irmão vento parecia querer levar tudo e todos com a força do seu sopro. Todos resistiram... Foi me depois explicado que, sempre que há mudança de estação, e aqui em Timor são duas (inverno e verão),  acontece este fenómeno. É a despedida do inverno. 

Ao fim de vinte e quatro horas o vento amainou, e a vida continua. Agora já em tempo de verão, de mais seca, usufruindo de todas as vantagens que esta estação do ano nos proporciona. Por paradoxo, aqui as noites são mais frescas no verão do que no inverno. De resto mal se sente a mudança. Lá para o mês de Setembro/Outubro voltaremos ao inverno.


A horta do Cesáreo


Já perto da ribeira de Laoeli, o Cesáreo tem uma horta onde cultiva particularmente a folha “malus” que lhe vai dando algum rendimento económico. Já lhe tinha feito crer que eu desejava visitar o local para ver a sua cultivação. 

Hoje de tarde, depois do almoço, o Cesáreo, a sua filha Cesantina, o Eustáquio e eu pusemo-nos a caminho descendo a íngreme encosta até ao local do destino. Com acessos muito difíceis por veredas e matos espessos lá fomos descendo com redobrados cuidados, não fosse a cobra temida aparecer e morder. Não houve novidades. Chegamos todos bem, junto à casa da irmã do Cesáreo, que é a casa da família. Foi um regalo ver com os olhos e tocar com as mãos aquelas folhas que, na cultura timorense tanto valor têm. 

Retemperados com um café acolhedor e com a carne de um galo que o Cesáreo apanhou com mestria, acompanhada do habitual arroz, e depois de tirarmos algumas fotos, retomamos o caminho de subida, bem mais duro que o da decida. Animava-me a pequena Cesantina, uma criança de sete anos que, sem qualquer dificuldade e qual cabrita saltitante me abria o caminho. E eu, muito satisfeito comigo mesmo, por ter alcançado o que queria.


Exposição “Lameta”

Tinha prometido ao amigo João Crisóstomo: "Logo que volte a Boebau, vamos fazer a exposição na escola São Francisco". 

Por isso, estes dias e sobretudo hoje tivemos a preocupação de preparar a exposição. Ideias e mais ideias, e chegou-se à decisão de como fazer. Na sala de Nossa Senhora de Fátima foram explanadas as folhas que reúnem os documentos desta colação, de modo a estar tudo pronto para amanhã, depois da reunião geral, todos serem convidados a visitá-la.

“Lameta” é o nome que identifica o movimento criado pelo João e que quer dizer Movimento Luso Americano para a Autodeterminação de Timor Leste. Esta exposição é um complemento do livro Lameta, e que pretende dar a conhecer aos seus visitantes o desconhecido contributo das comunidades luso-americanas em causas de interesse para a humanidade: independência de Timor Leste, Gravuras do Vale do Côa, o “Dia da Consciência” dedicado a Aristides de Sousa Mendes. 

Esta é a terceira feita em terras timorenses, mas esperamos fazer ainda mais duas ou três. É um contributo importante para a memória coletiva timorense. Para finalizar informo que esta coleção faz parte do património da Escola de São Francisco em Boebau, pois o João Crisóstomo fez questão que assim fosse através de uma dedicatória, deixando assim para trás importantes pretendentes. Obrigado, João!...


21.04.2018, sábado - Reunião importante


Todas as reuniões são importantes. Mas esta reveste-se de uma importância especial pois trata-se de, em Assembleia, dar os passos necessários para a criação dsa ASTIL BM (Associação de Amigos de Timor Leste de Boebau/Manati), que será o suporte legal para o registo da escola de São Francisco.

Ao ritmo timorense, ou seja uma hora depois da hora prevista,  iniciamos as reunião às dezasseis horas que se prolongou por toda a tarde. No intervalo visitou-se a exposição Lameta, que muitos apreciaram.

Depois dos esclarecimentos necessários às intervenções solicitadas, foram aprovados os corpos sociais desta associação. A partir de agora a ASTILBM será a entidade responsável pela escola e por ouras atividades afins de suporte à mesma. Seguem-se as diligências para o registo da associação e da escola.

Votaram as propostas 46 pessoas. Depois dos compromissos assumidos seguiram-se as respetivas assinaturas.

Em conclusão direi que onde há grupos humanos haverá sempre alguns problemas e maus entendimentos, mas nada que não se resolva com uma boa explicação. Fiquei edificado com o civismo desta gente, interveniente e participativa, sempre com o objetivo de ajudar a encontrar soluções. (...)


22.04.2018, domingo - Os irmãos Zé e Nando (AbôZé e AbôNando)


Desta ninguém estava à espera. Então não é que agora os dois irmãos, devidamente combinados, nos exigem que compremos o terreno onde está construída a escola, terreno que desde o início nos teria sido dado para tal efeito?

Como para registar a escola precisamos de um documento assinado pelos doadores, á noite em família tentou-se proceder a tal, mas sem êxito. Foi então que se descobriu a razão do bloqueio: o terreno terá de ser pago. Como não havia outra solução e é urgente proceder ao registo, lá tivemos que aceitar o negócio dos vendedores. Vá lá a gente entender-se! Oportunistas também existem por cá.

Ficou-nos um amargo de boca que custa a engolir. Mas talvez tenha sido a melhor solução. Assim ninguém poderá dizer que o terreno não é nosso, pois existe um documento que prova a sua compra. Deus muitas vezes escreve direito por linhas tortas.

Dia 23.04.2018, segunda feira - As dificuldades de comunicação


Não é só a estrada/caminho de acesso. Talvez do que mais falta nos faz aqui é de corrente elétrica. Os fracos painéis solares não resolvem o problema. Não conseguem carregar um telemóvel. Muito menos aguentam a carga de um computador. A quem está habituado às novas tecnologias faz uma falta enorme. Estar duas semanas sem poder comunicar com os amigos, sem consultar a internet, o facebook, o whatsApp,  é difícil, mas sobrevivemos.

Prometeram que a eletricidade viria em breve, e até já têm os postes metálicos espalhados junto ao caminho, mas não sabemos se esta brevidade vai durar anos, como outras coisas já começadas e que nunca mais terminam. Seria uma boa prenda de Natal se o Menino Jesus deste ano já pudesse ser iluminado com a luz dos homens. Veremos, com ou sem luz artificial, porque a luz divina não falha.

Estamos em campanha eleitoral, e todos os candidatos fazem promessas ao povo que, na sua maioria, sabemos de antemão não irão ser cumpridas. Pode ser que haja algum salvador para esta gente. Assim o esperamos.



 Timor Leste > Um país montanhoso, de paisagens luxuriantes... A muitos sítios no interior (como Liquiçá, Manati, Boebau), só se consegue chegar de "motor" (motorizada), mesmo que o "pendura", em muitos troços, tenha que ir a "penantes" (como é o caso, aqui, do Rui Chamusco, a mochila às costas; "ser solidário" não é pera doce...)

Foto: © Rui Chamusco (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Dia 24.04.2018, terça feira  - Carreta, o transporte da montanha


Dizem que até nisto já houve evolução. Antigamente só de cavalo ou a pé. Hoje, embora com muitas dificuldades, viajam motas “motores”, carros (muito poucos) e carretas. 

A carreta é uma camionete de carga com adaptações na carroçaria a fim de facilitar a alguns passageiros poderem ir sentados ou agarrados nos saltos contínuos e imprevistos. 

Uma pequena empresa está montada em torno deste negócio, que todos os dias percorre estes difíceis caminhos de montanha. Logo de manhã, nos sítios do costume, vêm-se mercadorias, pessoas e animais que esperam a chegada do desejado transporte. À sua chegada tudo se apronta para carregar os seus pertences, com calma e descontração natural. Na paragem que me foi dado presenciar até houve tempo para convidar o condutor a beber o café. E ninguém se chateia porque aqui ninguém tem pressa. 

Reparamos então que havia um passageiro dificílimo, que não quereria viajar daquele modo: um porco já carregado e atado dentro de um saco conseguiu safar-se da carga, saltando e fugindo pelos espaços adjacentes. Era um festival de riso, com tanta gente atrás do porquinho que não conseguiu os seus objetivos. Foi recolocado no seu lugar com vigilância redobrada.

A carreta partiu para Liquiçá, sem saber ao certo a que horas chegará. Porque o imprevisto pode acontecer: um furo, árvores de grande porte caídas nos caminhos, resvalos, patinagens, etc... Talvez daqui a cinco horas possa chegar ao seu destino. É difícil, mas é assim.

Regresso a Dili

Chegou o dia de descermos da montanha. Combinamos a companhia, eu com o Eustáquio e o Gaspar com o Zé, e por volta das dez horas ajeitam-se as trouxas, ligam-se os motores e aí vamos nós. 

Pelo menos três horas de caminho nos separam de Ailok Laran, o nosso destino. Sabemos que vamos chegar todos partidos, mas a força interior supera a força física. “Que força é essa, que força é essa?” cantamos nós, lembrando a canção do Sérgio Godinho.

O inesperado acontece. Devido ao mau jeito da mala que transportava a exposição “Lameta” num dos buracos difíceis de contornar, a moto resvalou e, quase adivinhando o que nos iria acontecer, fomos ao chão. 

Alguma preocupação de quem estaria aleijado, mas pronto nos apercebemos de que nada de grave tinha acontecido. Umas dores no cotovelo e pulso direito, uns arranhões leves e toca a levantar do chão, que foi das coisas mais custosas devido ao peso da mochila e ao corpo mal ajeitado que me vai suportando. 

Deu para tudo: apreensão, risos, comentários, etc, etc... Tenho pena que o Eustáquio, pela primeira vez na sua vida tenha deixado ir a mota ao chão. Eu fui em parte o grande culpado. Espero que me perdoe.

Por volta das treze horas chegamos finalmente a casa, onde o almoço já nos esperava. A seguir, nada como um bom descanso, que este corpinho já meio gasto bem agradece.

(C0ntinua)

(Título, seleção de excertos, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Nota do editor:

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