quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25800: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (7): "ocupação do território", mandam eles...


Lisboa > Jantar de Natal 2007 > Os quatro magníficos da CART 1690, todos eles alferes milicianos... Ao fundo, estão o Domingos Maçarico, à esquerda, e o Alfredo Reis, à direita. Em primeiro plano, está o António Moreira , à esquerda, e o António Marques Lopes, à direita.  Todos eles feridos em combate, com exceção do Moreira. No livro, são respetivamente Zé Pedro, Aprígio, Castro e Aiveca.

Com os  quatro agora juntos na Tabanca Grande, a CART 1690 fez o pleno em matéria de alferes milicianos... Profissionalmente,  o Moreira é advogado; o Maçarico engenheiro agrónomo; e o Reis, veterinário.  Presumo que estejam todos reformados. E, de boa saúde, espero eu. 

Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2007). Todos os direit
os reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1  Estamos a reproduzir alguns excertos do melhor que o  A. Marques Lopes escreveu, nomeadaente no seu livro de memórias "Cabra Cega" (*).

Seguimos, respeitando-a,  a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 14 de outubro de 2022, às 16: 20: aqui a narrativa era já feita na 1ª pessoa do singular, assumindo o autor que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego", ou seja, o alferes Lopes  

O Lopes e os outros alferes (nesta data, ainda mantinha 
os nomes fictícios dos seus 3 camaradas; Castro, Aprígio e Zé Pedro) da companhia, a CART 1690 (que ele nunca identifica), foram  colocados no subsetor de Geba, em 1967. E andam há já meses no mato, O diálogo que se segue é a uma conversa, que tende a azedar, entre eles e o capitão, Mendonça (na realidade, o cap inf Manuel Guimarães. que irá morrer, na estrada Geba-Banjara, em 21 de agosto de 1967, na sequência de deflagração de uma mina A/C, que também irá ferir gravcemente o A. Marques Lopes).

Este excerto correponde às pp. 414/421 do livro "Cabra Cega".


Ocupação do território, mandam eles...

por A. Marques Lopes (1944-2024)


(...) Depois desta operação, comecei a pensar se não era melhor propor ao Mendonça que me mandasse para um destacamento, um qualquer, em substituição do Castro ou do Aprígio. 

Tinha chegado à Guiné no fim de Abril, estava a meio de Julho, e já tinha gramado oito operações. Não era propriamente cansaço, descansara sempre entre elas. O que estava era farto, era isso. Sempre a ver tabancas destruídas ou a ser destruídas, a ver matar e a saber que matavam. Até eu tinha matado também. Outra como a Jigajoga, então, nem pensar. Não queria voltar a isso.

 
– Estou farto disto. Vou pedir ao Mendonça para me mandar para um destacamento –  abri-me com o Zé Pedro.

 Estás parvo, pá.

– Parvo, porquê?

– Os gajos estão lá isolados, cercados de arame farpado. Têm de amochar sem poder sair. Vá lá que o Aprígio tem alguma sorte porque tem uma tabanca ao pé e pode ver algumas bajudas.

– Quero lá saber. O isolamento não me perturba nada. Estava mais sossegado, podia ler uns livrinhos e escrever. Não me importava nada. Aliás, é o que mais desejo agora.

- Ias estar sossegado? Não penses nisso. Depois destas movimentações todas em que estão a ser apertados não há-de tardar muito que os comecem a atacar.

– Isso também não me importa. Prefiro ser atacado estando dentro de um abrigo e com arame farpado entre mim e eles. É melhor do que levar com morteiradas na cabeça a céu aberto e sem saber, a maior parte das vezes, se os gajos estão ou não já em cima de mim.

– Não sei se é melhor: Poder sair quando se quiser, andar por aqui à volta, ir até ao batalhão e ao Agrupamento, e mesmo andar no meio do mato, dá um sentimento de liberdade que não se tem quando amarrado sempre num só local.

Nesse mês de Julho o Mendonça ainda me mandou para mais três operações.
A primeira foi lixada, só porque o meu grupo de combate é que teve de fazer toda a picagem do itinerário em direcção ao destacamento do Castro. Os milícias tinham sido avisados, na véspera, para fazerem a picagem duas horas antes da coluna móvel iniciar a marcha. Mas a tabanca deles fora atacada nessa noite, sendo quase totalmente destruída, e eles não picaram. Foram várias horas a passo de caracol sob grandes chuvadas, com as ATM e GMC atrás em para e arranca. O Mendonça ainda tentara via PRC10 dizer ao Castro para ele fazer uma picagem a partir do destacamento dele até se encontrarem. Mas as comunicações não funcionaram. Foi estafante.

 É uma merda, mas não temos condições  – acabou por dizer-me com ar agastado, depois de chegarem.  – Era para irmos pelo mesmo percurso, aquele em que rebentou a armadilha, mas desta vez você ia mesmo até à base deles. Foram os gajos, de certeza, que atacaram a tabanca. Mas levaria várias horas e teria de regressar à noite

De arma a tiracolo, soergui os braços, cruzei os dedos das mãos e disse interiormente "Ótimo, haja Deus"

–  O meu capitão sabe, claro, das dificuldades da primeira operação do capitão Lindolfo, não é? E não era só um grupo de combate, o meu, era uma companhia reforçada, portanto. A segunda, com mais contingente, o dobro, e com manobra bem planeada, já teve sucesso, mesmo assim com vários feridos. Por isso, meu capitão, não entendo como é que o Agrupamento insiste assim nisto com um grupo tão pequeno. Ainda por cima sem qualquer tipo de apoio. De helicóptero, por exemplo. Estou-me a lembrar dos feridos desta última vez.

–  Ó Lopes, não confunda as coisas. O papel das companhias como a do Lindolfo e do Guilhermino é intervir, por isso lhes chamam de intervenção, isto é, realizar grandes operações em áreas onde as companhias que lá estão não podem fazer, para isso têm os apoios necessários. E essas companhias não o podem fazer porque têm que estar repartidas para a ocupação dessas áreas, como é o nosso caso. Temos uma área que não é pequena, são cerca de mil e seiscentos quilómetros quadrados.

Fiquei espantado com a área da quadrícula, nunca tinha pensado nisso. Veio-me logo à cabeça que aquilo só podia ser de e para gajos com paranóia. Ainda por cima naquela mata. Estava para manifestar o meu espanto mas o Castro, que estava ao pé, antecipou-se. Aproveitara o Mendonça estar com a garrafa de cerveja na boca, desta vez não trouxera whisky.

– Ó meu capitão, ocupar   
 abanou cabeça ceticamente  –   quer-se dizer... Eu ocupo este lugarzito aqui, o que está dentro do arame farpado, a quarenta quilómetros da sede da companhia, o Aprígio ocupa outro lugarzito da mesma maneira e também a quarenta quilómetros. Vocês, quando vêm aqui ou vão ao Aprígio vêm sempre com muitas cautelas e interrogações, pois sabem que podem apanhar com minas e emboscadas. Quer dizer que daqui e do sítio do Aprígio até à sede não se ocupa nada. Que raio de ocupação é esta, meu capitão?

Eu não estava a conhecer o Castro todo prafrentex, todo decidido a cumprir sem dúvidas a sua missão de guerra. Esta não parecia dele. Apesar do isolamento e daquela floresta toda à volta parecia estar a ver melhor. Ou era capaz de ser isso mesmo que o obrigava a ter que ver mais longe, para além da cortina de ideias feitas que lhe ensombrava a cabeça. Mas o Mendonça pareceu não gostar.

 
– Não esteja com essas merdas porque você não percebe nada disto  –  e remexeu na pasta onde levava o mapa.

– Olha mais outro ignorante, afinal não sou só eu 
–  pensei e ri-me. 

O Castro olhou-me a pensar que estava a rir-me dele. Abanei a mão direita em sinal de não enquanto o Mendonça tinha os olhos na pasta.

– Até lhe vou ler isto para você saber o que é ocupação.

O Mendonça tinha já um papel na mão que, pela forma do que tinha escrito, parecia uma mensagem.

 – Assegurar a ocupação territorial do Sector. Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre. Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.

–  Está a perceber?  
 continuou depois de ler. É assim que fazemos a ocupação, é esta a nossa missão. E não só na zona da sede da companhia mas também aqui onde você está e onde está o Aprígio. Os locais onde estão servem-nos precisamente para apoio na execução dessa missão nas zonas onde estão. Foi, por exemplo, o que eu e o Lopes fizemos outro dia e devíamos fazer hoje.

O Castro ficara embatucado e não disse nada. Eu já tinha bebido três cervejas e estava naquele estado em que me dava vontade de falar. O que o capitão lera era a conversa estereotipada, o ram-ram que vinha em todas as ordens de operação que já lera. Não lhe ia dizer que eram tretas. Era o que achava mas não lhe ia dizer assim senão ele chamava-lhe também de ignorante e continuava com aquele tipo de conversa. Mas tinha que o entalar, tinha de lhe fazer ver que não era parvo.

– Pois é isso, meu capitão, acho que é isso. É a ideia que nos transmitiam lá na metrópole, o Salazar e o Governo, as tais acções de policiamento em que andávamos envolvidos. Apanhar os gajos que pensamos que são turras, dar-lhes umas tareias se for preciso para eles arrepiarem caminho, e até limpar o sebo aos mais renitentes. Também pegar fogo às casas deles, destruir as suas culturas, os tais meios de subsistência. Tudo isso para que os gajos amochem e não ajudem a subversão. Isso acho que podemos fazer. O problema é quando eles estão armados, e até acho que estão bem armados, já pude constatar isso.

O Mendonça estava calado e de olhar draconiano. O Castro estava estupefacto e pensei que devia ser pela crueza da minha descrição. Mas decidi continuar a apertar com o capitão.

– Se calhar é por isso que nunca ouvi falar em acções de policiamento lá em Mafra, só diziam que nos preparavam para a guerra. E, olhe meu capitão, até acho que foi bom porque eu pelo menos já andei metido nela e, naquela vez que sabe, quase me ia lixando. E outra coisa, meu capitão: andar por aí à cata deles, para baixo e para cima, sem conseguir nada porque eles só se mostram quando querem e vêem que nos podem lixar, o que é que adianta? Ou mesmo quando, outro dia, fomos lá acima queimar umas tabancas e destruir instalações deles. Nunca mais lá vamos voltar, se calhar, os gajos vão reconstruir tudo e continuar. Não me parece que é assim que estejamos a ocupar território, nem a restabelecer a autoridade e a ordem, como diz essa mensagem do Agrupamento.

Os olhos do Mendonça chispavam brasa e estava vermelho. Agarrava a garrafa com força parecendo querer parti-la.

 Isso é conversa dos comunistas! Acabou!   disse de forma imperativa.

– Comunistas?! Sei lá o que é isso de comunistas, meu capitão. Estávamos aqui a conversar e eu só estava a dizer o que penso.

Sabia bem de que eram acusados os comunistas, mas estava apenas a dizer o que me parecia que era. O Capitão levantou-se de modo abrupto, quase fazendo cair a garrafa ainda meia de cerveja, e apontou-me o indicador da mão direita.

 
– Daqui para a frente ponha-se a pau comigo porque eu vou estar atento a esse tipo de conversas.

Virou-me as costas e foi para onde estava o meu grupo de combate. O Castro ficara mudo, parecia aturdido. Ouvi o Mendonça dar ordem para subirem para as viaturas e levantei-me.

– Aguenta-te – disse em tom de despedida ao Castro– passa bem que eu tenho de ir andando. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos: LG)
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3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O que será feito do Moreiraq (Torres Vedras), do Maçarico (Mira), do Reis (Santarém) ?

Não temos tido notícias deles, há muito... Um abração, Luís

Anónimo disse...

Acabo de ler apressadamente o relato do Marques Lopes sobre a Operação Inquietar I. Participei ativamente nesta operação, integrado na Cart 1689.
O Marques Lopes faz uma abordagem omnipresente, parecendo querer ser o dono da guerra, relegando para segundo plano todo o potencial humano envolvido na operação.
Do perfil que traça do Capitão Maia, é no mínimo, bastante enganador. Podemos descupá-lo , porque não conhecia nem de perto nem de longe, as excecionais qualidades de comando e humanidade do Capitão Maia, falecido há pouco tempo no posto de General.
Voltaremos ao assunto certamente. Esperemos pela Inquietar II.
Fernando Cepa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

21 de outubro de 2016
Guiné 63/74 - P16626: Agenda cultural (508): No passado dia 14 de Outubro de 2016, no Salão Nobre do Quartel da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, realizou-se a sessão de apresentação do livro "Memórias Boas da Minha Guerra" da autoria do nosso camarada José Ferreira da Silva


Temos aqu uma referència ao gen Manuel de Azevedo Moreira Maia, ex-cmdt da CART 1689, que esteve em 2016 na sessão de lançamento do livro do Zé Ferreira, "Memórias Boas da Minha Guerra"...

(...) "Seguiu-se o depoimento do senhor General Manuel Moreira Maia, que enquanto Cap Art, comandou a CART 1689.

Começou por agradecer o convite do autor para ali estar, lembrando os tempos vividos na Guiné, os bravos homens que comandou e nunca esqueceu, especialmente aqueles que morreram.

Contou peripécias, boas e más, e riu-se de algumas das histórias publicadas, que desconhecia, aproveitando também para desfazer antigos equívocos." (...)