Queridos amigos,
Não se pode dizer que 1870 não tenha sido um ano prolífico em acontecimentos guineenses, e dir-se-á mesmo que a colónia recebeu impactos da legislação geral atinente a organização ou reorganização de serviços; o caráter noticioso incide sobre a problemática da saúde; as forças militares na colónia e um conjunto de serviços como o das obras públicas, pelo menos no plano formal, conheceu alterações; deu-se destaque a uma crónica da semana, alguém teve o sonho ilusório de criar purgueira e a fazer da Guiné uma terra prometida; e, igualmente, deu-se destaque à sentença arbitral do presidente norte-americano Ulysses Grant, publicado em abril desse ano; e dir-se-á que o relatório de saúde que se publica é um dos documentos mais interessantes até hoje publicados no Boletim Official, no que tange a saúde, nestes anos tão profundamente abalada pela cólera, na Guiné.
Um abraço do
Mário
Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1870) (15)
Mário Beja Santos
1870 é o ano da Questão de Bolama, a sentença arbitral de Ulysses Grant foi aceite pela parte em litígio, a Grã-Bretanha desistira das suas pretensões não só de Bolama como da região do Rio Grande de Bolola. No Boletim Official n.º 4, de 22 de janeiro, no extrato das notícias da Guiné Portuguesa dão-se as seguintes informações:
“Na vila de Bissau haviam falecido os súbditos franceses Adolphe Demay e Pierre Adolphe Beaudoin, o primeiro no dia 21 e o segundo no dia 29 de dezembro findo. A bandeira nacional tinha sido de novo arvorada em Jafunco, facto que o governador do distrito atribui aos esforços e influência do súbdito português José Gomes Pereira, proprietário estabelecido naquela localidade.
O rendimento de Alfândega de Bissau, nos meses de outubro e novembro, haviam sido de 3.083$202 réis, e o de Cacheu, no mês de outubro, de 621$802 réis. A segurança pública continuava inalterável em todo o distrito.”
No Boletim n.º 5, de 29 de janeiro, insere-se o Plano de Organização nas forças militares das províncias ultramarinas, declarando-se expressamente no artigo 2.º que as tropas do Exército da África Ocidental são destinadas para o serviço militar das províncias de Cabo Verde e Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola. Ia-se gradualmente modelando a presença portuguesa através da inserção de serviços pela malha do território, isto graças a legislação que contemplava todas as províncias ultramarinas. No Boletim n.º 8, de 19 de fevereiro, publica-se a Organização do Serviço de Saúde nas Províncias Ultramarinas, no n.º 11, de 12 de março, temos a Organização Geral do Serviço de Obras Públicas nas Províncias Ultramarinas, no n.º 12, de 19 de março, a moldura das colónias penais no Ultramar.
Aparece no n.º 24, de 11 de junho, um texto intitulado Crónica da Semana, merece ser altamente referido:
“Receberam-se notícias da Guiné. Anunciara-se ali a estação das chuvas com uma estrepitosa trovoada, como é de uso. Haviam-se concluído alguns tratados de paz com os chefes mais famosos das tribos vizinhas dos nossos domínios. O estado sanitário do distrito era satisfatório. Acha-se concluída a plantação da purgueira em toda a Várzea da Companhia. Semearam-se para cima de 80 mil pés de purga, e oito dias de trabalho ativo e incessante bastaram para se levar a bom termo essa tarefa. Diz-se que, por todas aquelas colinas que bordam a Várzea que plantará semente do mesmo arbusto, que se entremeará a sementeira com pés de espinheiro e acácia.
Consta que o chefe da colónia espera ver como funcionam no tempo próprio as valas que cortam aquele campo, com o findo de lhes aplicar o remédio que carecem para se tornarem úteis e explicáveis. É na propagação desta sementeira que consiste, em grande parte, o problema económico-agrícola da província. Produzindo café, algodão, sal e purga em abundância, e dada as atuais condições económicas da Europa, fica assegurado um futuro de prosperidade e riqueza para a colónia.”
No Boletim n.º 25, de 18 de junho, transcreve-se a sentença arbitral proferida pelo Presidente dos Estados Unidos da América sobre a Questão de Bolama, vejamos os últimos parágrafos da sentença:
“E parecendo que a dita ilha de Bolama, e território fronteiro na terra firme, foi descoberto por um navegador português em 1446; que muito antes do ano de 1792 se estabeleceu uma Feitoria Portuguesa em Bissau, no rio Geba, a qual Feitoria desde então se conservou sob a soberania portuguesa; que no ano de 1669, pouco mais ou menos, se fundou um estabelecimento em 1669 no Rio Grande, o qual no ano de 1778 era uma grande vila, habitada somente por portugueses, que ali tinham residido dos pais a filhos por um longo período; que a linha de Bissau a Guinala, atravessando pelo rio Geba, inclui toda a costa na terra firme defronte da ilha de Bolama; que a ilha de Bolama ficasse adjacente à terra firme, e tão perto dela que os animais passam de uma para outra quando as águas estão baixas; que em 1752 Portugal tomou posse formal da ilha de Bolama, a qual posse sempre sustentou; que a ilha não habitada antes de 1792, e ficou desocupada, à exceção de alguns acres de terreno na extremidade ocidental, de que se serviam uma tribo indígena para a cultura de vegetais; que os títulos aduzidos pela Grã-Bretanha se derivam de uma alegada cessão feita pelos régulos indígenas em 1792, tempo em que a soberania de Portugal se tinha estabelecido na terra firme e na ilha de Bolama; que o Governo português nunca abandonou o seu direito, e ocupa presentemente a ilha com um estabelecimento de perto de 700 pessoas; que a Grã-Bretanha de 1792 tem feito tentativas para fortalecer a sua pretensão por meio de outras cessões análogas da parte dos régulos indígenas: E que nenhum dos atos praticados para fortalecer as pretensões da Grã-Bretanha foi jamais reconhecido por parte de Portugal; e não sendo exigida nenhuma outra elucidação acerca de qualquer dos pontos contínuos na exposição apresentada árbitro: Por todas as razões expostas, eu, Ulysses J. Grant, presidente dos Estados Unidos, dou a presente sentença, e decido que se acham provados e reconhecidos os direitos do Governo de Sua Majestade Fidelíssima El-Rei de Portugal sobre a ilha de Bolama, na costa ocidental de África, e sobre uma porção de território fronteiro à dita ilha, na terra firme.”
No Boletim n.º 39, de 24 de setembro, extrai-se um curioso parágrafo do relatório da repartição de saúde quanto à Guiné:
"Durante o mês de junho, com exclusão de um ou outro dia, em todos os demais majestosas trovoadas formadas a E. e E.S.E., precedida de fortíssimo vento, acompanhadas e seguidas de muita chuva que passaram por esta vila; a temperatura durante as noites foi de 28 graus e das 10h00 até às 16h00 o termómetro centígrado à sombra oscilou entre os 30 a 31ºC, nos intervalos da trovoada houve calma podre e a atmosfera esteve em geral toldada por nuvens grossas, soltas e esbranquiças.
Em muitos pontos das proximidades desta vila já se acham águas estagnadas; brevemente começaram a absorver as suas emanações ou eflúvios. Febres paludosas de todos os tipos, avultando mais as do quotidiano, acidentes sifilíticos e reumatismos foram as doenças mais reinantes.
Entre as febres paludosas do tipo diário apresentou-se um caso com sintomas congestivos cerebrais, que terminou pela morte na invasão do segundo acesso. Pelas últimas participações recebidas, consta ter sido normal o estado sanitário de Cacheu e o das margens do rio Geba e do Rio Grande.”
E, mais adiante:
“Chuvas torrenciais, atmosfera sobrecarregada de humidade, temperatura de 28 a 30ºC, ventos variáveis, mais fixos os dos quadrantes de SE e SO, estes começando por pesados aguaceiros de pouca duração, tornando-se gradualmente bonançosos e calmos; algumas trovoadas leves, e desfazendo-se logo foram os fenómenos meteóricos observados diariamente, com exclusão das trovoadas, em Bissau no mês de julho findo.
A vila de Bissau está rodeada por pântanos, além destes formou-se um dentro da vila no fosso que circula a fortaleza, este fosso, por meio de trabalhos de esgoto, que eu mesmo tenho dirigido, já se acha extinto. As febres intermitentes foram as pirexias que mais avultaram na clínica nosocomial; na da vila, além destes, apareceram já dois casos de febres biliosas dos climas quentes, e muitos de reumatismo. No Rio Grande, em Geba, em Cacheu, continua a ser normal o estado sanitário.”
Assina o chefe do serviço de saúde,
José Fernandes da Silva Leão.
A parte não oficial do Boletim Official do Governo Geral insere, por vezes, as mais imprevistas notícias, desde casais desavindos a amarguras necrológicas. No Boletim Official n.º 14, de 2 de abril, temos uma consternação pela partida de um jovem oficial numa redação que não ilude o tempo do romantismo. Diz o seguinte:
“No dia 12 do corrente mês de março faleceu na ilha de S. Vicente o facultativo de 1.ª classe do quadro de saúde desta província, Alfredo Duarte Lobo. A morte deste jovem médico apenas entrado na carreira pública ou largar os anfiteatros das aulas de medicina, foi profundamente sentida por quantos o conheciam. Moço simpático, dotado de insinuantes dotes físicos e de atrativas prendas, era afável e comunicativo, lhano em alto grau, corajoso e cheio de abnegação. A sua inteligência culta e a nobre profissão que ele honrava pelas suas luzes e desinteresse, o distinguiam entre os seus confrades, que a par de profunda dor pela perda de um colega estimado conservam gratas recordações de sua excelente camaradagem. Sofreu o quadro sanitário da província uma grave perda pelo falecimento de um dos seus mais distintos membros. Tendo sido nomeado para ir a Bissau assistir aos doentes atacados de cólera mórbus epidémico que assolava aquela mortífera paragem, Alfredo Duarte Lobo pôs-se logo a caminho com tal hombridade e bizarria, que se dissera que ia para função festival! Ninguém o viu pálido. Contava ir salvar centenares de doentes e o conseguiu, mas há custa da própria vida. Debelada a epidemia, retirou-se glorioso mas ferido mortalmente o general que dirigira a campanha o inimigo formidável. O cólera respeitou o médico mas o envenenamento palustre penetrara todas as fibras daquela organização fina. De Bissau se recolhera o nosso colega em estado de profunda anemia, que os acessos febris biliosos iam tornando cada vez mais grave. Exaustas as forças do corpo, o espírito volveu à morada eterna.”
Assina na cidade da Praia de Santiago, em 23 de março de 1870,
J. S. Vera-Cruz
Rua da Alfândega, Bissau
Ponte-cais de Bissau, construída pelo governador Carlos Pereira na década de 1910
Ponte-cais Correia e Leça, Bissau, cerca de 1890
Ilustração de Augusto Trigo representando um aldeamento em manual colonial português
(continua)
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Notas do editor:
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