segunda-feira, 22 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25770: Notas de leitura (1711): Aqueles anos horríveis do ajustamento estrutural, fim do sonho coletivista: Dois ensaios de cientistas sociais suecos, um documento importante de Lars Rudebeck, amigo da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Procura e acharás, sempre desejei chegar a este documento, bati a várias portas, nada. Entro numa loja de comércio justo, aqui está ele, entre outras publicações, o leitor paga o que quiser e mete na caixinha. Não coube em mim de contente, sou confesso admirador destes cientistas sociais suecos, de um rigor intocável. Dir-me-ão, desta síntese do olhar de Kenneth Hermele que esta sua visão sobre a quebra de alianças era algo de óbvio, fatal como o destino, não só houve falta de entendimento sobre o que devia ser uma política de reconciliação e perdão como se cavalgou nas nuvens, agravaram-se as dívidas externas, isto quando os patronos de Leste caminhavam paulatinamente para o definhamento, aquilo que Mikhail Gorbachev chamou de estagnação. Kenneth Hermele faz no seu ensaio um apelo a uma reformulação de políticas internas, como sabemos, era demasiado tarde. Vamos seguidamente dar a palavra a Lars Rudebeck, iremos cair em cheio na Guiné.

Um abraço do
Mário



Aqueles anos horríveis do ajustamento estrutural, fim do sonho coletivista:
Dois ensaios de cientistas sociais suecos, um documento importante de Lars Rudebeck, amigo da Guiné (1)


Mário Beja Santos

Entro numa loja de comércio justo ligada ao CIDAC, à procura de uma publicação sobre Cabo Verde e encontro a tradução portuguesa de um documento de que há muito ando no encalço: o que representou o ajustamento estrutural em três países africanos de língua portuguesa que foram insurgentes (esclarecedor documento de Kenneth Hermele) e a profunda análise que Lars Rudebeck faz do que significou o ajustamento estrutural numa aldeia a cerca de 100 quilómetros de Bissau, foi matéria de um seminário que decorreu na Universidade de Uppsala em maio de 1989, organizado por AKUT.

Cabe a Kenneth Hermele a grande angular: ajustamento estrutural e alianças políticas em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Este último assinou em 1984 o Acordo de Nkomati, um pacto de não agressão com a África do Sul, abriu assim caminho para ser membro do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, era o fim da destabilização internacional e da mudança de um processo de transformação socialista numa economia de mercado. Logo nos primeiros anos da década de 1980, Moçambique estava confrontado com o serviço da dívida e, entretanto, o COMECOM não aceitou apoiar Moçambique, o país viu-se obrigado a alterar as suas alianças internacionais. Em Angola o processo foi diferente, o regime do MPLA quis evitar a imposição de condições estabelecidas pelo FMI e pelo Banco Mundial, mas a comunidade internacional dos doadores obrigou o país a apresentar o país de adesão ao FMI. O caso da Guiné-Bissau revelava-se dramático, o país tinha-se tornado quase completamente dependente da ajuda estrangeira para sustentar, não só a sua dívida externa, mas praticamente todo o aparelho de Estado. O trabalho de Kenneth Hermele põe uma questão basilar: em que aspetos é que o processo de ajustamento estrutural que Moçambique e a Guiné-Bissau estavam a viver, e que a Angola estava à beira de iniciar, tem relação com as fases anteriores à constituição da nação nestes três países, mais concretamente lança o seu olhar sobre as alianças políticas na luta da libertação.

Observa que durante estas lutas estabelecera-se uma aliança entre o campesinato e os nacionalistas. Os dirigentes vinham de um estrato social a que se pode chamar pequena burguesia, com sentimentos nacionalistas muito fortes. Era um estrato que tinha laços de família com a classe camponesa média, francamente apoiada pelos nacionalistas portugueses. Nas três colónias, os respetivos líderes procuraram criar frentes amplas para poder unir a ação política e militar, sob a consigna de que tinham direito a ser independentes. Juntaram grupos sociais com notórias diferenças: camponeses sujeitos a trabalho forçado, nacionalistas burgueses, agricultores e pequenos capitalistas, grupos religiosos e culturais que se consideravam excluídos, bem como alguns representantes do poder tradicional.

Após a independência, os vencedores reivindicaram que a luta de libertação conduzira a uma nova ordem social em que os camponeses tinham dado os primeiros passos no sentido da propriedade coletiva das terras e distribuição equitativa de bens e rendimentos. Só que as alianças do passado foram quebradas pelas estratégias de desenvolvimento adotadas pelos movimentos de libertação.

A coletivização da terra não era apreciada pela maioria dos camponeses, havia mesmo um estrato camponês que aderira à luta de libertação para readquirir as terras de onde os portugueses os tinham expulsado. Muitos chefes tradicionais também se sentiram traídos, eram permanentemente acusados de tribalistas e obscurantistas. Também nas áreas urbanas, a estratégia de desenvolvimento colocou as antigas alianças sobre grande pressão. Pretendia-se, no caso de Angola e Moçambique, uma estratégia industrial que visava o restabelecimento rápido dos níveis de produção do último ano colonial (1973). As necessidades do setor rural ficaram secundarizadas. Veja-se o exemplo de Moçambique onde a produção local de enxadas baixou a níveis muito inferiores do tempo colonial.

Em Angola e Moçambique, as frentes nacionais de libertação não estiveram para meias medidas, apresentaram-se como partidos marxistas-leninistas, promovendo a partir do topo a transformação socialista. Vinha muita inspiração da Europa de Leste, mas a implementação práticas das políticas foi basicamente da responsabilidade do que restava da burocracia portuguesa e de poucos africanos. Tudo somado, as políticas pós-independência vieram a significar uma nova aliança, uma partilha do poder entre o partido dirigente e a burocracia do Estado. Na Guiné-Bissau, deu-se claramente uma dissolução da aliança camponesa, pretendia-se um desenvolvimento numa dependência total em relação à ajuda externa, assim cresceu um aparelho de Estado que se tornou cada vez mais irrelevante para a maioria dos camponeses. Em Moçambique, a tentativa de modernizar a agricultura em cooperativas e machambas estatais foi um verdadeiro golpe para a antiga aliança. E a interferência externa (Rodésia e África do Sul) e a destabilização de RENAMO enfraqueceu ainda mais a aliança. Em Angola passou-se algo de idêntico, o MPLA acabou por se isolar pela falta de atenção à importância do setor camponês.

No início dos anos de 1980, o falhanço nos três países era evidente. Não chega pôr em cima da mesa as pressões externas e as mudanças na situação internacional, quebrada a aliança ampla, foi crescendo o apoio a uma economia de mercado. E Kenneth Hermele põe nova questão: qual o tipo de desenvolvimento capitalista que estava a ser promovido. Havia defensores do ajustamento estrutural que afirmavam que os programas de reforma não pretendiam ir mais longe do que lanças as bases do crescimento económico. Da observação deste cientista social, o capitalismo que se estava a promover não apresentava nenhum dos aspetos relevantes do chamados capitalismo milagre do Sudeste Asiático. Aí, a direção do Estado, reforma económica e social, incluindo reforma agrária, políticas de longo alcance promovendo a educação, por exemplo, constituíam uma condição prévia necessária para as fases posteriores do crescimento de exportação. Ora nada de semelhante estava a ser implementado na Guiné ou em Moçambique. Parece razoável concluir que aquilo que estava a ser criado através do ajustamento estrutural na Guiné-Bissau e em Moçambique era um capitalismo fraco e subserviente. Observa igualmente Hermele que no que dizia respeito à Angola e Moçambique, o objetivo final das políticas impostas era preparar a África austral para uma situação pós-Apartheid.

Em termos de conclusão, o autor refere que as alianças nestes três países passaram por três fases: luta de libertação apoiada por uma frente ampla; tentativa de modernização que falhou em parte devido a uma alteração de aliança entre os camponeses e as burocracias estatais e o partido líder; na terceira fase, com a imposição do pacote de política de ajustamento estrutural estava a ser criada uma nova aliança entre capitalistas e instituições internacionais de finanças e cooperação, estando as burocracias de Estado a desempenhar uma papel complementar independente.

E o autor dizia que não se estava a verificar qualquer desenvolvimento, nem capitalista nem socialista, na ausência de um aparelho de Estado que se baseasse numa aliança interna, havia uma tendência das agências doadoras para enfraquecer ainda mais as funções do Estado. A erosão da base política interna entre o campesinato guineense, por exemplo, destituiu o regime do apoio interno que teria sido necessário para poder resistir às condições impostas pelo sistema financeiro internacional. Concluiu o autor que as organizações não-governamentais, grupos de solidariedade e as agências de desenvolvimento deviam pôr em prática ações adequadas no sentido de fortalecer o poder de resistência interna. Mas que não houvesse ilusões, era a capacidade de Angola, da Guiné-Bissau e de Moçambique em estabelecer internamente alianças políticas novas que permitiria lançar em simultâneo as bases do desenvolvimento socioeconómico. E termina de forma taxativa: pessoas do exterior só poderão desempenhar um papel secundário; mas nós poderemos contribuir para certificar que os poderes ocidentais e as suas instituições não imponham a continuação do subdesenvolvimento e da dependência e que – pelo menos – se encontrasse resistência dentro do país.

Vamos seguidamente dar a palavra a Lars Rudebeck, vamos até uma tabanca guineense.

Kenneth Hermele
Lars Rudebeck
O antigo hospital militar nº241, imagem do Triplov, com a devida vénia
A casa comercial Taufick-Saad, imagem do Triplov, com a devida vénia
Fevereiro de 1965, o governador Arnaldo Schulz passa revista a uma unidade da Mocidade Portuguesa, no ato inaugural de uma escola, Arquivos da RTP, com a devida vénia
Nino Vieira e Luís Cabral na Suécia, 1973, imagem retirada do blogue Herdeiro de Aécio, com a devida vénia
Nota de 100 Pesos da Guiné-Bissau, emissão de 1975, reverso da nota na face está a efígie de Domingos Ramos

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 19 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25761: Notas de leitura (1710): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1868 e 1869) (12) (Mário Beja Santos)

6 comentários:

Antº Rosinha disse...

Guiné Bissau, antiga colónia portuguesa e depois colónia sueco-soviética-cubana e por fim ficou independente, foram todos embora.

antonio graça de abreu disse...

Que grande salada ideológica, com molho sueco! Por onde anda o pensamento utópico de Amílcar Cabral, de que o Mário Beja Santos tanto gosta...

Abraço,

António Graça de Abreu

António J. P. Costa disse...

Pensamento utópico de Amílcar Cabral? Qué isso? E com suecos, soviéticos e outros. Kék eu tenho a ver com isto? Só quem tem competência é que se pode estabelecer. Os outros que se dediquem à pesca do búzio. Perdi a guerra e ponto final. Agora que estão por si próprios (os que estão) que se desengomem que eu tenho mais em que pensar. Tenho a Ucrânia, Gaza e etc. Guiné? Nem sei onde é...

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas
Aquela foto do Herdeiro Aécio é de partir a moca: dois estrangeiros que não falavam sueco, inglês ou francês e arranhavam uma coisas de portugueses, em conversações com suecos, não lembra ao c*****o! E o que é que está escrito naquele brilhante improviso pregado com pionézes ou fita gomada na estante? O que sucedeu depois era de prever...
Um ab.
António J. P. Costa

Valdemar Silva disse...

O que está escrito no papel colado na estante é mais ou menos:

RECEBEU (OU PARA RECEBER) BOLETIM INFORMATIVO ?
PREENCHA O FORMULÁRIO

Evidentemente que parece ser um aviso era geral .

Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Aquela foto de 1973, provavelmente já depois do 24 de Setembro, já com Nino com gravata à 1ª ministro e Luís Cabral à presidente, dá para fazer mil conjecturas daquilo que é ou foi e continuará a ser a mentira e o cinismo e a demagogia da política dos poderosos em África.

Principalmente, neste caso, dos "democratas" "civilizados" e "progressistas" europeus, daqueles anos da guerra fria.

De facto Antonio J.P. Costa está boquiaberto com aquela foto, e tem razão.

Por acaso conheci de perto a cara de Nino e de Luís Cabral e os respectivos papéis políticos, e o que me chama mais a atenção é a gravata e o olhar de Nino Vieira.

"Com quem estou metido"!