Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"
O Paquete entrara no serviço de urgência, inchado como um tonel, tenso como um balão a que só faltava o alfinete para estoirar. Fígado, pulmões, ventre de pandeiro, tudo estava encharcado como uma esponja por um coração entupido. Sem ar, como se morresse afogado ou, dentro da linguagem médica, como peixe fora de água, insuficiência cardíaca grave, insuficiência cardíaca descompensada, anasarca, os vários termos para rotular o sofrimento atroz de um jovem sem culpa, igual a tantos outros que jogam ténis.
Socorrido na primeira fase de compensação e um tanto aliviado, é internado para estudo. De manhã, veio fazer um ecocardiograma.
O Paquete tinha vinte e seis anos e uma cara aciganada, morena de si e roxa da cianose. Começara a trabalhar como moço de trolha aos treze anos, vergado ao peso da tábua e do balde. À força de cachaços, lá se erguia quando aninhava com o abafa. Nunca alguém o levara ao médico.
Não tive coragem de colher a sua história antes desta idade, a história da sua infância. A meio do exame, disse-me o Paquete, a medo e quase em segredo: “Sr. Doutor, estou à rasca para mijar. Deixe-me ir mijar, pelas almas.”
No meio de tais máquinas, perante aquela gente de bata branca que ele nunca vira mais gorda, o sofrimento da sua vida levava-o a pensar que pedir para mijar era quase um crime.
O Paquete tinha uma gravíssima estenose mitral com severa insuficiência mitral e tricúspide e um coração do tamanho de uma melancia. Estava numa fase inoperável, a rebentar pelas costuras. Se operado fosse, tudo não passaria de remendo em calças a desfazeremse.
Sem a mínima ideia do que se passava, ele submetiase, humilde, desconfiado, medroso como sempre acontecera em toda a sua vida. Tinha medo de que lhe pusessem a tábua à cabeça ou o balde na mão. E com aquela falta de ar! Ele que sempre pedira para o deixarem respirar um pouco, antes do peso de outra tábua e de outro balde.
O Paquete nunca fora ao médico e nunca ninguém lhe dera a mão para se erguer. Todos lhe esfacelaram o coração e a vida até rebentar! Pobre Paquete! Pobre barco tão frágil!
Com as lágrimas nos olhos, saí do hospital e escrevi esta história de hoje, de há séculos. Escrevi-a em especial para os meninos e jovens que brincam, que jogam, que sonham e que vão ao médico.
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Nota do editor
Último post da série de 8 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25922: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (34): "Canção de Natal"
4 comentários:
Caro combatente, Adão Cruz
É uma estória sobre uma vida muito sofrida. Ainda, por cima, é sobre uma vida real, uma de muitas que havia em Portugal, até aos anos oitenta do século passado. Uma estória do tempo em que os pobres se obrigavam a entregar os filhos, ainda menores, aos patrões, que deles só queriam o rendimento, muitas vezes extraído sob maus tratos. Essas crianças não tinham direito a bons sonhos, nem a bom trato no trabalho, apenas tinham que trazer mais algum para casa, porque o dinheiro do pai não chegava para os mínimos e o da mãe não se via, porque os outros filhos (muitos) prendiam-na em casa.
Carvalho de Mampatá
Obrigado Dr. Adão, destas não nos dizem nem sequer de vez em quando.
Valdemar Queiroz
Caro amigo, dói, só de ler.
Estes três comentários do Helder, Do Valdemar e do Carvalho de Mapatá, qual deles o melhor, são todos bem elucidativos. Na falta de palavras minhas permito-me repetir as do Hélder: "dói", foi mesmo muito, "só de ler." Ao Dr. Adão e aos meus três amigos que comentaram o seu post e com quem não tenho comunicado já há bastante tempo, um grande abraço.
João Crisóstomo
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