domingo, 15 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25944: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - XII (e útima) Parte: A minha casa é o mundo e qualquer dia estarei de volta...




Timor Leste > Liquiçá > Manatti > Boerbau > Escola de São Francisco de Assis (ESFA)

Fotos:  © Rui Chamusco (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Esta é a última crónica desta série... No dia 16 de junho de 2018 o Rui Chamusco regressou  a Portugal...  Foram cinco meses de estadia, iniciada em 25 de janeiro do ano da graça de 2018. 

O  luso-timorense e seu amigo Gaspar Sobral foi o seu companheiro de viagem.  Ambos são cofundadores e dirigentes da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015, com sede em Coimbra (onde o Gaspar e a  Glória vivem; a Glória é da Malcata, Sabugal).
 
O Rui é membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último. Natural da Malcata, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário. 

Em Timor (onde já foi cinco vezes, desde 2016), o Rui continua a  dedicar-se de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem lá desenvolvido, nas montanhas de Liquiçá, e nomeadamente a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em Manati / Boebau, no município de Liquiçá.

Em Dili ele costuma ficar em Ailok Laran, bairro dos arredores, na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do Gaspar Sobral,
 


O "malaio" (estrangeiro) Rui Chamusco
e o seu companheiro de vaigem, o luso-timorense
 Gaspar Sobral.

Foto: LG (2017)



II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)


XIII (e Última) Parte -   A minha casa é o mundo e qualquer dia estarei de volta...

Dia 09.06.2018, sábado - Verdadeiros heróis...


Não posso deixar de descrever o que acabo de presenciar. O Cesáreo acaba de chegar de Liquiçá. Vejam só! Ontem de manhã foi para a horta, que fica mais ou menos a dois quilómetros no fundo da encosta, a apanhar folhas de “malus” (a folha de uma trepadeira que se cultiva em Timor Leste, pois faz parte do ritual cultural timorense mascar o betel: folha de malus+areca+cal). Ele mais o cunhado Augusto, apanharam duas sacas grandes cada um, subiram-nas às costas até cá acima e, às dezanove horas, já noite, ei-los prontos a partir, a pé, por entre montanhas e vales a caminho de Liquiçá, a fim de entregarem a colheita que um amigo se encarregará de vender.

Perguntei-lhe qual a distância a percorrer, e ele respondeu: “mais ou menos cinquenta quilómetros”. Ou seja, ida e volta cinquenta quilómetros. Descalços ou de chinelos, por veredas e atalhos, enfrentando os perigos do caminho: escorpiões, serpentes ou, na melhor das hipóteses, nada. Hoje, às oito horas da manhã, estão de volta. 

Tudo correu bem, mas imagino o cansaço e com certeza a fome com que devem estar. Eles fazem-me lembrar heróis de outros tempos que, em Malcata e nas terras fronteiriças se dedicavam ao contrabando, transportando odres de azeite e outros produtos que, sem descansar, percorriam também mais ou menos cinquenta quilómetros, correndo sérios riscos de serem apanhados e espoliados pela guarda fiscal (em Portugal) e pelos “carabineros” (na Espanha). 

Por quantas dificuldades não têm os pobres de passar para garantirem o seu
sustento e o das suas famílias. Sou testemunha viva da indigência destes pobres, onde qualquer cêntimo faz a diferença. Em casas térreas quase reduzidas a paredes e telhado, umas em colmo e palapa outras em blocos de cimento e telhados de zinco, gera-se a vida que, através de muitas dificuldades se vai construindo com muito amor, em corpos franzinos mas resistentes. Aqui, todo o ser vivo tem direito a usufruir do espaço caseiro.

Ontem à noite, enquanto tomávamos o café na casa do Cesáreo, andavam a nossos pés cães, galinhas e até uma porquinha. Faltam condições básicas, sobretudo de higiene, mas nem por isso as crianças e os adultos deixam de sorrir e de dar ao visitante tudo o que têm. Ai se os ricos dessem,  não tudo o que têm,  mas ao menos o que lhes sobra!...Como este mundo seria melhor...

As carências são muitas. Dinheiro é coisa que não têm, mas eles sabem que é com o
dinheiro que tudo se compra: café, arroz, cigarros, etc... Por isso, são frequentes os
lamentos e os pedidos. “Ti Rui ajuda?”. Ou então as crianças que se aproximam de ti, te estendem a mão e dizem: “Ossan! Ossan”; “dolar!”

Porra! Não haverá por aí, em Timor ou em qualquer parte do mundo, alguém que possa e queira ajudar estes pobres?

“Pobres dos pobres / São pobrezinhos / Almas sem lares / Aves sem ninhos.” (António Crreia de Oliveira)

Dia 10.06.2018, domingo - Continuação


Ontem à noite, em conversa de amigos com o Cesáreo, ousei perguntar-lhe: “Quanto ganhas cada vez que vais a Liquiçá levar as sacas de “malus”?” Ao que ele me respondeu: “Depende, Tiu Rui. Se é no verão (estação atual) quinze a vinte dólares; se é no inverno vinte a vinte e cinco”.

Já viram isto? Um homem passa um dia inteiro para recolher duas sacas de “malus”; percorre a pé montes e vales durante nove horas enfrentando as adversidades do caminho; chega a casa todo estoirado de cansaço apenas com 15 dólares no bolso...

Senti vergonha de mim próprio e de muitos mais que, ganhando mais do que precisam, esbanjam o seu dinheiro em coisas supérfluas e inúteis.. Prometi que o iria ajudar, mais que não seja arranjando padrinho ou madrinha para um dos seus três filhos.

Pois é! Uns nascem e vivem em berços e casa doiradas; outros nascem e vivem em
presépios e casa de palha. Que desigualdade social, em Timor e em muitas partes do
mundo. Cidadãos cujos salários mensais oscilam entre os sete e os dez mil dólares
(deputados, ministros, doutores, etc...); cidadãos cujo salário esporádico não passa dos trinta a quarenta dólares. Não acreditam? Então venham cá ver!...

Por mais que o Evangelho nos console dizendo-nos que “os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”, é muito difícil resignar-se e aceitar pacificamente a situação.. Melhor seria que houvesse repartição da riqueza, conforme as necessidades de cada um. Como dizia o poeta António Aleixo: “Se fosse toda a riqueza / Distribuída com razão / Matava a fome à pobreza / E ainda sobrava pão.” 

Mas quem tem a coragem e agir? Como podem os poderosos, os ricos baixar na sua condição? Cada vez compreendo melhor a frase do Evangelho: “Pobres sempre os tereis convosco”. Porque a capacidade de ser pobre depende muito do coração e da vontade de cada um.

Arrepiante!...

Estou de frente ao monte, do outro lado da ribeira de Laoeli, pensando no relato que me fizeram em Ailok Laran, da cena horripilante passada há doze anos em Hatohoulau, e que passo a descrever.

Numa visita que a família de Ailok Laran fez à família da parte da mãe Felismina
Sobral, aconteceu que um dos primos residentes, talvez minado por ciúmes ou outro sentimento qualquer com traços de esquizofrenia, atacou violentamente, à catanada, o primo Abeka. Por sorte não lhe acertou na cabeça, pois seria morte certa, mas sim no braço direito. O Abeka perdeu os sentidos, e foi de seguida transportado ao colo de diversos familiares pela montanha abaixo, até encontrarem transporte para Liquiçá, onde foi assistido. Dizem os que presenciaram a cena que, apesar da profundeza e da dimensão do golpe, não havia quase sangue nenhum. Pudera! O Abeka só tem quase pele e osso...

Uns dias depois de me relatarem o acontecimento estive com com a vítima e perguntei-lhe se era verdade o que me tinham contado. Mostro-me então a cicatriz no braço direito, prova evidente da veracidade dos factos.

Quanto ao agressor, nada a fazer. “Ele é doente. De vez em quando tem destas coisas”.

Enfim, esta gente tem uma capacidade de perdão incrível. Como diz o Bartolomeo: “Se Cristo perdoa porque é que eu não devo também perdoar?”


Dia 11.06.2018, segunda feira  - Regresso
 a Dili

Sim. Estava previsto para hoje, mas não da forma que se deu. Como não havia “motor” disponível nem em Ailok Laran nem em Boebau, decidiram que eu regressasse em transporte público: anguna até Liquiçá e anguna até Ailok Laran.

E como só fui informado pelas sete horas, tive que me apressar em arrumar a trouxa para que às oito horas estivesse pronto, porque a anguna do João chegaria a essa hora.

E tudo estava pronto quando de repente procurei a carteira e não a encontrei. Entrei em pânico, pois nela estavam todos os meus documentos e o dinheiro à ordem, e recusava-me a partir sem tão preciosa propriedade. Toda a gente em alvoroço, procurando por tudo o que era sítio, e eu convencido que tinha sido roubado.

Cabecinha louca de velho descuidado! O Bôzé conseguiu encontrá-la entalada entre
duas caixas de papelão. Dei-lhe um abraço e uma recompensa, e pusemo-nos em
marcha. Destinaram-me o banco ao lado do condutor, o senhor João, pai do Tito e da Tita, crianças que frequentam a nossa escola. Mas como me querem proteger, o Cesáreo e o Laurindo fizeram questão de me acompanhar na viagem. Não querem que aconteça algo de errado ao Tiu Rui. Obrigado amigos!...

E que dizer desta viagem? O percurso até Liquiçá foi o melhor dos que já fiz. Nem
motor, nem carro têm a segurança e a comodidade da anguna, mesmo que de sobressalto em sobressalto. Claro que conta muito a perícia do condutor, que fazendo este caminho duas vezes ao dia, conhece bem todos os buracos, curvas e contra curvas, paragens, clientes e sei lá quanta coisa mais.

A viagem em microlete de Liquiçá a Ailok Laran foi maçadora. Um veículo com a
capacidade de 9 lugares transporta o dobro, mais as fartas bagagens (cachos de bananas, feixes de lenha, galos e galinhas, sacos diversos, mochilas, etc...). Leva os clientes e os seus pertences às ruas e becos onde parece não passar, e toda a gente ajuda a quem entra e a quem sai. Valha-nos ao menos esta boa convivência e entre ajuda. Ao meu lado direito, bem encostadinha, porque assim tem de ser para caber toda a gente, vinha uma menina 11 a 12 anos com um galo ao colo, que quase me debicava o pernil, gostasse ele da carne do “malai”. 

De entrega em entrega chegamos ao nosso destino, depois de quatro horas de viagem num percurso de mais ou menos 50 quilómetros.

E a vida recomeça em Ailok Laran, até à reta final da nossa segunda estadia em terras timorenses.

Dia 14.06.2018, quinta feira  - Encontro 
inesperado

De tarde fomos a Liquiçá entregar a lista das crianças que já se inscreveram na escola de São Francisco (62, aproveitando a seguir uma ida à uma praia de Liquiçá). Também aqui os porcos javalis eram banhistas. Mas eis quando que, sem ninguém esperar, chega um carro com quatro senhores lá dentro. Pronto nos apercebemos, e eles também de que éramos portugueses, estabelecendo-se logo um diálogo de conhecimento mútuo. 

Porque estamos em Timor, quem somos, o que fazemos. Pois sabem quem esteve connosco em mável conversação? Isso mesmo: os músicos do grupo musical Virgem Suta , Jorge Benvinda, Nuno e Tiago que, contratados pela Embaixada de Portugal vieram abrilhantar as celebrações do Dia de Portugal. Hoje mesmo, à noite, vão dar o último concerto no bonito espaço do Mercado de Dili. E amanhã, tal como nós, regressarão a Portugal.

Coincidências ou não, a verdade é que já há muito tempo que aprecio este grupo e a sua forma de fazer música. Talvez em Portugal a gente se encontre informalmente ou em espetáculos organizados. Agora que é o tempo das cerejas poderei dizer que, em jeito de despedida, foi “a cereja em cima do bolo”.

15.06.2018, sexta feira - Na embaixada 
de Portugal

A audiência foi marcada para as 15.00 horas, precisamente a hora em que fomos
recebidos pelo sr. Embaixador de Portugal Dr. José Vieira e pela sua assistente, Dra. Daniela Araújo. 

Para além de ser uma visita de cortesia e de despedida, fomos agradecer o seu apoio ao nosso projeto - lembro que esteve presente na inauguração da escola - o objetivo da visita era sobretudo a entrega de documentação relativa à escola, à Astil e à Astilbm, elaborada pelo colega de trabalho Gaspar. Com simpatia e diplomacia disponibilizou-se para apoiar e acompanhar o nosso projeto dentro das competências e possibilidades da embaixada, e depois de o Gaspar e o embaixador teceram diversas considerações, saímos airosamente do espaço que nos protegia.

“Talvez voltemos no final de ano”, disse eu, ao que o sr.embaixador manifestou o seu contentamento.

Por aqui me fico nas minhas crónicas da segunda estadia em Timor. Sei que esta noite ninguém vai dormir devido ao jogo de futebol Portugal / Espanha, que aqui começa às quatro horas da manhã.

Já em Portugal vos darei conta de algum episódio que durante a viagem de três dias
seja digno de registo.

Cá estamos de novo em Portugal, depois de cinco meses em Timor. Como se diz, “o
bom filho à sua casa torna”. Mas como desde há muito tempo eu defendo que a minha casa é o mundo, qualquer dia estaremos de volta a Timor.

Queremos agradecer a todos os que nos desejaram boa via e boas vindas. Esperamos entretanto encontrar-nos. Teremos muito gosto em estar convosco para partilharmos ainda mais as nossas vidas, e em concreto a nossa segunda estadia em terras do sol nascente. A propósito quero informar-vos de que, no próximo dia 19 de Julho, haverá uma sessão cultural, no auditório da Câmara Municipal do Sabugal, cujo tema será “Diálogos sobre Timor Leste”, pelas 21.00 horas. Esperamos encontrar-mo-nos por lá.

Tudo faremos para que esta sessão valha a pena.

Obrigado pelo vosso apoio e colaboração

Com um Grande Abraço,

Rui e Gaspar

(Seleção, revisão / fixação de texto, título e subtítulos: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25931: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte XI: Não sei explicar o que nos prende a esta gente...

3 comentários:

Anónimo disse...

João Crisóstomo
Sao 01.24 da manhã de 15 de Setembro. Não consigo dormir e resolvi ir buscar o computador, talvez alguma leitura amena no nosso blogue, como as peripécias narradas pelo Jorge Cabral ou outras me trouxessem o sono.
E ao deparar com esta crónica do Rui, resolvi lê-la para “lembrar”; ao fim e ao cabo também cheguei a ir e estive em Timor (em 2017 e 2018), onde , perante a situação de que o Rui me tinha falado e que confirmei, pensei poder continuar a ajudar: a minha experiência e contactos que ainda mantinha desde os tempos da luta pela independência poderiam com certeza ajudar, pensava eu.

Mas hoje, em vez de uma leitura amena deparei com o contar duma situação que tem sido uma constante desde esses dias em 2018 até hoje. Raiva, tristeza, saudades, frustração, não sei qual deles maior, foi o que experimentei agora.
De alguma maneira quase me sinto culpado, pois que na altura sonhei e falei do muito que se poderia fazer para ajudar aquelas crianças esquecidas e aquelas gentes tristemente ignoradas nas montanhas de Liquiçá; alimentei tantas esperanças ao Rui, ao Gaspar e à Glória e a tanta gente boa em Portugal, e não só, que perante o nosso entusiasmo resolveram dar também a sua ajuda. E de alguns não foi só ajuda financeira como a oferecerem-se e irem a Timor Leste. E agora passados seis anos ainda continuamos lutando pela mera sobrevivência duma única escola. Como é triste!
Mas como poderia eu, como poderíamos nós esperar tão pouca resposta por parte daqueles que em Timor Leste, em Portugal e em outras partes do mundo, desta situação e outras semelhantes, se devem e deviam ocupar? Se razões de consciência, solidariedade e mesmo justiça não os motivam, então que cumpram o dever e obrigações dimanadas pela situação de poder ou de privilégio em que se encontram agora ou tiveram no passado, se ainda agora podem ser influentes. Os deveres inerentes à consciência e solidariedade são deveres permanentes e não devem ser coisas acidentais e temporárias na nossa vida

Tenho acompanhado outros projectos semelhantes na Guiné e S.Tomé aqui descritos no nosso blogue. Que são para mim sempre motivos de motivação, não só pelo simples facto de existirem, como pelo facto de serem motivo de tanto interesse por parte de todos nós que por lá andamos e conhecemos o que era e o que ainda é.

No caso de Timor admiro a boa vontade de tantos que nunca lá estiveram mas que inspirados pelo Rui e outros continuam ajudando, persistindo em fazer bem. Bem hajam! Eu não acredito em milagres, mas, mesmo na minha muita desilusão, ainda teimo em persistir, esperando sempre por um milagre.
João Crisóstomo Nova Iorque

Anónimo disse...

João Crisóstomo
Esqueci-me de dizer que tudo o que temos pedido é que, que forneçam professores devidamente acreditados para esta escola, uma vez que agora já há uma escola construída e uma residência para professores nestas montanhas onde as crianças, que são tão timorenses como as crianças que vivem em cidades ou em locais com mais facilidades e que têm sorte de terem pais mais afortunados, parecem ou foram completamente esquecidas.
João Crisóstomo

Tabanca Grande Luís Graça disse...

João, obrigado. Timor Leste é um país soberano. Não nos compete interferir na sua vida política interna. Mas, como amigos de Timor Leste, podemos fazer o nosso "lobbying" pelas crianças de Manattio / Boebau e a "noss" Escola de São Francisco de Assis. Espero que os benefícios da visita do Papa também cheguem a estas crianças.