domingo, 20 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26061: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (40): "O homem sem nome"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


O homem sem nome

Quando nasceu, trazia entranhados em si dois grandes pecados: o pecado original e o pecado de ter sido gerado em mãe solteira.
Para além disso, fora parido quase moribundo.

Imagine-se o terror de sua mãe que já o via a arder no fogo do Inferno.
O pai, mais racional, não tinha assim tão maus pressentimentos. Para ele, Deus não seria capaz de condenar, e logo com penas eternas, um ser indefeso, pelo simples facto de a pia batismal distar três quilómetros do local de nascimento.
Pegaram na mulher mais à mão e no homem mais ao pé, embrulharam num cueiro este escarro de gente e correram a sete fôlegos em direção à igreja.
Ambos conheciam a gravidade do pecado original.
“As almas dos que morrem em pecado mortal ou apenas de pecado original descem ao Inferno”, anunciava o concílio de Florença em 1439.

Todos sabiam que o batismo era a única terapêutica que salvava e apagava o pecado original.
Se chegasse à pia do batismo com vida, não seria este pecado, marca da infâmia do seus longínquos e primitivos antepassados, que o levaria à condenação eterna.
Quanto ao outro, o pecado de amor, o pecado de sua mãe, nada constava na tradição que o considerasse passaporte direto para as profundas, embora fosse exatamente igual ao primeiro, mas muito mais recente.
No mínimo, em cima do outro, agravaria, certamente, a sentença divina.
Portanto, as perspetivas não eram animadoras.
Na correria para a salvação, nada mais dominava o pensamento dos hipotéticos padrinhos, - assim o permitisse serem-no, efetivamente, a graça divina - senão o terror.

Já com alguma idade, esse esperançoso par lembrava-se de ter ouvido da boca de um padre velhinho, de quem se dizia ser pai de onze filhos, que um papa chamado Bento XIV e outros seus sucedâneos aprovaram o batismo de fetos e abortos, bem como dos fetos das mulheres grávidas mortas, aos quais faziam chegar a água benta através de um sifão especial ou de uma cesariana.
O medo era tão grande que chegaram a arranjar fórmulas especiais para batizar abortos ainda sem forma humana ou mesmo aberrações e monstruosidades resultantes, eventualmente, de distrações ou falhas nos cálculos divinos.

Já a meio do caminho da igreja, os corações dos dois estafetas salvadores quase pararam ao sentirem que nada pulsava naquele montinho de carne.
Apertaram-no contra o peito e deram-lhe algumas palmadinhas suaves, não fossem acabar com o sopro de vida em que ainda acreditavam.
Aquele minúsculo projeto, à falta de melhor resposta, reagiu com o intestinal ruído que precede ou acompanha uma pequena dejeção de ferrado, o que aliviou um tanto os padrinhos, embora soubessem que esse facto não constituía, propriamente, uma manifestação de vida.

No último minuto, provavelmente já na fronteira do entroncamento onde divergem os caminhos para o céu e para o inferno, o recém-nascido usou pela primeira vez as cordas vocais, soltando um pequeno gemido que logo se fez choro convulso ao sentir a água benta e fria na cabeça.
Crê-se, hoje, que não fora a água fria, mas o nome que pretenderam dar-lhe, a razão do seu choro.
Era como que voltar à estaca zero, uma espécie de restitutio ad integrum do pecado original, tornando inútil toda aquela corrida para a pia da salvação.

Os seus gritos devem ter ecoado como ribombante trovão para lá dos séculos, no ex-paraíso, hoje deserto, no lugar onde os pais da humanidade condenada, não sabendo para o que servia aquilo que tinham entre as pernas, pagaram com a felicidade eterna por terem-no descoberto.
Para que ele parasse de chorar, não tiveram outro remédio senão, esquecerem o nome.
A força do sacramento venceu, o Diabo recuou e assim ficou sem nome o homem que não tinha nome.
Na verdade, o agora filho de Deus sobreviveu.

Revigorado com o sopro divino, chegou ao seio da mãe onde algumas gotas de leite lhe seguraram a vida e sadicamente o impediram de seguir logo, diretamente, sem necessidade de vir a sofrer as provações de todo um futuro incerto e traiçoeiro, para a garantida felicidade eterna.

Passaram os anos.

Acordava com a voz dos melros e rouxinóis e saltitava com os pardais.
Vestia-se de sol e despia-se de luar.
Estreou o mundo no abraço das árvores e no beijo dos rios.
Seus olhos dormidos casavam a noite e o dia no mesmo silêncio de sonho-menino.
A vida viveu nele crescendo todos os tamanhos e medindo todos os céus.

Mas os homens comeram as crianças.
Os homens comeram-se crianças e neles foram matando a criança que crescia.
Um dia, meteram-lhe uma coisa na boca e disseram-lhe que era Deus.
Como se Deus coubesse na sua boca!
Como se Deus coubesse na sua boca!
O mar, infinitamente mais pequeno do que Deus, não cabe em todas as bocas juntas.

Também lhe disseram que ele era filho de Deus.
Ou gozaram com ele ou pretenderam fazê-lo acreditar em paranoias.
Como se Deus andasse para aí a fazer filhos como ele!
Seria preciso que fosse um Deus muito fraco e muito irresponsável!

Revelaram-lhe, ainda, que sua mãe era uma virgem, o que ele não era capaz de entender.
Deus, pelos vistos, seu pai, ao gritar ao mundo que crescesse e se multiplicasse, ou se enganara ou se arrependera ou não acreditara no que tinha feito.

Disseram cada coisa que ele chegou a pensar que mandava nos pássaros, que era capaz de pôr as cobras de joelhos e que o céu era trigo limpo!
Sendo ele filho de quem era!
Apesar de tudo, sempre foram para ele um tanto estranhas as atitudes de seu divino pai.

Ouvira falar de comboios com milhões de pessoas a entrar nas câmaras de gás.
Deus estava lá, Deus está em toda a parte.
Morreram e morrem milhões de crianças às mãos da fome e Deus, seu pai, atafulha as mesas dos que não têm fome.
As guerras crescem como as moscas, correm rios de sangue ao sabor dos interesses dos que mais rezam a Deus e seu pai, com poderes para desligar a máquina, não o faz.
Milhões de mortos esventrados, despedaçados, violentados!
E eles até são seus irmãos!

O mundo abarrota de doentes, crianças doentes, e logo crianças!
Ainda noutro dia, o seu celestial pai dissera alto e bom som: “Deixem vir a mim os pequeninos!”
Pensa ele que o pai se referira aos meninos ricos, porque os pobres são sempre os mesmos, e ele nunca os vira em casa de seu pai.
Os das barracas, os famintos, os esfarrapados.

As más-línguas até proclamam que ele é filho ilegítimo.
Argumentam dizendo que um pai que tanto faz sofrer os seus filhos não pode existir.
E ele começa a ter vergonha porque nenhum filho gosta que o pai o atraiçoe.
Pensava.

Os que comem tudo e não deixam nada, os que geram a fome para que não lhes falte a fartura, têm casas de ouro, férias para descansarem de não fazerem nada, luxo em cima de luxo, o céu garantido aqui na Terra e lá em cima nas primeiras filas que o Vaticano sempre lhes reservara, enquanto os outros vão para a vala comum, agora que o inferno faliu.

O Inferno lá de baixo, o das almas penadas, perante o grito de sofrimento dos povos, imbuídos da fé que tanta e tanta felicidade lhes trouxe nestes místicos séculos, até parece que não era tão mau como o de cá.
Talvez o Diabo não seja como o pintam.

Os fervorosos comungadores, não tanto da sagrada hóstia como do ouro, acham que os espoliados ainda têm pele, eventualmente rentável e utilizável para fazer tambores.

E a vida continua, na sua tradicional canção de louvor a Deus!
No fim de contas, o homem sem nome pensa que seu pai enlouquecera ou perdera a vergonha.
Faz-se surpreendido com tudo o que vê, ele que é omnividente, omnisciente e omnipotente, e otimiza facciosamente as condições de vida dos fortes para que não sofram.
Cria, descaradamente, todas as condições para que as catástrofes, as torres de Babel e os dilúvios se abatam sempre sobre as cabeças dos mais fracos.

A estupidez invade a cidade como uma avalancha de merda e seu pai permite que façam dela a bandeira com que a bolorenta metafísica apodrece a razão de todos os criados e reciclados à sua imagem e semelhança.

O homem que não tinha nome, não sendo estúpido, foi crescendo no seio da estupidez.
Uma noite, altas horas da madrugada, um novo pecado haveria de entrar na sua alma.
Ficara muito assustado.
Lembrara-se, de imediato, do pai de todos, o colega grandalhão da escola primária quando, em segredo, lhe confessara a sua primeira sensação: “Uma estranha mijadela com muito, muito açúcar.”

Tinha razão.
Coisa estranha, nunca sentida!
Era, certamente, um grande pecado.
Não tinha memória do pecado original do qual se livrara à rasquinha.
Pelo que lhe haviam contado, deveria estar, de novo, no caminho das profundas.
Só agora conseguia atingir o significado das palavras do padre prefeito quando este lhe perguntara o número de vezes que havia pecado com o corpo.
Maldito corpo.

Bendita luz.
A luz do sol era azul, lembrava-se como se fosse hoje.
A luz azul azulava os claustros, as caras e o sentir.
Imaterial, pálida e fria.
As grandes janelas filtravam a luz azul que entrava dentro dele como chuva miudinha.
Pela vida fora sentira sempre um arrepio ao recordar essa luz azul e fria.
As batinas negras eram azuis e frias, frias e azuis como os olhos, a alma e a sombra.
A alma não era, nessa altura, designação académica.
Por isso ela punha os braços de fora e estrangulava a sua frágil personalidade de adolescente, sem sexo nem liberdade.

A saudade excitava-o, vivia-o de dia e adormecia-o de noite.
Saudade da sua fogueira quente e vermelha, do seu sol vermelho e quente, do seu campo, do seu rio, da sua noite de estrelas e luar.
A imposição do azul desfaz as formas e os sons e remete para a cidade da morte.
O medo do azul abre as portas do Inferno e mostra, lá dentro, a razão e a coragem a arder.
As horas inverteram-se e perderam o tempo.
Correm agora fora das veias à velocidade de uma luz azul e fria.
Pela mão do pai, passou a vida a correr tropeçando nas sombras.

Arrumou, ao canto da luz, mil horas vazias, sangradas a curricular futuros para ser gente na praça dos homens.
Pisou os passos pequeninos nos avessos da verdade e palmilhou léguas a tossir poeira.
Vestido de ausências, foi renascendo de amor.
Bendito corpo.
Maldita luz.

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Nota do editor

Último post da série de 13 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26042: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (39): "Um simples periquito"

2 comentários:

Valdemar Silva disse...

Doutor Adão, em Portugal não bastava a elevada taxa de mortalidade infantil(*), como ainda muitas delas irem para o inferno.
De resto, mais um habitual belo e quase arrepiante texto.
Valdemar Queiroz

(*)ainda registado em 1970, por cada 1000 crianças nascidas, 53,7 morriam antes de completar o primeiro ano de vida.

Eduardo Estrela disse...

É um belo texto, hino de louvor à luta dos que se rebelam contra a hipocrisia da sociedade.
Quem muito tem tudo quer e tudo pode inclusive com o beneplácito de Deus.
Os desprotegidos estão aqui bem retratados
Obrigado Dr Adão Cruz.
Abraço
Eduardo Estrela