Carlos Fortunato, em Bissau, 2006. Foto: Arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné |
Humor de caserna > o velho, a "bajuda fugidona" e a justiça salomónica do alferes Mota
Um dos casos caricatos passou-se com o alferes Matos sedeado em Manga, quando lhe apareceu um velhote a pedir ajuda porque tinha comprado uma bajuda, e ela agora andava a fugir-lhe, mas tinha-a encontrado ali, e ela recusava-se a voltar com ele.
O velhote falava convicto de que os militares o iriam ajudar, pois isso fazia parte dos seus usos e costumes há muitos anos, e nem sequer imaginava que houvesse outros lugares em que as coisas não fossem assim.
Uma visita à tabanca onde estava a bajuda, confirmou a decisão desta em não regressar com o "marido" para o "harém".
Guiné > Região do Oio > Binar > Manga > 1970 > A bajuda balanta |
O alferes Matos tomou então uma decisão ao estilo de Salomão, que tinha dado uma espada a duas mulheres para cortarem ao meio um bebé, pois ambas diziam ser seu, e que acabou por dá-lo à que preferiu que a outra ficasse com ele a fazer tal coisa...
Assim deu uma catana ao velhote, e disse-lhe que podia levar a bajuda, depois de cortar uma enorme árvore que ali existia com aquela catana.
O velhote ainda experimentou tentar cortar a árvore, mas logo se convenceu que os anos de vida que tinha não eram suficientes para a obra, e foi-se embora a resmungar contra a tropa, perante a alegria da bajuda.
Foto (e legenda): © Carlos Fortunato (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
[ página que foi descontinuada, por estar alojada no "Sapo", tendo sido "capturada" e "salva" pelo Arquivo.pt; era administrada pelo nosso camarada Carlos Fortunato, ex-fur mil, CCAÇ 2591 / CCAÇ 13 (Bissorã, 1969/71). Texto publicado originalmente
publicado em 15/04/2006, e revisto em 21/07/2006 por Carlos Fortunato. ]
Nota do editor:
Último poste da série > 14 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26043: Humor de caserna (77): O "cubano" que afinal era... "russo" (Carlos Fortunato, ex-fur mil, CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71)
7 comentários:
Era uma daquelas situações em que havia um claro conflito entre o direito consuetudinário (os "usos e costumes" de cada povo da Guiné, alguns "aberrantes"...) e os valores "ocidentais e cristãos" dos militares portugueses... Oque fazer ?
Não foi caso único... Lembro-me de ter ocorrido algo semelhante em Contuboel, em junho/julho de 1969, em que ajudei, na fuga, uma bajuda, também vítima de um casamento forçado...
E no entanto estávamos todos mal preparados para resolver estas sitiuações, até por que com a guerra a administração civl ficou de pantanas... Nunca vi a cara de nenhum chefe de posto e muito menos administrador... E às vezes estávamos isolados, alferes ou furriéis milicianos, a comandar uma pequena força numa tabanca em autodefesa, e tínhamos que saber resolver, com "bom senso", pequenos / grandes conflitos como estes...
Quero eu dizer que a NT (os graduados, pelo menos os milicianos, os do QP, não sei...) não tinham qualquer formação nem jurídica nem antropológica para poderem "dirimir" estes conflitos!... O alferes Mota resolveu este conflito à boa maneira bíblica... Mas o que importa,. nesta saborosa crónica do Carlos Fortunato, é o lado "pícaro" da história...
Luís, por cá naquelas palestras sobre acção psicológica o oficial instrutor, normalmente um Aspirante, desconhecia que iriamos encontrar estes casos.
Mas, sobre este caso diziam os os nossos soldados fulas, quando acontecia com homem mais velho o problema não era com ele mas sim com as outras mulheres dele,
por a bajuda passar a ser a nova criada para tudo.
Valdemar Queiroz
Sei que à última hora (talvez já no T/T Niassa) nos deram uma pequena brochura com alguns dados, sumários, sobre a história, a economia e a demografia da Guiné... Gostava de recuperar esse documento... Mas era mais do que elementar... Havia lá tempo na instreução militar de falar dos "usos e costumes" dos "portugueses da Guiné", uns animistas, outros muçulmanos, e, muito poucos, cristãos... Aprendemos à nossa custa a conhecê-los (e a ganhar a sua confiança...), no convívio, em geral pacífico, com as populações civis da Guiné e com os nossos soldados (aqueles de nós que éramos das chamadas subunidades do recrutamento local, companhias de caçadores e pelotões de caçadores nativos...).
Caros amigos, a decisao "Salomonica" parece que desencorajou o "velhote", mas nao me parece que tivesses ajudado a combater o problema de fundo na comunidade, porque se ha um "comprador" eh evidente que havia um "vendedor" que, no caso seria o pai ou um dos tios da menina. Havendo tempo e boa vontade, seria desejavel mandar devolver os bens que teriam sido usados na "transacao". Hoje em dia dizemos que: "Nao ha comprador se nao houver vendedor".
Eh verdade que, no contexto da guerra da Guine, nas localidades situadas no interior do territorio, as autoridades militares suplantavam tudo o resto e as populacoes percebiam disso e assim, como nao podia de ser, tambem deviam assumir a funcao mais importante e complexa com que as comunidades se deparavam no seu dia a dia, tal como a maxima atribuida ao general, filosofo e estrategista chines Sun Tzu: "Facil eh conquistar, dificil eh manter".
Cherno AB
Vd. artigo na página da UNICEF, da autoria de Ruth Ayisi... Afinal as coisas estão a mudar (ou podem mudar), com a participação da comnunidade... Não se muda (apenas) por decreto...
Guiné-Bissau: Fazendo frente ao casamento infantil
Cinquenta anos depois, Amilcar Cabral, ainda estamos a lutar por direitos e liberdades fundamentais... E não é só na tua terra...
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