sábado, 26 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26079: Os nossos seres, saberes e lazeres (651): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (176): Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Julho de 2024:

Queridos amigos,
Confesso que esta rota das olarias me encheu as medidas, conhecer o que foi e é a produção cerâmica e oleira que de algum modo uniu os destinos de Sta. Maria e Vila Franca do Campo, começo agora a perceber a razão deste meu prémio unindo as duas localidades. Obrigados a explorar todos os recursos locais, num tempo em que a cerâmica e a porcelana era para gente com recurso, esta gente modesta incluía obrigatoriamente no seu quotidiano bilhas, tigelas, salgadeiras, talhas, candeias, o barro vinha de Sta. Maria, as olarias daqui faziam o acerto final, seguia-se a venda ambulante, em tendas, em feiras, foi assim durante séculos. O município de Vila Franca do Campo preservou esta memória, foi um gosto conhecer esta rota das olarias, a louça da vila, amesendei, atirei-me depois a conhecer o património edificado e ao fim da tarde de um dia luminoso tive um merecido descanso trincando uma queijada da vila, o doce da terra. Amanhã também é dia.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (176):
Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental – 5


Mário Beja Santos

O anfitrião deste lugar que foi fundado em meados do século XV, Gonçalo Vaz Botelho, o lugar mais importante de S. Miguel até ao sismo de outubro de 1522, sugeriu que ao começo da manhã se fizesse a rota das olarias da vila. Saio do hotel, resisto à tentação de comer uma queijada da vila, ponho-me ao caminho, começo pelo deslumbramento dessa árvore que parece ter florescido para me receber, o seu nome é Calistemo, os anglófilos chamam-lhe Brush Bottle Tree, ela vem da Austrália, dá-se muito bem neste clima, fiquei aqui em adoração a esta maravilha da natureza.

Calistemo
Noutro ponto do itinerário dou com os vestígios do Forte do Tagarete, era também conhecido como Forte do Baixio, a sua missão era a de afugentar a pirataria, agora parece um ponto de vigilância das embarcações que estão ao largo, há barcos de pesca e barcos de recreio e uma intensa maresia. Com efeito, em 1849 foi aqui construído um porto de abrigo com cais de desembarque. Aqui fico uns momentos a contemplar num belo ângulo o ilhéu de Vila Franca do Campo.
Vou procurar entender a importância desta rota das olarias. Recolhi um desdobrável que se revelou altamente informativo. No passado, em Santa Maria, o barro era extraído do barreiro por barreireiros, que cavavam o barro à talhada. Depois, tendiam-no com as mãos, fazendo bolas. As bolas eram posteriormente batidas numa pedra, de forma repetida, para compactar e arredondar. Quando prontas, eram carregadas num barco que as levava de Vila do Porto para a ilha de S. Miguel. O barro de Santa Maria, que chegava a Vila Franca do Campo, tinha de ser limpo e amassado. Depois de distribuir pelos oleiros, era estendido para que se lhe tirassem as raízes e pedras para o depurar de forma a poder ser trabalhado. As olarias da vila tinham um pequeno barreiro no seu interior, onde era armazenado o barro que seria utilizado ao longo de meses para a produção de louça.
Ao mudar de roupa, esqueci-me do meu caderninho de viajante, sigo os ditames da memória, creio que estou na olaria do mestre João da Rita, recebido com muita afabilidade. E começo a bisbilhotar a variedade de peças que saem das mãos destes artesãos, que vão desde presépios a talhas.
Uma estante onde há de tudo de que se usava no passado e deixou marcas para o presente, desde fogareiros a frigideiras até mealheiros.
Puxo pelos escaninhos da memória, creio que estou na olaria do mestre José Batata, artesão possuidor de muita originalidade, alguém explica o que era o enfornamento, três homens a empilhar metodicamente as peças no seu interior. Retenho de uma placa informativa:
“O enfornamento, normalmente, era feito por três oleiros. Um colocava-se dentro da boca do forno, e começava a encher a ‘borralheira’, orientando os outros oleiros, sobre a quantidade e a tipologia de peças que necessitava para o enfornamento. Destaca-se a curiosidade de no forno grande caberem 44 alguidares grandes, 4 ‘alguidares de mão’ e 330 alguidares pequenos. Depois dos alguidares eram enfornadas as assadeiras e as balsas.”
Pus-me a bisbilhotar o interior do forno, lá no alto há uma saída dos fumos e da caloraça, e pus-me a imaginar como seria aquela viagem a partir de Sta. Maria, a chegada das bolas de barro até aqui, e depois este milagre de saírem bilhas, tijelas, salgadeiras de peixe, talhas e talhões, candeias e muito mais. A dita brochura que consultei adianta informação que me parece útil, destaca a ilha de Sta. Maria e os recursos minerais, nomeadamente a argila, Vila do Porto foi o principal centro de exportação do barro para as outras ilhas; a atividade oleira tradicional encontra-se extinta em Sta. Maria, e a industrial, de produção de telha, terminou nos anos 1960 do século XX. Esta rota das olarias em Vila Franca do Campo é um processo de recuperação dos últimos espaços existentes, funciona como Núcleo Museológico do Museu Municipal. Sem caderninho de notas, sei que andei pela olaria do mestre João da Rita e do mestre José Batata, terei ido a um forno de louça e acho que o passeio acabou numa outra olaria, talvez do mestre António Batata ou talvez mesmo um outro forno de louça, peço desculpa, mas não me recordo.
Não resisti a captar esta imagem, lembro-me de em miúdo ter visto esta armação que não se limitava a uma mola de tesouras e que também fazia arranjos em chapéu de chuva, este artesão punha “gatos” em louça estalada ou partida, eram objetos suficientemente caros e por vezes muito estimados que justificavam a reparação.
Foi na visita à última olaria que apareceu esta menina que se voluntariou a fazer uma peça pelos meios tradicionais, fiquei encantado com aquela habilidade de mãos.
Começa agora o passeio pelo património edificado, esta é a matriz dedicada a S. Miguel Arcanjo, tem pórtico tardo-gótico e o seu altar-mor tem uma bela talha.
Fachada da igreja do Senhor Bom Jesus da Pedra, também conhecida como Igreja da Misericórdia
Edifício da Câmara, caí aqui no auge dos festejos de S. João, tudo engalanado, para evidenciar a alegria de receber os festejos populares de junho
Estátua do Infante D. Henrique, escultura de Simões de Almeida
Convento de St. André, foi Mosteiro das Clarissas, século XVI

Esta primeira capital de S. Miguel, terra de um ilustríssimo missionário da China, Bento de Góis possui um belo património, tivesse eu mobilidade garantida e metia-me ao caminho da Lagoa do Fogo, ou iria à Ribeira das Tainhas ou a Ponta Garça. Pois bem, vou mobilizar todas as minhas energias para visitar o ilhéu e a Lagoa do Congro.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 19 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26058: Os nossos seres, saberes e lazeres (650): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (175): Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental (4) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

Na Gelfa, zona densamente arborizada, perto do mar, entre Afife e Vila Praia de Âncora, existem muitos robustos e bonitos calistemos e austrálias (mimosas) ambas espécies invasoras, que dão beleza e agradável aroma ao denso arvoredo.

Valdemar Queiroz