domingo, 2 de maio de 2010

Guiné 63/74 – P6294: Estórias do Tomás Carneiro (2): De Binta a Jugudul


1. O nosso Camarada Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor da CCAÇ 4745/73 - Águias de Binta (Binta, Cumeré e Farim – 1973/74), enviou-nos dos Açores onde vive, uma mensagem com data de 27 de Abril:


Olá camaradas e amigos,

Hoje envio-vos a última parte da minha história da guerra.
Como já havia dito noutro texto anterior, tinha que dormir em Jugudul para fazer o transporte do pessoal, para os trabalhos na frente da estrada Jugudul/Bambadinca.
Debaixo de fogo INNo dia 9 de Maio de 1974, em Jugudul formamos a coluna como de costume e arrancamos estrada fora. Ele chegou-se para mais perto de mim
e disse-me: “Isso não é nada!”

Entretanto apareceram os enfermeiros que começaram a tratar-me. Não tenho mais estórias, nem histórias, para escrever. Fotos: © Tomás Carneiro (2009). Direitos reservados.____________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

16 de Janeiro de 2010 >
Guiné 63/74 – P5659: Estórias do Tomás Carneiro (1): De Binta a Jugudul


O IN havia preparado bem esta emboscada, porque, ao mesmo tempo, atacaram também o quartel no intuito de não deixar sair socorros à nossa coluna.
Atacaram em toda a zona da frente do quartel e conseguiram colocar uma morteirada certeira no espaldão do morteiro de 81 mm, onde morreu um furriel miliciano e feriu com gravidade um 1º cabo.
Quando o combate acalmou puseram-me na caixa de um Unimog 404 e transportaram-me para Mansoa.
Ali chegado e a bater os dentes de frio (sinal evidente de febre), deitaram-me numa ambulância, que logo de seguida partiu para o Hospital Militar de Bissau.
No HMB, fui directo para o bloco, onde fui visto por dois médicos e um 1º sargento enfermeiro (creio que o seu nome era Santos), tendo-me preparado para uma cirurgia, com anestesia de meio corpo.
Disseram-me que não era grave, mas quando estavam a operar, alertaram-me para a necessidade de me extrair o testículo direito.
Meus amigos, aqui é que começou o meu maior drama, eu, um puto de 21 anos cheio de vida, estava a ver-me privado de uma coisa tão importante do meu corpo.
Chorei silenciosamente a pensar no que seria meu futuro assim mutilado.
Finda a intervenção fui para a enfermaria, permanecendo aí em estado de recuperação. Uma semana depois alguém me disse que tinha um colega numa outra enfermaria e fui vê-lo.
Era o 1º cabo que tinha sido ferido no espaldão e estava crivado de estilhaços, mas consciente. Falamos sobre o sucedido e então é que soube que o furriel tinha morrido no ataque, que acima acabei de descrever.
Entretanto tiram-me a algália e quando fui urinar verifiquei, com enorme espanto, que estava a urinar para trás e para a frente. Conclusão, tinha a uretra “partida”.
Fui então evacuado para o HMP à Estrela, em Lisboa, por avião, no dia 13 de Junho à noite.
Chegado ao aeroporto, meteram-me numa Morris com capota e segui para as urgências, após o que me mandaram numa ambulância, para um quartel na Graça tendo aí passado a noite.
De manhã, falei com o oficial-de-dia, contei-lhe a minha situação e ele mandou-me de volta para o hospital, ficando lá internado na enfermaria de urologia.
Um dia ou dois depois, estava eu encovado na cama e chegou junto de mim um médico, que começou a consultar-me.
Como entretanto comecei a chorar, ele perguntou-me o que se passava e eu contei-lhe as minhas preocupações quanto ao futuro, dizendo-lhe que me tinha sido retirado um testículo.
Ele começou a sorrir e explicou-me: “A partir de agora, você tem que fazer com um, o que os outros fazem com dois… mais nada!”
Senti-me mais aliviado a partir daí.
Fui submetido a muitos exames e a 4 operações, duas delas duplas, pelo que fiquei no hospital 23 meses.
Sofri muito nesse tempo sem ter a família perto, que me prestasse algum apoio e carinho.
Fui sempre bem tratado pelo pessoal que ali trabalhava e familiares de outros doentes, que lá se encontravam hospitalizados, tendo ganho algumas boas amizades.
Quero aqui agradecer, justa e sentidamente, a um Homem - o Doutor Barcelos Vaz -, que me ajudou muito, física e psicologicamente, e deixar-lhe aqui, caso ele tenha conhecimento desta mensagem, um grande abraço Amigo e um Muito Obrigado por tudo.
Outro grande abraço meu, vai para o 1º Sargento Lopes que sempre bem-disposto e brincalhão, comigo e com os outros Camaradas que com ele trabalhavam, me transmitiram ânimo e disposição, que muito me ajudaram a ultrapassar os piores e mais dolorosos momentos da minha vida.
Foi assim que terminou a guerra para mim.
Daqui para afrente, continuarei a ler este grande blogue, enquanto a saúde e o discernimento mo permitirem.
A partir deste momento passo novamente à condição de silêncio, sobre esta fase da minha vida, porque eu não gosto de falar muitas vezes sobre o que passei então.
As fotos foram tiradas no HM de Bissau.
Um abraço daqui do meio do atlântico com muita amizade para todos vós e até breve no nosso V Encontro, em Monte Real.
Tomás Carneiro
1º Cabo Cond CCAÇ 4745


Decorria tudo bem, com uma Daimler à frente, um Unimog 411 logo atrás (penso que nesta segunda viatura viajava o Cap. Contreiras, que vinha a comandar o pessoal) e depois vinha eu, numa Berliet repleta de trabalhadores, uns apeados e outros sentados.
Quando nos faltava cerca de 600/800 metros para chegar ao quartel, eis que rebentou um “fogachal” tremendo que não consigo descrever por palavras.
De imediato travei a viatura, que se colou de imediato ao piso da estrada e, como é de prever, o pessoal que eu transportava projecta-se para a frente, caindo uns por cima dos outros, tocando-me uma parte deles em cima.
Livrei-me rapidamente deles e lancei-me para o chão, rastejando para debaixo/frente do carro e fiquei, agora eu, ali colado ao asfalto da estrada.
Como a estrada tinha uma pequena inclinação, reparei que a Berliet começou a deslizar na minha direcção e como eu estava deitado entre os rodados, levantei-me de repente e desatei a correr para o mato, em busca de alguma protecção.
Corria agachado, como mandam as regras, quando senti uma queimadura na nádega esquerda. Lancei-me para o mato que estava num plano mais baixo que a estrada, para me tentar abrigar do fogo do IN e senti uma nova dor, na parte frontal (zona inguinal direita), onde coloquei a mão e senti qualquer coisa quente e viscosa.
Olhei para a mão e vi sangue. Fiquei aterrado e pensei: “Estou ferido!”
A meu lado estava um trabalhador que olhou para a minha mão e perguntou se eu estava ferido. Disse-lhe que sim.
Tirou o seu quico e pô-lo em cima da ferida para estancar o sangue.
Depois continuou a falar comigo, continuadamente, a transmitir-me confiança e “força”.
Este Guineense dava-se muito bem comigo e, habitualmente, andava sentado ao meu lado nas viaturas.
Não sei quanto tempo demorou o tiroteio, mas, para mim, foi muito tempo e, ainda por cima, no estado em que eu me encontrava.

6 comentários:

Anónimo disse...

Tomás,
És mesmo despachado. Contaste a tua história na guerra, e pronto: agora é só ler!
Mas isto agora é assim? É fazer o trabalho e "desenfiar", e os outros se desenrasquem!!!
Caríssimo: tens muitas coisas para contar. Há episódios alegres ("rir é o melhor remédio"), personalidades interessantes, curiosidades, aspectos do quotidiano, etc.
Manda mais, que gostamos de ler.
Até 2.ª
Um abraço amigo,
Carlos

Anónimo disse...

... Cordeiro

Anónimo disse...

Caro Tomás,

Quer tenham um quer tenham dois contam-se pelos dedos de uma mão os açorianos que por aqui pairam.

Nos Açores nós parávamos para ver a banda passar. E os barquinhos também. Depois, se tal fosse possível, continuávamos a nossa azafama com mais ardor. Sem desfalecimentos, porque o tempo e as condições não se condoíam com a vivência do nosso dia a dia.

Aqui, no blogue, temos que continuar a emprestar a mesma força do nosso querer e poder.

Sabes, tão nem como eu, que a nossa vivência de ilha nos moldou para muitas lutas na vida. Não é agora, quando ainda tens muito para contar, que te vais aposentar e passar à leitura...

Isso não é de um ilhéu que se preze. Sobrtetudo quando tem apenas um, e que dá todos os dias muito mais que muitos que têm dois.

Com amizade te digo que estás proíbido de pedir licença de dispensa.

Precisamos de ti, e gostaríamos de continuar a contar contigo.

Um abraço amigo,
José Câmara

Carlos Vinhal disse...

Caro Tomás
Mal começaste e já queres dar o fora?

Há sempre coisas para dizer nem que seja comentando, como eu agora estou a fazer.

Vais ver que lendo o que outros escrevem, te vêm à lembrança coisas de que já nem te lembravas.

Deixo-te um abraço, até Monte Real.
vinhal

Hélder Valério disse...

Caro Tomás Carneiro

Sem dúvida que a tua história não é agradável de se recordar.
Mas estás vivo, homem! E bem lúcido, que é muito importante. E contas bem, o que contas, por isso, conta mais!
É claro que, como te disse o médico, terias mais trabalho, "fazer com um o que os outros fazem com dois", o que pode explicar algum cansaço.... mas, também como disseram comentadores anteriores, manda mais escritos e estás proibido de parar.
Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Tomás,

Não sei se o meu pai algum dia teve oportunidade de ler o seu agradecimento, infelizmente faleceu há 3 anos.
Mas de certeza que o ajudou, como ajudava toda a gente, sem esperar nenhum reconhecimento em troca.
Assim como todos os portugueses que combateram por este país.
Um muito obrigado pelas suas palavras e continuação de tudo de bom.

Tiago Barcelos Vaz
tiagobarcelosvaz@gmail.com