quinta-feira, 21 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8585: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (11): Por morrer uma andorinha...

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 3 de Julho de 2011:


AO CORRER DA BOLHA- XI

Por Morrer uma Andorinha…

Era uma vez um Alferes

Podia começar assim…
Terminada uma Operação na zona do Enxalé, esperava a passagem do macaréu. Só então cambariam o Geba até ao Xime.
Meio enrolado, ouvidos à escuta, a noite a chegar e, para aumentar o desconforto, a dor do dente a voltar, raios, raios, que chatice.

-Dá-me mais uma “pincelada “ dessa Mistura Bonin? …sei lá o nome, é LM, aqui é tudo do LM.

-Tem que ir a Bissau arrancar o dente. Isto só alivia e estraga os outros.

Horas depois já estavam em Fá.
Dormiu mal. O Furriel Enfermeiro aconselhou, logo pela manhã, a ida a Bissau.

Dias depois entrou no Hospital Militar e procurou a Estomatologia. Encontrou uma sala com várias cadeiras, médicos e o cheiro próprio daqueles locais. Borrifafa-se nisso, queria era ser tratado. E foi por um médico, calmo e sorridente, que lhe traçou o destino:

- Temos que arrancar o dente.

Já o esperava.
Falaram agradavelmente enquanto esperavam o efeito da anestesia.
Tentou o médico e o dente saiu alegremente.

- Aqui está, tudo bem e volta daqui a dois dias para ver esse siso. Não é para arrancar. Prevenir.

(O médico, se bem se lembra era de Coimbra ou esteve ligado à Briosa).

Dias depois dois, claro, voltou a entrar na sala. Tentou ser tratado pelo mesmo médico. Não foi possível e outro o tratou.
Mal o ouviu. Boca aberta, dedo lá dentro, breve espreitar.
Pouco depois zunia, com ruído irritante, a broca que de pronto avançou, primeiro na direcção da boca e depois do dente. Por pouco tempo, urrou o alferes e parou a broca.

-Tem que ser arrancado, sentenciou o clínico.

E foi. Foi com força e protestos do médico contra dente tão teimoso. Finalmente o siso lá saiu, descansou o médico e o alferes continuava, em surdina a chamar-lhe… isso mesmo, pensou bem.

Saiu da sala, com Guia assinada e ordem de regressar no dia seguinte ou noutro que não interessava.
Volto o “tanas de albernoa”…

Voltou e muito rápido. Nunca digas nunca.

Voltou porque horas depois as dores eram fortes, o sangue teimava em aparecer ao canto da boca. - Estou lixado.

Um Tenente de Cavalaria levou-o, no “jeep” que tinha, ao Hospital.
No caminho comentaram o que o HM 241, quem lá trabalhava e outros militares ligados à saúde representavam para os que estavam no mato.

“O que interessa é chegares vivo ao Hospital de Bissau e estás safo”. Em dias de tecto baixo, com dificuldade em evacuações de feridos, sentia-se o moral das tropas.
Por morrer uma andorinha… e isto não era caso de vida ou morte…

Entrou no Hospital, a cabeça a latejar, a visão meio enevoada, a raiva a tirar-lhe o juízo depois da partida do siso.
Nem viu, ao dobrar uma esquina, um Major do BART 1904.

- Então, que se passa? - Disse o Major.

Relatou brevemente e seguiu o Major. Numa sala estavam muitos militares ligados, se bem se apercebeu, à saúde. Ele saiu dali.
Pouco depois apareceu o Major e o tal clínico.

- Eu espero aqui. Tem transporte?

- Devo ter ou talvez não.

Seguiu o homem que lhe extrairia o siso e os protestos dele.
Ele nada dizia só, em surdina ia “falando”… do dito e de muito mais. Era para se entreter, para tranquilizar.
Sentou-se na cadeira, abriu a boca, lavou com água e algo mais, suportou a introdução de uma massa acastanhada ou que ficou dessa cor, levou uma injecção e esperou.

- Vai à Farmácia Militar e levanta o que aí está. Toma como aí diz. Volta cá daqui a… não se lembra quando ou participo de si. Aceitou o papel e a Guia com as novas indicações.

Saiu, foi à Farmácia, recebeu medicamentos e informações.

Nesse dia, talvez não, no outro já estava em Bambadinca e depois em Fá.
Da recuperação se encarregou o Enfermeiro.
A Guia… o vento levou-a… tudo o vento leva…

Passado muito tempo, já em Mansambo, a Companhia estava com muitos problemas de saúde. Recebeu, por isso mesmo, uma visita de alguns médicos héli-transportados.
Parece ter decorrido bem. Dizem que sim, se não me engano.
Fizeram fila para verificação dentária. Depois da saída do primeiro, talvez do segundo “doente” , desapareceu a fila. Seria…?

Na parada havia militares a lançar aviões de papel. Gritavam. - Vou para a Metrópole. Outros pediam boleia. Um outro, que tinha partido os óculos numa emboscada e ficou sem eles, o tique de os puxar para o lugar com o indicador manteve-se. Outro tomava comprimidos por cores. E agora? Azul… depois o verde…

Parece que ao fim da tarde, o tal Alferes regressou, salvo erro, da Moricanhe com o Grupo. Soube as novidades.
Foi benéfica, para a saúde daqueles militares a consulta colectiva. As condições eram demasiado más e foi uma boa medida.

Parece que o Comandante da Companhia teve que passar, no dia seguinte ou no outro, pelo Comando de Batalhão para uma ou outra explicação. Sem problemas se bem me lembro.

Tudo bem e lá continuaram cantando e rindo… mas a saúde e certas condições parece terem mudado.

Era uma vez um velho, a quem há décadas atrás chamaram Alferes... que, mesmo tanto tempo depois, se ouve o zumbido da broca no estomatologista fica muito, muito desagradado… vidas…
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8565: Fotos à procura de... uma legenda (1): Álbum de Torcato Mendonça (CART 2339, Mansambo, 1968/69)

Vd. postes da série de:

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1353: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (1): O bababaga e o papa-figos

9 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5958: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (2): SPM 4758

12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5974: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (3): O velho picador

16 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6002: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (4): Os apontamentos de Amílcar Cabral

20 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6197: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (5): Mentes com dúvidas

21 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6202: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (6): Quem ficou com a minha G3

3 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6305: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (7): Lágrimas secas

14 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6388: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (8): Promessas

16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6404: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (9): Páscoa de 1968

17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6410: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (10): O saco do Zé Paz D'Almas

6 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro amigo Torcato Mendonça,

Essa dos médicos irem lá...

Faz-me lembrar uma intoxicação alimentar no destacamento São João. Por esse facto um médico de Bolama teve que deslocar-se para observar os intoxicados.

Os dois oficiais e os furriéis foram dados por incapazes.

Tal como na paródia do Raul Solnado, tivemos que fechar a porta da guerra por alguns dias.

Um abraço amigo,
José Câmara

Juvenal Amado disse...

Diz-se que com o siso vem o juízo.

Quando arrancamos algum, que são os últimos a nascer e os primeiros a terem de ser arrancado pensamos, que para tão pouco tempo não vale a maçada.
Arranquei um à 10 anos e andei mais de três semanas a trabalhar à custa de comprimidos para as dores.
Quanto à broca, ainda me calhou ontem, está claro que o processo está muito humanizado mas que arrepia, arrepia!!!.

Abraços

Rui Silva disse...

Caro Torcato.
A respeito dos dentes no HM 241 tenho boas e más notícias para te dar.
Queres primeiro as boas?
Quando alguém entrava naquele hospital com dor de dentes saía de lá sem elas e bem aliviado. Uf!

Agora as más?
Ficava também aliviado do dente pois este ficava lá.
Muita rapaziada vinha da Guiné desdentada.
Passei pelo tal hospital e vi "in loco" como era. A malta queixava-se que ficava logo sem o dente, nem dava para pensar.
Tratar? isso é que era bom!
Livra(!), que não foi lá à consulta de Odontologia.
Um abraço e passa bem.
Rui Silva

Anónimo disse...

Eh!Eh!Eh!

Homens com medo do dentista!
Nem acredito que tiveram na guerra!
Vê-se mesmo que são do século passado!

Hoje não vos envio um abraço, mas sim uma gargalhada.

Claro que estou apenas a brincar.

Felismina

Colaço disse...

Ir a uma consulta de estomatologia hoje não há que recear, a anestesia local tudo resolve, mas uma consulta de urologia cuidado com algumas médicas.

Hélder Valério disse...

Caros camarigos

Quando me saiu 'em rifa' ser enviado para Piche com a missão de obter do comando do batalhão local (BCav 2922) a construção de um edifício para colocação do posto de rádio do STM, sem nenhuma garantia de colaboração nesse sentido, portanto sem horizonte temporal, houve logo uns amigos que me disseram que uma forma de voltar a Bissau temporariamente era tratar de arranjar uma consulta no dentista....
Ora aconteceu que por esses tempos colocaram um estomatologista em Nova Lamego e isso frustrava a ida a Bissau para onde podia ir de Piche em DO ou coisa assim, enquanto que para Nova Lamego funcionava a 'coluna' que, como sabem, tinha os seus riscos, como aqui já foi dado conta, entre outros, pelos relatos do Luís Borrêga.
Mais tarde, já em Bissau, deixei andar até que me decidi a tratar dos dentes, no final da comissão, sendo que tinha a consulta a 19 de Novembro de 1972. Como regressei a 10, faltei!

Abraço
Hélder S.