1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Julho de 2011:
Queridos amigos,
O livro de Julião Soares Sousa bem merece uma análise mais detalhada, tal a riqueza de pormenores e a investigação aturada que ele levou a cabo. Este primeiro doutor guineense pela Universidade de Coimbra supera as melhores expectativas, tal o rigor e equidistância que soube manter na sua investigação, do princípio ao fim. Propõe teses novas sobre a formação de Cabral, as bases da construção do PAI/PAIGC, analisa a ideologia socialista do líder do PAIGC sem tabus. Como é desassombrada a sua análise quanto ao assassinato que ocorreu em 20 de Janeiro de 1973, matéria a que dedicaremos a terceira e última recensão.
Estou à vontade, não conheço Julião Soares Sousa, posso propor sem hesitação a sua leitura como indispensável para a compreensão da guerra que todos nós travámos.
Um abraço do
Mário
"Amílcar Cabral – Vida e Morte de um Revolucionário Africano"
Amílcar Cabral: à volta do projecto de unidade Guiné e Cabo Verde
Beja Santos
Um dos aspectos mais relevantes do livro de Julião Soares Sousa sobre Amílcar Cabral é o de permitir um estudo desapaixonado e rigoroso em torno do contexto africano de unidade, a par da génese e evolução do projecto federalista entre Guiné e Cabo Verde que o líder carismático do PAIGC desenvolveu e que estará certamente na base dos maiores sucessos alcançados na luta de independência mas que comporta, de igual modo, o gérmen da destruição dessa mesma unidade.
O autor recorda-nos que o conceito de unidade africana fez fortuna e apareceu associado à ideia pan-africana de unidade do continente: Guiné e o Gana manifestaram a sua intensão de se unir, logo em 1958; Nkrumah defendia que a força do continente africano radicava na união; Nierere, da Tanzânia, advogava que apenas com a unidade se poderia assegurar que os africanos governavam realmente a África. Foi um movimento que culminou com a organização da unidade africana. No percurso, assistiu-se a várias tentativas de uniões regionais e sub-regionais: Gana e a Guiné Conacri; Daomé (actual Benin), o Sudão, o Alto Volta (actual Burkina Faso) e o Senegal formaram a Federação do Mali, etc. Como se sabe o projecto que se tornou mais duradouro na África Austral foi a união entre o Tanganica e Zanzibar que deu origem à Tanzânia, os outros foram simplesmente efémeros.
No final dos anos 50, Cabral estava atento a estes projectos de uniões regionais. O contexto africano era de superar os nacionalismos particularistas. Julião Soares Sousa está convicto de que o projecto federalista de Cabral surgiu em 1959, é a partir de Setembro desse ano que se começa a falar da unidade entre Guiné e Cabo Verde. Nos estatutos do PAI diz-se claramente que é uma “organização política das classes trabalhadoras da Guiné dita portuguesa e de Cabo Verde” e que a sua actividade será exercida nos dois países; esses mesmos estatutos previam a criação de comités e conferências para cada um dos territórios em questão. De acordo com alguns testemunhos da época, a começar por Luís Cabral, Amílcar destacava a origem ancestral comum e facto da Guiné e Cabo Verde dependerem da mesma potência colonial; e argumentava de que a separação da luta das duas colónias seria aproveitada pelo colonizador que poria os cabo-verdianos a dominarem guineenses. Cabral estava pois convencido que o projecto de união tinha solidez histórica e cultural, referia o tráfico de escravos transportados do continente para as ilhas, falava na paridade do crioulo e até na união orgânica ao longo de séculos. Contudo, não deixa de causar perplexidade não ver, por parte dos estudiosos e biógrafos de Cabral, nenhum exame a este conceito francamente voluntarista da unidade histórica e cultural, nem os investigadores cabo-verdianos ou guineenses têm mostrado iniciativa em desmontar esta confabulação montada em elevado conceito; nem se conhece nenhuma reacção, a partir desses anos 60 e até mesmo à independência, de assembleias internacionais ou políticos africanos, parece ter descido uma cortina de silêncio ou aceitação sobre as teses de Cabral acerca da unidade Guiné e Cabo Verde.
Julião Soares Sousa vai destacando reacções desfavoráveis quer de cabo-verdianos quer de guineenses, ela será uma constante no fraccionamento dos diferentes grupos e grupúsculos oposicionistas, sediados no Senegal, na Guiné-Bissau e na Guiné-Conacri, isto para já não falar da contestação em certas elites cabo-verdianas. O discurso de Cabral passará a ser rebarbativo e assumirá quase uma toada mágica: seriam povos irmãos, mesmo com problemas específicos; Guiné e Cabo Verde eram do ponto de vista histórico, étnico, económico, social e cultural, um só povo; ele falava em “o nosso povo do continente e das ilhas” como se houvesse uma única comunidade nacional. Obviamente que este discurso dogmatizante ganhava carga contraditória quando ele próprio aludia às diferenças na situação económica, social e cultural dos dois povos, eram diferenças que ele considerava suficientes para consolidar a unidade.
Como toda esta concepção ideológica era destituída de rigor histórico e político, Cabral foi usando de argumentação de elevada plasticidade até ao seu assassínio, sempre que invocava a unidade. Como é evidente, o conceito acabou por funcionar como uma peça estratégica ao serviço de outros movimentos de libertação, e foi inegavelmente um factor no combate às tentações étnicas que se foram camuflando dada a capacidade de manobra e a oratória de Cabral.
O líder apercebeu-se que tinha que passar para o terreno, interiorizar a subversão graças a quadros preparados. O seu conceito revolucionário foi aceite pelos diferentes movimentos independentistas das colónias portuguesas, a começar por dirigentes de alto coturno como Viriato da Cruz, Lúcio Lara e Mário de Andrade, com quem Cabral tinha excelentes relações. Em Maio de 1960, Cabral chega a Conacri onde se fixam o PAI e o MPLA. Começa um longo percurso até assumir a liderança do movimento de libertação, desarmando gradualmente os grupos opositores. A sua capacidade de trabalho é enorme, na elaboração de documentos teóricos e de comunicados, na correspondência trocada com outros líderes, na participação em reuniões internacionais e na organização do PAIGC, no acompanhamento da subversão ao nível de Bissau, o líder parece incansável, uma onda gigantesca em movimento. Acresce que foi necessário superar desconfianças mesmo dentro da Guiné Conacri e uma suspeita de Senghor quanto aos propósitos políticos de Cabral. Aos poucos, os quadros foram sendo formados no exterior, na Guiné-Bissau. Rafael Barbosa comportava-se como um impetuoso revolucionário, os grupos de oposição desagregaram-se. Sem que as autoridades portuguesas se apercebessem do alcance subversivo, encetou-se a mobilização junto dos camponeses, preparando-os para a hostilidade contra os portugueses. Mas os revezes também chegaram cedo: as prisões em 1961 e 1962, sobretudo as últimas que levaram Rafael Barbosa à detenção. Mas nesse ano o quadro revolucionário encontrara terreno para a prática subversiva: a região Sul é praticamente desmantelada, destroem-se pontes e embarcadouros, isolam-se localidades, aniquilam-se as comunicações.
Em Janeiro de 1963, com o ataque a Tite, é dado o sinal do desencadeamento da luta armada. No final desse ano, há grupos de guerrilheiros e populações apoiantes por praticamente toda a região Sul, no Corubal e no Morés. Cabral é um teórico, um diplomata, um organizador, um estratega. Quando se lê esta biografia política de Julião Soares Sousa não deixa de impressionar a distância colossal que o separa quer dos seus pares dentro do PAIGC quer dos outros líderes independentistas: criou uma doutrina socialista especifica e vai ditar regras dessa originalidade em areópagos onde o pensamento soviético primava por ser o único; usa a unidade Guiné-Cabo Verde como contribuição indispensável para a união africana; é um pensador e um agitador sempre em movimento. A sua obra teórica é de grande valor, toda ela escrita num português exímio.
O seu calcanhar de Aquiles, ver-se-á na próxima e última recensão, residiu na incapacidade de dar resposta ao contencioso entre guineenses e cabo-verdianos que, de um modo geral, não se reviram completamente na construção do Estado proposta por Cabral. No auge do seu prestígio, será assassinado: a criação revoltou-se contra o criador. E, como é por todos sabido, a criação ainda não ganhou identidade.
(Continua)
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 15 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8559: Agenda Cultural (143): Cartas de Amor e Saudade, por Manuel Botelho, no Centro Cultural de Cascais até ao dia 28 de Agosto de 2011 (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 13 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8549: Notas de leitura (256): Amílcar Cabral – Vida e morte de um revolucionário africano, por Julião Soares Sousa (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Estamos em Julho de 2011. Vivemos hoje depois do fim ou estertor das utopias revolucionárias (União Soviética, China, Cambodja, Coreia, Cuba,até África, etc...) que provocaram dezenas de milhões de mortos e sofrimentos inenarráveis.
Em 20 de Janeiro de 1973,Amílcar Cabral foi cobardemente assassinado às mãos dos homens do seu próprio povo(ou povos, 32 etnias diferentes só no solo da Guiné).
Leio as palavras do recensor:
"Toda esta concepção ideológica (da união Guiné-Cabo Verde e das etnias da Guiné)era destituída
de rigor histórico e político."
E mais abaixo, leio;
"A sua (de Amílcar Cabral)obra teórica é de grande valor."
Prometi não comentar mais nada.
Registo apenas.
Abraço,
António Graça de Abreu
Ps. Sabem como morreu o revolucionário angolano Viriato da Cruz, no exílio em Pequim, em 1975?
Eu cheguei a Pequim em 1977 e conheci muito bem pessoas que conheceram muito bem o Viriato da Cruz. Como foi possível deixarem morrer assim, abandonado por todos, um homem da estatura do Viriato da Cruz?!...
As utopias, pois...
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