Meu caro Luís,
Meus caros membros do Comando e Estado Maior do blogue do nosso contentamento,
Meus caros camarigos, soldados rasos como eu, empenhados ou não na árdua luta contra o esquecimento, contra o ostracismo a que nos querem sujeitar, a nós velhos combatentes duma guerra que já nem sei mesmo se chegou a haver.
O imenso orgulho que nos merecem, a gratidão por quanto têm feito para o não permitir, são um lenitivo para quem caminha para a velhice, arrastando no chão os pés cansados, sofridos e desgastados pelo louco palmilhar daquelas imensidões duma África inóspita e traiçoeira, misteriosa e desconhecida.
Velhos combatentes que sentem os corpos precocemente envelhecidos e alquebrados, tisnados pela canícula dum sol que tudo queimava, enrugados pelas oscilações da temperatura, que nas madrugadas passadas ao relento junto a locais com água, descia a níveis jamais imaginados como possíveis para quem Guiné condiz com calor, muito calor.
Que veem esses mesmos corpos carregados de doenças que em muitos casos nunca chegaram a sarar.
Que sofrendo na alma o desalento, a frustração e o desencanto por tanto penar, tantos sacrifícios feitos em vão, tantas mortes sem sentido, por tantos que pelos matos se perderam, por aqueles que nunca mais se encontraram, por uma Pátria cuja classe dirigente saída do 25 de Abril, feita muito mais de desertores, compelidos, refratários, fugidos, refugiados, exilados, comodamente instalados nos países amigos dos nossos inimigos de então, com muito mais afinidades com os Movimentos então adversos, revendo-se nas alegres notícias da Rádio Argel, ou escutando as patacuadas da Maria Turra que num só dia matava muitos mais pára-quedistas que o PAIGC num ano, Pátria que então renegaram, mas em nome de quem se permitem hoje falar como se a tivessem servido e não se tivessem dela servido.
Pátria que num misto de medo e vergonha não lhes reconhece o valor, o mérito, o muito que fizeram por aquelas terras e aquelas gentes, que não quer saber dos sacrifícios e privações, que nem deles quer ouvir falar e muito menos dos traumas de guerra, as psicoses, as neuroses, ansiedades, agonias, tormentos e pesadelos de que se não conseguem livrar ou da visão trágica da morte que teima em os acompanhar.
É dum desses meninos que as circunstâncias fizeram homem, herói duma verdadeira epopeia de Portugal em África, por quem tenho o maior orgulho de que te quero falar, pois vi o seu nome vir à baila não faz muito tempo no nosso blogue.
Recorrendo a quanto está escrito em Rumo a Fulacunda aqui te vou dar uma ideia do que foi, como era e como me marcou na vida esse ser de excepção que dá pelo nome de Carlos Rios.
Cruz de Guerra de 1.ª classe sem qualquer tipo de favor, ele era um dos furriéis do meu grupo de combate.
Das várias referências que faço sobre ele ao longo do livro, permito-me destacar algumas.
Começava por falar do meu batismo de fogo. Transcrevo : "Guardo do meu batismo de fogo, da reação àquela primeira emboscada que nos foi montada, uma recordação precisa: da indecisão inicial, da ténue desorientação em identificar de onde provinham os tiros, da ânsia de cumprir quanto me havia sido ensinado e rapidamente me atirar para o chão donde. como já referi, nada se via e pouco reagia, acabando quem assim procedia normalmente a dar tiros para o ar [...]
[...] A reação do Grupo, de princípio pouco indecisa, foi sendo cada vez mais ousada e a confiança ia crescendo... tendo por especial referência o Rios que foi ao longo do tempo que permaneceu entre nós, até ser gravemente ferido, o elemento mais activo, dos que nunca se incomodava na busca de um abrigo ou de qualquer outra protecção [...]
[...] Seguramente sem ele a minha ação teria sido bem mais difícil se não mesmo impossível... Nunca lhe poderemos, nem eu nem seguramente todo o grupo... retribuir o muito que por nós sacrificou, a generosidade com que nos brindou, o exemplo que nos contagiou [...]"
Seguindo em frente, ao falar do acidente que vitimou o José Monteiro escrevi: "As nossas relações que foram sempre de uma total lealdade evoluíram para uma franca amizade e perduram hoje tão imutáveis, tão vivas, tão seguras e tão fraternas como a partir de então sempre o foram. O acidente que sofreu meses mais tarde, constituiu, tal como com o do Rios, dos momentos de maior desilusão, algum desânimo e da mais profunda tristeza por que passei em toda a minha vida.
Para mim eram e continuam a ser verdadeiros irmãos."
Na apresentação que faço do pessoal do meu grupo e na parte que lhe diz respeito, focando principalmente a operação onde foi ferido permito-me destacar:
"[...] foi ele que insistiu em integrar a operação [...] Mas a verdade é que ele foi porque me impuseram que nela tomasse parte. O nosso pelotão estava a ocupar os destacamentos. Tanto ele como eu estávamos em Mansoa por motivos meramente circunstanciais: ele porque ia no dia imediato à consulta externa, a Bissau e eu porque embarcava de férias para Angola daí a três dias. [...] Nessa tarde o capitão [...] mandou-me chamar:
- Oh. Rui! Gostava que fosse connosco logo à noite [...]
- Nem pensar nisso! [...] Nenhum dos pelotões intervenientes é o meu e por conseguinte não tenho mesmo nada a ver com o assunto! Além do mais vou de férias, não se lembra?! - Há mais dois anos que não vou a casa e a proposta parece-me totalmente descabida e absolutamente despropositada.
- Mas a verdade é que não tenho mais ninguém [...]
- Então e o Senhor não vai?
- Claro que sim, não tenho outra alternativa.
- Então é quanto basta [...]
- E além do mais já falei do assunto ao comando do Batalhão e alvitraram que o levasse comigo.
- Quem? O Comandante?
- Também. Mas quem o sugeriu foi o capitão C... [...]
- É uma grande sacanice! [...]
E saí porta fora a remoer a questão. De caminho encontrei o Rios... [...]
- Não te preocupes. Desisto da consulta e também vou e assim já somos dois a tomar conta do barco.
- Nem pensar nisso! [...]
Pois sim! [...] Foi na operação [...] e quando tentava apanhar à mão um turra que se esgueirava, foi alvejado [...] um tiro lhe destroçou a cabeça do fémur e o estropiou para o resto da vida [...]
[...] Recolhidas as forças por uma lancha da Marinha... até Bissau... Parada... frente ao Hospital Militar... aí fomos em busca de notícias.... Que me desalentaram por completo...
...destroçada a zona em que a cabeça do fémur fazia a articulação com o osso ilíaco... não mais dobraria normalmente a perna...
...Com a mais profunda e ressentida tristeza na alma.... sentado na borda da minha cama deixei que amargamente as lágrimas me corressem pela cara... aquelas lágrimas eram o sinal exterior da minha enorme revolta contra a injustiça...."[...]
Mansabá > Ex-Fur Mil Carlos Rios e ex-Alf Mil Rui Alexandrino Ferreira da CCAÇ 1420
Alguns graduados da CCAÇ 1420 num jantar de confraternização no Bairro Alto. Da esquerda para a direita - Carlos Rios, José Monteiro, Henrique Sacadura Cabral, José Manuel Bastos e Rui Alexandrino Ferreira.
Meu caro Luís.
Espero ter dado uma ideia da grandeza de alma do Carlos Rios.
Em anexo vão duas fotos.
Na primeira eu e ele em Mansabá durante a realização duma coluna de reabastecimentos a essa localidade e ao K3. Nesse mesmo dia accionada uma mina entre o K3 e o rio frente a Farim tinha causado a morte do Capitão Corte Real.
Na segunda alguns graduados da 1420 num jantar de confraternização no Bairro Alto. Da esquerda para a direita - Carlos Rios, José Monteiro, Henrique Sacadura Cabral, José Manuel Bastos e eu.
Fica para uma próxima oportunidade os meus comentários ao anexo do HMP.
Um grande abraço
Rui Alexandrino Ferreira
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 26 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8166: 7º aniversário do nosso blogue: 23 de Abril de 2011 (21): Saúdo o núcleo permanente de colaboradores que vem mantendo absolutamente impecável este grande projecto (Rui Ferreira)
Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8528: (Ex)citações (142): O espaldar do morteiro 81 de Cancolim estava no meio da parada (Juvenal Amado)
3 comentários:
Caro Rui Frrreira,
Independentemente da justiça que fazes ao teu furriel Carlos Rios, e por isso mesmo acto passível de grandes encómios,gostaria de te saudar pela coragem que evidencias em zurzir nessa corja desertora e refractária que tem ignorado, do alto do seu peito inchado de governantes(eu diria que se têm governado...)os ex-combatentes que deram o melhor de si mesmos quando foi necessário fazê-lo.
Essa corja, que chegou ao desplante de apresentar candidatura ao lugar de comandante chefe das forças armadas, continua a empanturrar-se com prebendas, com beneficios em catadupa, sugando o sangue dos que tiveram uma vida de trabalho.
Gente que se encostou ao enorme guarda chuva estatal e continua a sugar na gorda teta...
abraço
manuelmaia
Viva Rui!
Nem era preciso falares do ex-Furriel Rios, que pessoalmente conheci, com muito gosto, num Convívio da tua Companhia 1420 aí em Viseu, ainda há relativamente pouco tempo, para eu saber que ele tinha sido (e o é concerteza) um grande e valente homem e que grandes serviços prestou à Pátria.
Lembro-me de o conhecer um pouco debilitado e portanto também uma grande vítima daquela guerra.
Aproveito para o saudar e desejar a ti e ao Rios a melhor saúde e que passem bem.
Recebe um grande abraço
Rui Silva
Caros camarigos
Sem dúvida trata-se de uma sentida e sincera homenagem efectuada ao Carlos Rios.
Digna de registo.
Abraço
Hélder S.
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