quinta-feira, 11 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5974: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (3): O velho picador, Seco Camará

1. O Velho Picador, mais um texto para a nova série Ao correr da bolha, enviado por Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), em mensagem do dia 2 de Março de 2010:


Ao Correr da Bolha - III

O Velho Picador


Vi num “Poste” uma foto do velho Seco Camará. Senti saudades dele. Senti saudades de ter menos quarenta anos e, com ele e um grupo, voltarmos a ir ao Poidom, a fazer as “operações” de outrora, parando em “grande alto” para descansar e comer a ração. Diria então o velho Seco, caso a ração dele fosse contemplada com polvo ou lulas:
- Alfero,  rabo de rato, troca pelas tuas sardinhas.

Eu ria e trocava. Comíamos e conversávamos e eu com ele ia aprendendo, não a arte da guerra, mas só a guerra naquele bocado da Guiné que ele, velho mandinga, conhecia como a palma de suas mãos.

Há quantos anos? Desde o inicio, há cinco ou seis anos atrás. Que pensaria ele de nós que íamos e vínhamos à cadência de um ou dois anos? Não sei. Era um velho guerreiro, colaborador das NT ou Nossas Tropas. Morreu, talvez menos de dois anos depois, nem tanto. Voou para o Paraíso dos Mandingas, o velho Seco Camará.

Antes a morte em combate que teve, do que o abjecto e cobarde pelotão de fuzilamento dos libertadores. Quantos amigos meus, como o Seco, passaram por isso?! Quantos? Homens que foram auxiliares das NT e ingloriamente assim desapareceram.

Que fariam eles, durante a guerra, se não andassem connosco? Iam para a guerrilha. Mesmo estando connosco,  quantos em nós acreditariam? Quantas reservas poriam à nossa actuação, à nossa presença e, se colaboravam, quantos não o faziam contrariados com certos militares nossos.

Lembro aqui o caçador Lhavo. Homem grande, olhar e porte altivo, vestimenta muçulmana. Era o meu guia preferido. Não facilitava os pedidos para colaborar. Lembro que foi ele a encontrar o acampamento do Mamadu Indjai. Não queria ir. Naquele fim de tarde falei com ele pausadamente, o Capitão afastado a observar e o Lhavo a entender o que eu lhe dizia. Depois olhou-me e calmamente disse:
- Amanhã ao nascer do Sol vem a Afiá, agora vai para Candamã.

Assim foi feito e com bons resultados.

O Lhavo uma vez ficou aborrecido comigo. Regressávamos da [Op] Lança Afiada, manhã a nascer,  e avistamos uma vaca de mato. Ele queria atirar. Fiz-lhe sinal que não. Baixou a arma e já em Mansambo disse-lhe o porquê. Compreendeu e apertamos as mãos. Talvez se tenha aí cimentado mais a nossa amizade.

Esta gente das Tabancas é que para mim foi, e ainda hoje é, o Povo da Guiné.

Um outro homem diferente mas por quem tinha amizade, o António Bonco Balde, régulo em Candamã, Alferes de 2º Linha (nunca o vi vestido de militar), homem criado numa Missão, empregado em Bissau e regressado a Candamã após a morte do pai. Homem de múltiplos saberes e com ele aprendi muito. Miúdo alferes de 23 anos e Fula, talvez, de quarenta e…homem bom.

Só um breve episódio.

Estava com o meu grupo em Candamã e Afiá, tabancas em auto defesa. Um dia de Afia informaram que faltavam muitos homens. Já sentíramos isso em Candamã. Falamos com o Régulo António Bonco. Ele disse já saber e que eu tinha que compreender. Os “tchãos” não davam o suficiente para alimentar as famílias. Conversamos bastante e agora resumo em breves palavras. Dizia ele:
- Os homens vão para a apanha da mancarra no Senegal. O pior é que quem os leva,  ganha dinheiro, quando regressam quem lhes faz o câmbio ganha dinheiro e eles nem metade do que ganharam trazem.

Fiz um relatório sobre essa exploração, os lucros de comerciantes sem escrúpulos, o silencio da Administração e, se as Informações militares de nada sabiam…ou sabendo…até porque assim cada vez se desguarnecia mais a defesa das tabancas. O Régulo fez questão de assinar também. Foi o relatório enviado à Companhia, o Capitão levou ao Batalhão e este ao Agrupamento.

Sempre se passou algo mas depois fez-se silêncio. Antes do silêncio foram-nos entregues sacos de arroz para distribuir, equitativamente, pela população. Assim não se resolve nada,  dizia o Régulo e eu… história encurtada, inacabada e a merecer tratamento duro nesse tempo.

Quem aos inimigos, perdoa às mãos… pois!

Curiosamente, dizem, se bem me lembro, que o Comandante do BCaç 2852 e um Capitão foram molestados, digamos assim, após o ataque a Bambadinca. Os civis ou a administração civil teria algo a ver com isso? Certamente que não! E que interessa isso agora? Nada!

Será que os homens das tabancas continuam a serem explorados? Certamente que não!
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 9 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5958: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (2): SPM 4758

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