sexta-feira, 12 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5979: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (14): O acampamento na Mata dos Madeiros: um buraco no meio do nada

1. Mensagem de José Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 5 de Março de 2010:

Caro e amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás a continuação do meu roteiro por terras da Guiné.
Neste caso pela Mata dos Madeiros, onde os corpos se confundiam com a terra vermelha. Foi um tempo difícil para nós.
Aqui, nesta mata, aprendi o verdadeiro sentido das palavras camaradagem e amizade, comando e comandados.

Hoje, trinta e sete anos depois, continuo a recordar a cartilha de então.

Para ti e para todos os camaradas, com muita amizade, um abraço.
José Câmara


Memórias e histórias minhas (14)

O acampamento na Mata dos Madeiros: um buraco no meio do nada


A Mata dos Madeiros não era mais que uma faixa de terreno que dividia as matas da Caboiana e do Balenguerez. Foi nesta mata, na estrada velha, tipo picada, que o General Spínola ter-se-ía encontrado com os gurrilheiros do Chão Manjaco, no processo que levaria a uma possível entrega daqueles, o que não veio a verificar-se. Esse processo, como sabemos, acabou com a morte de três majores e um alferes.

Entre aquelas duas míticas matas, avançava a nova estrada Teixeira Pinto/Cacheu. A CCaç 3327 era uma das forças de intervenção do CAOP 1, então em Teixeira Pinto. Durante a nossa intervenção na estrada, contámos com a protecção afastada de uma força da Companhia de Caçadores 2791, da Companhia de Comandos 26, do Destacamento de Fuzileiros 13, e de uma força da Companhia de Caçadores Pára-quedistas (se a memória me serve bem era a 122, ficando sujeito a correcção).

Localização da estrada Teixeira Pinto/Cacheu

Passada que foi a primeira noite, em plena Mata dos Madeiros, à guerra com os mosquitos, o amanhecer veio-nos mostrar aquilo que seria a nossa vida a partir daquele momento.

O acampamento, um buraco no meio do nada, não era mais que uma terraplanagem em rectângulo sensivelmente do tamanho de um campo de futebol. A protecção física do acampamento era formada por duas grandes barreiras de terra feitas com as máquinas da companhia empreiteira da obra. Era o que tínhamos!


Foto 1 > Um aspecto de um dos acampamentos da CCaç 3327 na Mata dos Madeiros. Ao fundo, na barreira de trás e da frente já é possível verem-se alguns postos de sentinela prontos, e um em construção (em primeiro plano). Ao fundo, a tenda grande era a cozinha de campanha. Na frente, na tenda da esquerda estava montado o Posto de Transmissões com a antena montada na frente. A tenda mais pequena resguardava a água potável (?) do sol. A tenda a seguir era o Posto de Comando (Cap. Rogério Alves).
O arvoredo ao fundo seria mais tarde cortado com a passagem da estrada junto à entrada para o acampamento.


Logisticamente, as nossas malas continuavam aos montes por todos os lados, as barracas continuavam por montar, e tínhamos que dar início às primeiras necessidades de sobrevivência. Havia que definir o plano e implementar a defesa próxima do acampamento, montar as antenas de transmissões, montar a cozinha de campanha, preparar os piquetes para o corte de lenha e escoltas ao Bachile para reabastecimento de água, pão e correspondência, e possíveis evacuações de doentes e feridos. Depois houve que definir os grupos a seguir para o mato na defesa afastada do acampamento, picagem da abertura da estrada e defesa próxima das máquinas. Os arranjos dos postos de sentinela, a preparação de um local que servisse para montar barris com água para higiene, o espaldar para o morteiro 120 e a localização da Capela ao Sagrado Coração de Maria também foram enquadrados.

Foto 2 > Pormenor desta fotografia: a boa disposição dos soldados António Cardoso, Silvestre Júnior e Avelar Ventura, todos da minha Secção. Não consigo identificar o indivíduo de camisa branca. Cada uma destas instalações(?) albergavam uma equipa.

Como missão principal, tínhamos a protecção da estrada que estava a ser construída entre Teixeira Pinto e o Cacheu, e dos cerca de 800 africanos que procediam ao corte do arvoredo no itinerário por onde passava a estrada.

Essa missão seria assegurada da seguinte forma: dois (2) grupos de combate permaneceriam fora do acampamento durante 24 horas a fazer a segurança afastada à estrada e ao acampamento. Dos outros dois grupos, um faria a picagem à estrada e montava segurança próxima às máquinas que trabalhavam na mesma até cerca das 18:00 horas, e o outro mantinha a segurança do acampamento, providenciava a lenha para a cozinha, e fazia as deslocações ao Bachile e, se necessário, a Teixeira Pinto. Cinco secções destes dois grupos faziam a segurança nocturna ao destacamento. Cada posto de sentinela era assegurado por três soldados. Perante este cenário, cada secção tinha, na generalidade, um descanso nocturno ao fim de 12 dias de serviço constante.

Foto 3 > Pormenor da vala onde, muitas vezes, se perdia a paciência à espera de um ataque. Ainda não são visíveis os abrigos

O sucesso da nossa missão dependia muito da disciplina e do respeito, mas sobretudo da compreensão e da entreajuda entre todos. Ali, os salamaleques não eram o mais importante, mas cada um sabia exactamente qual era o seu lugar na hierarquia militar e o papel que desempenhava. A alegria e a camaradagem voltaram ao seio do pessoal pelo simples facto de estarmos fora daquele pesadelo chamado AGBIS. Aqui, na Mata, naquilo que nos competia, nós éramos donos do nosso destino.

Sabíamos que tínhamos uma boa companhia. Agora competía-nos comprovar isso mesmo.

Foto 4 > José Câmara (e a sua Secção preparando um abrigo) A. Ventura (com arma), Cabo Silva (com a pá), Serpa (pequenino), Cabo Leonardes, Serpa (grande) e Massa.

E pusemos mãos à obra!

Com a chegada e a ajuda dos capinadores, começámos a montar o aldeamento da Mata dos Madeiros. As canas de bambu e folhas de palmeira foram o material preferido dos engenheiros da obra. Os aposentos primavam pelas linhas rectilíneas, portas largas e o ar condicionado era providenciado pelas gretas entre folhas de palmeira. As camas de estilo contemporâneo, insufláveis, aos poucos se foram abatendo, acabando por ficarem espalmejadas no barro vermelho da área. Com o andar das semanas, aquele barro acabou por ficar moldado com o nosso corpo.

Foto 5 > José Câmara > Um pormenor do meu sumptuoso aposento. Como nota a limpeza das nossas miseráveis instalações!

Deixem-me ler-vos ao que então escrevi à minha madrihna de guerra.

Carta de 10 de Abril, 1971 (a última vez que escrevera tinha sido a 1 de Abril, ainda de Bissau):

Já me encontro no mato, num acampamento em que as barracas são em folha de palmeira. Dorme-se em colchões, tipo praia, deitados no chão. Connosco também temos cerca de 800 africanos. Entre eles, possivelmente, haverá alguns turras. A alimentação é muito à base de ração de combate.

De vez em quando, vamos para as valas esperar um ataque. Para a lenha vamos com um machado numa mão e a espingarda na outra. Temos que fazer escoltas, rondas nocturnas, e evacuações de doentes. Para as necessidades fisiológicas, só mesmo de espingarda. Dia sim, dia não, vou para o mato.

Enfim, esta é a história de um dos muitos militares que se encontram na Guiné. Não é melhor nem pior... tudo o mesmo. Defender algo que nem sei se valerá a pena.

Ainda não sei o que são tiros...


Foto 6 > Na minha Secção todos os trabalhos eram feitos em conjunto. Aqui estou cavando e ajudando a montar os pilares onde seriam colocados os bidões (em sistema de vazos comunicantes) de água para chuveiro.

No Sábado de Aleluía, 10 de Abril de 1971, pelas 11 horas da manhã, fazia a minha primeira saída de 24 horas. Essa saída ficar-me-ía na memória. Porque era a minha primeira grande saída, e porque foi cometido um erro que nos poderia ter ficado caro.

Coisas de periquitos!

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5862: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (13): Um buraco no inferno da Mata dos Madeiros

7 comentários:

Anónimo disse...

Desculpem lá qualquer coisinha (como por cá se diz), mas um poste de um conterrâneo açoriano não pode deixar de ser comentado. E, evidentemente, pela positiva. São sempre textos límpidos (de quem aprendeu a escrever português quando tal se aprendia). Aprecio a sua humildade e a noção de que se fazia o que era para fazer: nem mais nem menos.
Um abraço por este mar fora.
Carlos Cordeiro

Anónimo disse...

José Câmara, gostei de ver as nossas sumptuosas instalações.
Aqui penámos 2 ou 3 longos meses -- já não me lembro bem -- e sempre à espera do pior.
Recordo que, quando chegámos a Teixeira Pinto, toda a malta olhava para nós como se olha para o perú no dia de Acçáo de Graças aí nos States !
"Coitadinhos dos periquitos", diziam os nossos camaradas velhinhos !
Nunca esquecerei o calor, a sensação de sujidade (não tínhamos instalações sanitárias), os mosquitos, a presença daquelas centenas de homens manjacos a quem incumbiram de cortar a mata dos madeiros e a quem nós fazíamos segurança.
Também nunca esquecerei a fé dos nossos soldados. E aquela ideia de fazer a procissão das velas no dia 12 de Maio de 1972.
Procissão interrompida quando avisámos o nosso capitão do perigo que constituiria aquela marcha luminosa no meio do mato !
Enfim -- coisas de periquitos recém-chegados à guerra.
Um grande abraço Zé Câmara
Rui Esteves

Anónimo disse...

Amigo José da Câmara

Posteriormente calhou-nos "fabricar" uma "estânciacia de não-repouso" identica, uns kms lá mais para as bandas do Cacheu,se bem que com algumas diferenças para melhor,acho:

só tinhamos barreiras;a latrina era fora do rectangulo e a arma era tambem indispensável para nos ajudar a erguer(!!?) e não só;não (pelo menos os graduados)dormiamos com o colchão no chão (tinhamos colchão ?) e sim numa cama manjaca (?)(creio que balanta)em que o entrelaçado de folhagem e ramos era o estrado ,assente em quatro
paus-perna metidas em latas com agua que as separavam do chão,prevenindo a subida de alguns rastejantes de pequeno porte(!) ;tinhamos suplemento proteico de carnes às refeições constituido pelas larvas que nos caiam nos pratos, provenientes da folhagem dos tectos das "vivendas".
Para distracção,para alem da normal,tivemos uma ou duas vezes a "apariçâo" de uma louraça de cocha à mostra agachando-se a apanhar pequenosmalmequeres(?)amarelinhos!

Bons tempos!!

Um abraço
Luis Faria

Jorge Fontinha disse...

Esta tua narração, poderia de certa forma ter sido escrita por mim, ista 6 meses mais tarde, quando a estrada já se encontrava perto do Cacheu.Quando se justificou, o CAOP 1, resolveu fazer um destacamento semelhante em CAPÓ.Ao ler o teu Post.. e visionando as fotos que o ilustram teria de vir á memmória, a minha estadia, desde o 1º ao último dia, naqueles magníficos aposentos e a vala que os delimitava e para a qual me tive que atirar.Eram estas as nossas protecões!...No período em que estiveste na Mata dos Madeireiros, andava eu, o Gaspar e o Antonino Chaves,com o nosso 4º Grupo de Combate da CCAÇ-2791, na companhia dos Comandos(26º), Fuzileiros e Paras, nas matas da Caboiana e do Balangarez, fazendo outras coisas.
È sempre um prazer ler os teus escritos e na parte que diz respeito á zona do CAOP 1, nomeadamente Teixeira Pinto, por algumas vezes tropeçamos um no outro.Pelo menos para mim fica como recordação os bons momentos passados no "Bar Viriato" e na nossa vivenda!

Aquele abração.
Jorge Fontinha

Anónimo disse...

Desculpem lá mas a rapariga não era nehuma gamela ou assim.

Liam por favor COXA À MOSTRA, OK

Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Caros camaradas,
Os meus agradecimentos pelos comentários.
E quero reconhecer a surpresa que o Rui Esteves me proporcionou.
O Rui foi Furriel Enfermeiro na CCaç 3327; dedicou-se de alma e coração à sua missão.
Encontreio Rui através deste Blogue, e com ele tenho mantido alguma troca de emails. Dá para matar saudades de outros tempos.
Aproveito este espaço para corrigir, em nome da verdade histórica, o ano da procissão de velas que aconteceu em 1971 e não em 1972.
Um abraço de muita amizade para todos,
José Câmara

Anónimo disse...

Amigo José Câmara

Azares com a aparelhagem (PC) fizeram que estivesse privado destes contactos por uns dias, que se traduziram em quase 40 Postados que tenho andadado a recuperar.
Assim, só agora acabo de ler esta tua descrição da chegada à célebre instância de férias da "Mata dos Madeiros".
Como o Manuel Maia costuma dizer:
O AB não poude gozar destas deliciosas instalacões. Que pena, não é M. Maia?
Cada vez mais estou convencido que as 2 fotografias que tirei numa viagem de heli, quando vindo de Jolmete parei em Cacheu e rumei depois a T.Pinto se referem a esse acampamento ou então ao que indica o Luís Faria um popuco mais próximo da curva de Capó.

Abraço
Jorge Picado