segunda-feira, 8 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5952: Notas de leitura (76): Kikia Matcho, de Filinto de Barros (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Foi bom reler “Kikia Matcho” e sobretudo com um olhar lavado mas comprometido com uma excelente prosa e a dor sem fim dos combatentes desalentados que levam para a tumba a única razão forte que os levou a dar tudo na Luta.
É só para recordar que esta edição se vende a 1 euro, quanto mais cedo se procurar mais fácil será encontrar.

Um abraço do
Mário


Da Guiné-Bissau, denunciando as dores do país e a ausência de memória

Beja Santos

“Kikia Matcho” (por Filinto de Barros, Editorial Caminho, 1999, revista Visão, Março de 2010) é uma história soberba, imperdível para quem quer conhecer os problemas reais da jovem nação. Tudo começa com a morte de um valoroso combatente da Luta ‘N Dingui Có, o sobrinho, licenciado António Benaf, toma conhecimento do falecimento deste seu tio materno e parte para o cerimonial do choro, vai para o velório, contrafeito com o imprevisto, não conhece o significado da perda de tal tio, só que o morto é da família.

Benaf vai sentir-se muito mal nesse cerimonial barulhento, a tresandar de aguardente de cana, do choro das carpideiras, da resmunguice do velho Papai, outro combatente; estamos na fronteira entre Bandim e o Chão-de-Papel, outrora cheio de água, de hortas, hoje reduzido a lixeira.

Papai põe a memória a viajar até à Luta, lembra aquela juventude de Bissau que foi arrastada pelo engenheiro Cabral, vai contando tudo a Benaf, este mantém-se insensível a tão saudoso relato. “A África tinha-se esfumado do seu ser. Voltou porque era africano e intelectual, portanto podia ser ministro ou presidente, mas do continente não conseguia reter nem compreender a profundidade da sua mística”. O licenciado Benaf não encontra respostas para a sinceridade de mentes tão simplórias e para o heroísmo de tais combatentes, suspira pelo fim do pesadelo destas 24 horas de velório, tudo terminará com o enterro deste tio ‘N Dingui, há tanto tempo longe da sua vida. Telefonou a Joana, que vive em Portugal, ela partiu à procura de melhores condições, inconformada com os volvos da nova classe dominante e da sua violência policial guineense, logo em 1977. É vida é muito dura para Joana, a viver nos arrabaldes de Lisboa, partilhando desigualdades com burmedjos, pretos, guineenses e cabo-verdianos. O paradoxal é que a ideia de pátria lhe parece mais clara neste caldeirão étnico, tudo olhado à distância, no meio dos tugas.

“Kikia Matcho”, ou o desalento do combatente, é um texto precioso para conhecer o início da Luta e o que unia essa juventude que partiu para a revolução. António Benaf é o retrato do presente, a geração desmemoriada, inconformada com toda aquela miséria à volta, vingando-se no sexo fácil, sempre à espreita de uma oportunidade para chegar ao poder a qualquer preço. Papai é o grande actor desta peça dramática: está alcoólico e não tem ilusões sobre a sua degradação, move-se em ambientes de taberna, ali aparecem heróis esquecidos, ex-comandos africanos, gente sem nome. Mana Tchambú, a dona da taberna, tem uma especial ternura pelo Papai. É com ela que Papai desabafa sobre o estranho caso de um kikia matcho (mocho) que lhe apareceu de madrugada, ave de mau agoiro, não entende ao que veio este bicho com gritos vindos do inferno. Filinto de Barros passa em revista uma galeria de figurantes extraordinária, todos eles são náufragos, gente que se agarra a resquícios do passado e que ainda não tem direito a perceber a identidade do país, o pretexto para esta visão dantesca é o herói morto, alguém que não transigiu com os princípios e que morreu ignorado. Em Lisboa, ou perto dela, Joana vive aflita com a partida do tio ‘N Dingui. À distância, Joana é a metáfora de um povo que partiu para o exílio mas que mantém um elevado património de usos e costumes.

Mana Tchambú procura ajudar Papai, é preciso desvendar o mistério desse mocho, por isso mesmo dirigem-se a casa de uma vidente, Na Barisni. Feito o ritual, descobre-se que o morto está muito zangado, a vidente não consegue comunicar com ela nem à custa da leitura das vísceras de um frango morto. É preciso ir consultar outros djambancus, gente mais capaz de resolver mistérios tão rebeldes. Papai parte para avisar os outros combatentes do falecimento de ‘N Dingui. São diálogos fabulosos de gente pobre e abandonada que vão denunciando a corrupção de gente que vem pedir pensão e que nunca esteve ligado à luta. Filinto de Barros ajuda a compreender o desalento destes verdadeiros combatentes descrevendo também o panorama de uma cidade suja e abandonada, tudo parado, tudo em derrocada, exactamente como aquele jardim que foi muito belo, ali em frente do cais do Pidjiquiti. Papai, verdadeiro combatente, recusa aceitar os factos como se com tal recusa guardasse a esperança em nome dos valores pelos quais andou no mato.

E estamos chegados ao cerimonial do enterro, novas contradições vêm ao de cima, aparece um porco sobre o qual o caixão terá de passar antes de ser colocado no carro (coisas dos Papéis) e já chamaram o padre para benzer o caixão, pois Papai antes da Luta ia à missa, é preciso misturar padre e porco. Novos tempos, velhos costumes: “Para a família do morto era necessário esta mascarada para dizer ao vizinhos que, apesar de tudo, a tribo estava a ser secundarizada, que tinham um lugar junto da nova sociedade a ser criada pelos brancos com os seus novos deuses. De um lado os novos valores saídos da Luta propunham o regresso às fontes, com os nomes tribais a serem postos aos recém-nascidos. A pequena burguesia citadina fazia gala disso, como sinal do suicídio de classe e sobretudo da expulsão, ou melhor, do congelamento dos valores ocidentais. Era preciso seguir mais esta iniciativa dos líderes sociais”.

De novo se consulta os videntes, a coisa está mesmo muito feia, ‘N Dingui continua muito zangado. Papai julga compreender o que se passou, o combatente do Além parece exigir que se retorne aos princípios de Amílcar Cabral, coisa que parece impossível, o mundo está virado do avesso. Conformado com o lamaçal em que vive, Papai volta para a taberna, mas ainda guarda a esperança de que é preciso, em nome de Cabral, salvar o país mais uma vez. Importa não esquecer que nenhum dos combatentes se dignou a assistir ao funeral desse ‘N Dingui Có, valoroso comandante de um bigrupo de Canjabari. Com diz Filinto de Barros, Kikia é um pequeno exercício de ficção. “Nem história, nem sociologia, nem etnologia, nem política, tão-somente uma abordagem que se pretende dinâmica e existencial do processo de síntese sociocultural de um Povo”.

Temos aqui uma boa oportunidade para conhecer o “Outro” na sua dor e nas suas esperanças. E esta muito boa literatura é uma agradável surpresa dessa Guiné que se orgulha de falar português e de o misturar com o seu peculiar e exclusivo crioulo.
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Nota de CV:

Vd. poste de 6 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5940: Notas de leitura (74): Além do Bojador, romance de estreia de Manuel Fialho (II) (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 6 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5943: Notas de leitura (75): Missão na Guiné e Os Lusíadas (António Tavares)

5 comentários:

Jorge Narciso disse...

Caro Mário

Tens toda a razão

Um ápice de deliciosa leitura.
Que autenticidade, que beleza, que revelação.

Ter-se-á o autor ficado por esta história ?

Abraço

Jorge Narciso

Hélder Valério disse...

Caros amigos

Essa noção de 'retornar a Cabral' não é tão estranha assim.
No ambiente do livro estamos datadamente afastados dos tempos de hoje, quer dizer, do último ano, e talvez os acontecimentos do ano passado possam ter servido para relançar essa idéia do 'retorno a Cabral'.
Já a vi relançada no projecto "andorinha em Canchungo" e parece-me que com bons resultados no seio da juventude, pelo menos através do que nesse blogue se relata.
Um abraço
Hélder S.

Torcato Mendonca disse...

Um abraço Mário e de acordo contigo.
Não consigo entender, ou não quero?, como um homem escreve assim e foi ministro de x,y z...como chegou a Guiné a um Estado e estado assim?
Torcato

Anónimo disse...

Isto sim é literatura africana por africanos, em português.

Talvez apareçam africanos da africa profunda como este autor, que nos mostrem por dentro aqueles com quem convivemos 500 anos.

Antº Rosinha

António Tavares disse...

Caro Dr. Beja Santos,

Segui o seu conselho e comprei o livro que já o recomendei a alguns tertulianos da Tabanca Grande.
Ontem, dia Internacional da Mulher, reli-o por que lembrei-me das Marianas que conhecemos na Guiné.
Mais não digo para os amigos não perderem o interesse no livro, que nos faz lembrar muitas passagens vividas em 1970-72 naquela sofrida terra.
Cumprimentos do,

António Tavares