quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25840: Timor: passado e presente (17): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VIII: O campo de concentração de Liquiçá e Maubara


António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.


Capa do livro "Quando Timor foi Notícia", de Cacilda dos Santos Liberato (Braga, Editora Pax, 1972, 208 pp.). Encontrei um exemplar na Biblioteca Municipal da Lourinhã. Já o li de um fôlego. Tem um prefácio propagandístico, datado,  do escritor António de Seves Alves Martins: " Estar, agora, Portugal  vitoriosamente em armas, como vitoriosamente esteve em paz na segunda grande guerra, dá plena atualidade a este livro bem revelador da força moral de um povo que não abdica dos seus direitos porque também não se demite dos seus deveres" (pág. 12)

Cacilda foi uma "mãe coragem: viúva de Júlio Gouveia Leite, secretário da administração de Aileu (vítima do massacre de Aileu, em 1/10/1942) (*), irá casar depois  com o tenente António Oliveira Liberato, também ele viúvo, no campo de concentração de Liquiçá, em 1943. Viu a morte á sua frente por diversas vezes. Publicou as suas memórias trinta anos depois 



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.  O autor regressou a Portugal em 8 de dezembro no velho navio "Angola", com o governador e  a sua família e mais cerca de 170 refugiados.  Chegada a Lisboa em 24 de fevereiro de 1946!



Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.



Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.   Na II Grande Guerra, conheceu por duas vezes a invasão e ocupação por tropas estrangeiras (os Aliados, em 17 de fevereiro de 1941; e depois os japoneses, em 20 de fevereiro de 1942). Na altura teria pouco mais de 400 mil habitantes.  E tinha uma força militar simbólica.  Lugar de desterro, tinha mais deportados do que colonos e funcionários públicos.  O território era administrado por Portugal desde o início do Séc. XVIII.  Os timorenses tinham uma forte identificação com Portugal, o que não acontecia com os outros timorenses do outro lado da ilha, em relação à Holanda.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 


1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


Timor  (uma descolonização difícil, hoje um país independente,  lusófono, desde 2002, como República Democrática de Timor Leste)  foi o único território  português ultramarino (na altura, designado como "colónia", até 1951)  
que, à revelia da declaração de neutralidade de Portugal,  
foi invadido e esteve ocupado por forças estrangeiras, durante a II Guerra Mundial (entre dezembro de 1941 e setembro de 1945),  tropas aliadas (anglo-australianas  e holandesas) e  japonesas, respetivamente. 

Em fevereiro de 1942, ia uma força militar portuguesa, enviada de Moçambique, a caminho de Timor, quando se deu a invasão japonesa, em 19 desse mês, tendo sido desviada para Macau. A soberania do território seria retomada três anos e meio depois, em setembro de 1945.
 (A capitulação japonesa é a 22,  ainda sem a presença militar portuguesa: o nosso contingente só lá chega uma semana depois.)

Recorde-se que Portugal, mesmo não tendo participado na II Guerra Mundial, fez um elevado esforço militar, mobilizando bastantes efetivos para a defesa do continente,  das ilhas atlânticas e do império... Os efetivos em 1942 são já da ordem dos 116 mil homens. Chegam aos 130 mil a partir de 1943.  Há 3 divisões, totalmente equipadas, para defesa do continente.  
Para os Açores foram mobilizados  c. de 26,5 mil homens,
 para a Madeira, 3,4 mil, para Cabo Verde 6,7 mil 
e para Angola e Moçambique 20 mil... 
Não havia plano de defesa para Timor (**).

Mesmo publicado trinta anos depois dos acontecimentos, em 1972 (portanto, numa época em que ainda havia a censura a obras literárias, e os autores faziam autocensura),  o livro em apreço, "Vida e Morte em Timor" "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive,  continua a ser um documento importante para o estudo deste dramático  período da história do Timor português,  uma terra de que, afinal, pouco ou nada sabíamos. No entanto, o autor  usa muito  fonte  os livros do Cal Brandão e do António Liberato. 

Devido à censura (que esteve vigor entre nós, desde 1926 e 1974, e que era mais "apertado" em tempo de guerra,  em 1939-1945 e depois em 1961-1974), o "caso de Timor", com  todo o seu horror,  só foi conhecido após a II Guerra Mundial.  E que depois disso foi novamente silenciado. Enfim, só mais recentemente, 80 anos depois (!), a televisão e o cinema se interessaram pelo que aconteceu naquele território. 
 
Para ajudar a leitura que estamos a fazer, voltamos a  reproduzir neste poste o mapa de Timor em 1940 (da autoria de José dos Santos Carvalho). Em termos administrativos, a atual República Democrática de Timor-Leste encontra-se dividido em 13 distritos (contrariamente ao que se passou na Guiné-Bissau ou em Angola, por exemplo, os topónimos continuam a ser os mesmos): 

(i) Bobonaro, Liquiçá, Díli, Baucau, Manatuto e Lautém na costa norte;  | (ii) Cova-Lima, Ainaro, Manufahi e Viqueque, na costa sul;  ! (iii) Ermera e Aileu, situados no interior montanhoso;  | (iv) e Oecussi-Ambeno, enclave no território indonésio.

 

Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte VIII:  O campo de concentração de Liquiçá e Maubara


(i) Depois das chacinas de Aileu e Ainaro, em outubro de 1942, e contactado por telegrama, em linguagem aberta, o governo central, em Lisboa, a escassa população portuguesa, de origem europeia, está numa situação "dificílima", para não dizer desesperada. 

De Lisboa não virá qualquer socorro... Os portugueses estão isolad0s (e literalmente abandonados). Mas era preciso que ficassem, estoicamente, quais mártires cristãos,  para assegurar, no fim da guerra, a soberania sobre o território... Homens, válidos,  civis e militares, incluindo os deportados, mais as  mulheres, as crianças, os doentes  e os velhos... Não seriam mais do que 3 centenas...

Uma parte da população portuguesa europeia acaba 
por se conformar  com a solução imposta pelos japoneses, 
a da concentração  dos sobreviventes em Liquiçá e Maubara,
 no distrito de Díli,  a oeste da capital. Ironicamente, 
"sob a proteção das tropas nipónicas"... 

Estamos em novembro de 1942.
Não era "campo" mas "zona", sem arame farpado... ! 
"Zona de proteção", segundo a Cacilda Liberato. 
Uma designação eufemística. 
A estratégica das sinistras tropas do Japão Imperial, 
xintoísta, militarista, xenófobo, racista  e ultranacionalista,
 era claramente a de separar os portugueses dos timorenses, e deixar os primeiros morrer de fome, doenças, vexames, arbitrariedades (e chacinas, 
em consequência dos "raides" das "colunas negras")... 
Afinal, os portugueses , tal como os holandeses, os ingleses, os franceses, etc, eram o rosto do odiado colonialismo europeu.
 
 Num dos seus livros de memórias, o capitão Liberato (**) 
sintetisou este acordo, nestes termos: «A zona de concentração (...) 
 abrangeria as áreas dos postos administrativos de Liquiçá e Maubara.

"Ali se concentrariam todos os portugueses. Os destacamentos militares,
 o meu e o do tenente Ramalho dos Santos, estabelecer-se-iam respetivamente em Boebau, área de Liquiçá, e nas montanhas de Maubara, com a missão de defender a integridade da zona, contra os ataques dos indígenas.

"Cada português poderia conservar em seu poder uma arma de fogo 
para defesa pessoal. Os indivíduos cujas funções obrigassem 
a permanecer em Díli, residiriam no hospital Dr. Carvalho, 
em Lahane». (...)


(...) Entretanto, haviam sido montados os serviços indispensáveis a vida da pequena comunidade agora reunida na região Liquiçá-Maubara (1). 

Como administrador da zona, continuou o engenheiro Canto, com todo o seu entusiasmo e desejo de bem servir. Agindo sob a sua direcção, ficaram à testa dos postos de Liquiçá e Maubara, dois militares, sargentos António Joaquim Vicente e José Miranda Relvas (...)

Na zona de concentração funcionavam, também, os Serviços de Fazenda, dirigidos pelo Dr. Tarroso Gomes, e a assistência médica era prestada pelo Dr. Francisco Rodrigues, coadjuvado por vários enfermeiros e enfermeiros auxiliares, em serviço nas enfermarias de Liquiçá e Maubara.

 (...) «E era tudo. Os vagos Serviços de Abastecimentos, que também se organizaram, mostraram-se pouco eficientes. A sua acção só se fez sentir, enquanto o problema da alimentação não apresentou dificuldades» (1) .

«Quanto à defesa da zona contra as possíveis arremetidas do gentio das regiões limítrofes, ficou unicamente a cargo do destacamento português acampado em Boebau e na Granja Eduardo Marques. As forças do tenente Ramalho dos Santos,desarmadas em Baucau, não puderam ocupar as posições que lhe estavam destinadas, para assegurarem, a defesa da região de Maubara. Dissolvidas, apenas dois ou três elementos europeus e o seu comandante se juntaram aos concentrados (1).

Na zona, logo introduziram os japoneses a sua terrível «Kempy» (1), chefiada por um simples cabo, o famigerado Kato, a qual se instalou numa casa próxima da enfermaria de Liquiçá." (...)


 (ii) Face ao ocupante nipónico, os portugueses estavam divididos em dois grupos: os que acatavam as ordens do governador Ferreira Carvalho (o mesmo é dizer, do governo central);   e os que resistiam contra os japoneses, juntando-se à guerrilha australiana e timorense, como era o caso do advogado portuense, deportado, o dr. Cal Brandão, e outros deportados, bem como  os administradores Manuel de Jesus Pires  e A. Sousa Santos, o luso-timorense Júlio Madeira e diversos "liurais" (régulos), aliados dos portugueses como Dom Aleixo Corte Real.


Manuel de Jesus Pires, antigo administrador de Baucau ("Vila Salazar") consegue, com a ajuda dos australianos, e à revelia 
do governador Ferreira Carvalho,  salvar cerca de 
uma centena de mulheres e crianças, 
que serão levadas para a Austrália, 
em 18 de dezembro de 1942, 
numa navio que aportou  em Aliambata,
na parte sul do território. 


(...) Conta-nos o dr. Cal Brandão o que se passou por estes tempos no reino do Suro de que era liurai D. Aleixo Corte Real (2). A sua gente havia-se afastado das povoações e embrenhara-se no mato, ou estabelecera-se nas montanhas, para evitar relações com os invasores. Depois do ataque a Same, que tivera lugar em 10 de dezembro, os australianos deram ordens às suas guerrilhas para abandonar toda a região de oeste, concentrando-se na área de Fátu-Berliu, donde foram evacuados para a Austrália, embarcando na Aliambata.

A secção instalada junto de D. Aleixo fora, também, levando consigo os europeus que nessal altura ainda estavam acoitados naquelas paragens, com excepção do sargento José Estêvão Alexandrino, chefe do posto de Atsabe, com o seu pequeno grupo constituído pelo deportado sr. Felner Duarte e os senhores José Cachaço e Romualdo Aniceto, que se negaram a acompanhá-los. 

O sargento Alexandrino, com o seu grupo, desde os primeiros dias da revolta da Fronteira, reunira os arraiais dos timorenses fiéis, à frente dos quais estava o sempre dedicado chefe Cipriano, de Suro-Craic, e de montanha em montanha, de povoação em povoação, foi levar o castigo aos rebeldes. Quando lhe foi dada ordem para se apresentar ao tenente Liberato, a fim de seguir para a zona de concentração, negou-se a cumpri-la. 

Por muito tempo se conservou na área do seu posto, nessa guerra de movimento, até que os japoneses, julgando importuna a sua presença, deram uma ajuda às colunas negras para o desalojar. Já a essa data se lhe viera juntar o chefe Tálu-Bere, de Loi-Cíbu, Maliana, que, reunindo a sua gente de guerra se dera a castigar os inimigos rebeldes seus vizinhos, depois do que, num gesto de audácia e bravura, abriu caminho através das hostes adversárias e veio congregar os seus esforços aos da autoridade portuguesa que lhe ficava mais próxima. 

Recuando perante a forte pressão a que não podiam resistir, vieram acolher-se todos à protetora amizade do Suro. Nos primeiros tempos alsl metralhadoras e granadas australianas eram elementos convincentes para manter as colunas negras a razoável distância. Mas, mesmo depois da partida destes, o ardor dos portugueses não esmoreceu (1). (...)


(iii) E chegamos ao ano 1943, cujos acontecimentos o autor resume em menos de uma dúzia de páginas (pp. 68-79); além da violência dos japoneses e das "colunas negras",   portugueses e timorenses estavam sujeitos ao bombardeamentos dos Aliados.

Há, entretanto, mais um suicídio, heróico, de um médico, o dr. Correia Teles. No final da guerra, dos 4 médicos existentes na colónia, só restará o dr. José dos Samt0s Carvalho, que era o mais novo (em idade e antiguidade, segundo sabemos)


(...) Em princípios de janeiro , alguns indígenas, dirigidos por um oficial e dois ou três soldados japoneses, assaltaram, pela calada da noite, a casa onde residiam, em Liquiçá, o administrador Virgílio Duarte e o chefe de posto Moreira Rato, vasculharam, minuciosamente, a residência, à procura de australiano escondidos, e levaram, sob prisão, os dois funcionários que, prudentemente, se haviam refugiado no sótão da habitação, ao sentirem aproximar-se os díscolos. Depois de uma noite de interrogatórios, libertaram-nos (1).

 No dia 3, à tarde, fomos surpreendidos no hospital de Lahane pela inesperada aparição do chefe de posto, encarregado da administração da circunscrição do Oecússi, sr. Fernando Tinoco. Contou-nos que, tendo-lhe os japoneses falado num pacordo com os portugueses que referiam à sua maneira, ele os convencera a deslocar-se a Díli, num beiro timorense (3),para pessoalmente receber instruções do Governador. No território do Oecússi, tudo decorria normalmente, estando todos bem.

(...) Conta-nos o capitão Liberato num dos seus livros (***) que em Liquiçá logo se viu a necessidade imperiosa de se tomarem rápidas, e enérgicas medidas para pôr cobro aos desmandos dos meliantes, apesar de serem, certamente, considerados pelos nipónicos como tropa sua. 

Resolveu-se fazer uma batida a Quene-Açu, improvisando-se, rapidamente, uma coluna de voluntários chefiada pelo engenheiro Canto e pelo tenente Liberato que, por acaso, então se encontrava em Liquiçá e de que faziam, também parte, o sr. Jaime de Carvalho, Administrador da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho, os deportados, senhores Jaurés Viegas, Serafim Martins, Viegas Carrascalão, Joaquim da Silva, João Pinto e José Pinto, o aspirante administrativo José Duarte Santa e seus irmãos Vítor Santa e Mário Santa.

A coluna de voluntários atacou de surpresa, sendo três mortos e meia dúzia de prisioneiros no campo adverso, o resultado da breve escaramuça, podendo, assim, o sr. Jaime de Carvalho entrar na palhota onde encontrou, sãos e salvos, o sr. JúlioLemos e toda a sua família, a quem os captores haviam dito que seriam fuzilados dentro de um quarto de hora ! (1)

 «Ê interessante registar que, coincidindo com o tiroteio em Quene-Áçu, se ouviu o matraquear das metralhadoras nipónicas em Liquiçá. Levou-se isso à conta de sinal previamente combinado entre os dominadores e a «coluna negra». Assim era, efectivamente.» (1).

 Por este tempo, a guerrilha do sr. Júlio Madeira incomodava, fortemente, os japoneses, movimentando-se por terras da Hátu-Lia e Ermera, o que lhes deu o pretexto de exigirem a saída, de Boebau, do destacamento do tenente Liberato, por pretensa assistência àquele guerrilheiro (1). Assim o destacamento teve de trânsferir-se pára Guguleur, na região de Maubara, onde se instalou, no dia 9 de eevereiro (1 .

 (...) Na tarde do dia 26 chegou ao hospital uma camioneta japonesa donde se apearam dois europeus, o cabo reformado Francisco Migule e um seu filho. Por eles então soubemos do embarque para a Austrália da maioria dos portugueses foragidos de Baucau e do abandono de alguns, pelo mato, sem alimentos nem assistência, perseguidos pelas colunas negras e minados pela fome e doença. Os dois, não tendo, também, conseguido embarcar para a Austrália, haviam-se entregado aos japoneses, em Viqueque, que os transportaram para Díli. 

Mais nos informaram que o dr. Correia Teles se havia suicidado e que o enfermeiro Senanes fora assassinado à catanada por indígenas das colunas negras que o apanharam isolado, tendo eles ouvido o brado de terror que precedeu a sua morte — Meu Deus!.

 Conta-nos o Dr. Cal Brandão, no seu livro, pormenores sobre a morte do Dr. Correia Teles, que, prestando serviços clínicos aos seus companheiros de odisseia, adoecera gravemente (2). 

As condições de saúde do médico, que bem conhecia o seu estado, agravaram-se, sentindo que não podia caminhar ou montar a cavalo e que seria penoso e difícil o transporte em padiola, Num gesto de desânimo afastou-se dos companheiros,deitou-se no leito duma ribeira, e, com os dedos dos pés, desfechou a espingarda caçadeira que possuía, com os canos apoiadoscontra o maxilar (2).  Passara-se esta tragédia no dia 6 de fevereiro.

(...) Em princípios de maio, os japoneses forçaram os agricultores europeus de Maubara a abandonar os suas plantações e a concentrarem-se na povoação, tendo o mesmo acontecido em Liquiçá, para os empregados da granja Eduardo Marques e da plantação da Pahata, da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho.

Não tardaram depois a impor aos civis residentes na zona de concentração, a entrega de todo o armamento que, conforme o acordo negociado, quando da concentração, cada português podia conservar em seu poder, para defesa pessoal (1) .

 Na tarde do dia 11 de maio apareceram no hospital de Lahane, transportados numa camioneta japonesa, os padres António Manuel Serra e Júlio Augusto Ferreira, o secretário de circunscrição José Luís Howell de Mendonça, o aspirante administrativo Eugénio Vaz de Oliveira e o deportado sr. Américo de Sousa.

 Satisfazendo a nossa ansiosa espectativa contaram-nos a sua odisseia, desde a saída de Baucau, em 24 de novembro, administrativo Eugénio Vaz de Oliveira,

 Escondidos na região de Viqueque, souberam que um navio australiano viria à praia da Aliambata, no dia 18 de dezembro, para levar para a Austrália os portugueses foragidos de Baucau, de Kelicai, de Laga e de todos os postos que se despovoaram à aproximação das colunas japonesas que eles sabiam não respeitar ninguém (2).

 Assim, apresentaram-se na praia da Aliambata, no dia combinado. Porém, com grande estupefacção da sua parte, foram informados, então, pelo sargento Martins (o qual acompanhava o oficial australiano que superintendia no embarque) que não faziam parte da lista das pessoas autorizadas a embarcar e ele estva encarregado de os impedir de o tentarem, mesmo que tivesse de fazer uso da sua metralhadora.

Pelo Dr. Cal Brandão (2) podemos comprender o explicar o sucedido. O tenente Pires, que era o chefe natural da gente foragida e contactava com os militares australianos, intentou salvá-la, especialmente mulheres e crianças, das colunas negras lançadas em sua perseguição. Para isso, avistou-se com o chefe do grupo da Inteligência Militar Australiana, capitão Brothers, sugerindo-lhe uma evacuação, como as que já tinham sido feitas pelos australianos.

«O oficial português deseja ficar com os funcionários seus subordinados, para manter, enquanto possível, a soberania e a autoridade portuguesa naquela área. O inglês acede, mas pretende que mais alguns portugueses voluntariem para colaborar na resistência. As famí-lias desses voluntários terão preferência no embarque. Dentro deste critério, o capitão, organiza uma lista de 300 pessoas, na qual inclui todas as senhoras e crianças europeias, e fá-las embarcar» (2).

O secretário Mendonça, embarcados para a Austrália sua esposa e filho, juntou-se aos dois missionários e ao aspirante Eugénio de Oliveira, passando a vaguear pelo mato, escondendo-se das colunas negras e alimentando-se de espigas de milho e de raízes de mandioca cruas, que iam apanhando a furto, pois as povoações estavam cheias de japoneses.

Conservaram-se assim, sofrendo privações de toda a ordem, na área dos postos de Viqueque e de Lacluta, até que passaram para a região de Luca onde tiveram a ventura de ser acompanhados e fielmente amparados por dois filhos do chefe do suco de Umuai de Baixo, do posto de Viqueque, Miguel da Costa Soares, os quais iam frequentemente à casa de seu pai para fornecerem alimentação ao grupo.

Conservaram-se nesta situação cerca de dois meses, tendo sido então que tiveram conhecimento do suicídio do dr. Correia Teles que fazia parte doutro grupo de portugueses que perto ali andava.

Cansados e sem esperança, vendo que estavam a comprometer seriamente os timorenses que tão desveladamente os ajudavam, resolveram tentar tudo por tudo, apresentando-se aos japoneses, em Viqueque,

Submetidos pela polícia a um violento interrogatório, durante seis horas, vendaram-lhes, depois, os olhos e meteram-nos, de pé, numa camioneta, julgando, então, irem ser fusilados.

Felizmente, porém, a camioneta foi posta em andamento e, quando horas depois lhes tiraram as vendas, estavam já nas proximidades de Baucau, continuando a viagem para Díli e seguindo directamente para o hospital de Lahane.

O padre Serra deu-me, por fim, a notícia que o missionário, padre Francisco Madeira, havia morrido miseravelmente na região de Lacluta, no mês de Abril, minado por infecção ocasionada por sarna generalizada, para a qual não tivera qualquer possibilidade de tratamento.

(iv) Relato dos bombardeamentos dos aliados 
e o tratamento dos feridos de guerra


(...) A noite em que os meus amigos de Baucau chegaram ao hospital, haveria de ficar marcada por um acontecimento da maior importância para os que aí residiam.

Por estes tempos, os bombardeamentos aliados a Díli recrudesciam de intensidade e frequência, havendo-os duas e até mais vezes ao dia.  Eram terríveis espectáculos em que os aviões voavam sobre nós e iam afrontar uma formidável barragem de artilharia antiaérea que defendia a cidade, com troar ensurdecedor.

Porém, como tínhamos sempre hasteada a bandeira nacional e as suas cores pintadas no telhado de zinco do pavilhão principal, vivíamos com algum sossego, sob a impressão de não sermos, provavelmente, atingidos,

Ora, cerca das dez horas da noite desse dia 11 de maio ouvimos, mais uma vez, os ruídos de motores de aviões que rapidamente se aproximaram. Enquanto corríamos para o abrigo que havíamos cavado na montanha, junto da casa mortuária, fomos surpreendidos
por uma luz intensíssima que tudo claramente iluminava, a qual provinha duma fonte que descia lentamente, certamente num paraquedas.

Mal tendo acabado de entrar no abrigo, sentimos, nitidamente o sibilar de bombas lançadas dos aviões e, a seguir, o tremendo estrondo de explosões muito próximas.

Afastados os aviões, abandonámos o abrigo e mal pudemos, então, acreditar que uma bomba havia caído mesmo ao lado da casa mortuária, a poucos metros de nós, pois aí encontrámos
grandes pedaços da sua parte externa, caprichosamente retorcidos. Assim, cessava toda a nossa confiança em que os aliados respeitariam o hospital português quando bombardeassem os objetivos japoneses.

Mas, além disto, verificou-se, momentos depois, haver tremenda tragédia nas palhotas que os timorenses, auxiliares da Missão Geográfica habitavam no fundo da ravina, junto do hospital. Grande clamor se ouviu então, e, logo chegou um deles, com a notícia de que o auxiliar José havia morrido, com a cabeça esfacelada, e que mais quatro estavam feridos.

Corremos para o local, com macas, e transportámo-los para uma sala que tinha sido enfermaria e ainda conservava as camas respectivas, as quais, oportunamente não haviam podido ser levadas para Quelicai, na pressa da transferência dos Serviços.

Nunca na minha vida de médico eu tivera ocasião de observar feridos de guerra. Os pequenos estilhaços das bombas, por serem caprichosamente retorcidos, seguem um percurso muito sinuoso, dentro das partes moles, sendo as feridas muito irregulares e anfractuosas nos seus bordos e em profundidade.

Dos quatro feridos, um apresentava fractura do fémur e necessitava, com toda a urgência, de uma operação de grande cirurgia que não se podia sonhar ser feita numa ambulância em que nem sequer possuíamos instalações de esterilização de material, de pensos e de roupas, dos quais, aliás, não dispúnhamos, senão para cuidados simples de enfermagem. Porém, mesmo para os outros, eu não tinha possibilidade de lhes extrair os estilhaços profundamente alojados nos tecidos.

Mais uma vez, o engenheiro Canto se dirigiu ao consulado do Japão, desta vez para pedir auxílio que não se fez esperar. Cerca das 10 horas do dia 12, médicos militares japoneses operavam os feridos no seu hospital que tinham instalado no nosso antigo pavilhão de mulheres, tendo eu, a seu convite, assistido à operação.

Logo, voltaram os operados ao hospital português onde eu e os enfermeiros de serviço lhes fizemos os tratamentos subsequentes, um deles durante uma incursão aérea aliada que, tal como felizmente sempre depois sucedeu, não bombardeou o hospital.

Quando se tornou possível, os feridos foram levados para a enfermaria de Liquiçá, onde parecia não haver perigo de bombardeamentos, ficando sob os cuidados do Dr. Francisco
Rodrigues
. Todos foram inteiramente recuperados.

(...)

 ______________

Notas do autor;

(1) Vide Capitão António de Oliveira Liberato, Os japoneses Estiveram em Timor, Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

 (2) Vide Carlos Cal Brandão, "Funo". Porto, 1946.

(3) «Beiro» é o nome, em Timor, das pirogas indígenas. 

 
(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, reordenação das notas de rodapé, negritos, itálicos: LG)

(**) Vd. Teixeira,  Nuno Severiano: "Portugal e a Segunda Guerra Mundial". In "Nova História Militar de Portugal (dir. Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira", vol. 4,  s/l,  Círculo de Leitores,  2004, pp. 46-55.

(***) António  Oliveira Liberato escreveu dois livros de memórias sobre o seu tempo de Timor: (i) O Caso de Timor, Portugália, Lisboa, s/d (c. 1947);  (ii) Os japoneses estiveram em Timor, Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Pela ausência de comentários concluo que a tragédia de Timor na II Guerra Mundial (longínqua no tempo e no espaço) não desperta o interesse dos nossos leitores... Mas fica aqui, para "memória futura"... Timor continua nos nossos corações,k tal como Cabo Verde, a Guiné, etc.... Nessa altura o meu pai era expedicionário em Cabo Verde (julho de 1941 - setembro de 1943)...Iria fazer dentro de dias, 104 anos, se fosse vivo.

Anónimo disse...

Tenho acompanhado atentamente os posts sobre Timor e a luta
heróica dos timorenses e dos portugueses desterrados, perante a inércia do poder político instalado em Lisboa.
Tenho tentado imaginar como foi possível sobreviver perante tantaadversidade.
Eduardo Estrela

Hélder Valério disse...

Pois é.
Não têm surgido comentários, apreciações e/ou até "correções ou advertências" ao que por aqui tem passado sobre esses atribulados tempos passados em terras ainda muito mais longínquas do que aquelas em que estivemos.
Mas acho isso natural. Foram acontecimentos passados em que muitos de nós ainda não tinham nascido, portanto é mais difícil "vestir a pele" desses homens e vivenciar os acontecimentos, mas isso não significa que não se tenha lido e até, pelo menos mentalmente, entrado no tema.
Por acaso, conheci o autor, Monteiro Cardoso, do que serviu de guião para a série da TV, que despertou alguma curiosidade sobre queles tempos e aquelas gentes.
Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Referes-te ao António Monteiro Cardoso, autor de "Timor na 2.ª Guerra Mundial: o Diário do Tenente Pires," editado em 2007 pelo CEHCP-ISCTE – Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa, ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa)...

Ainda não cheguei lá...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Do Monteiro Cardoso tenho apenas um livro, que comprei há tempos, o último dele, de 2015 (morreu no ano seguinte), "Boas fadas que te fadem"... Estás na pilha de livros para ir lendo... É um romance histórico...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

De resto, de Timor o que sabíamos nós ? Fui revisitar o Llivro de leitura para a 4ª classe - Ensimo primário: textos com aprovação oficial" (Porto, Editora Educação Nacional, s/d) ...

Sobre Timor os putos do meu tempo ficavam a saber o seguinte (pág. 117):

"É a mais distante província portuguesa. Apenas metade da ilha, aproximadamente, pertence a Portuagl; no território restante, pertencente à Indonésia, existe ainda o enclave português de Ocussi-Ambeno.

"A capital é a cidade de Díli,

"A ilha é muito montanhosa: o monte mais alto, o Monte Ramelau, atinge très mil metros de altitide, a mais elevada de todo o Portugal.

"No interior, devido à altitude e ausência de pântanos, a temperatura diminiu e permite a colonização do brancos.

"A terra é fértil e granjeia-se sem esforço; é lavraapor búfalos mansos,

"As florestas timorenses tèm madeiras de grande valor. A agricultura é a principal ocupação do indígena. Cultiva-se o milho, o cafezeiro, o coqueiro, o chá e o algodão e procede-se à extração da borracha.

"No subsolo há petróleo, ouro e cobre".

O autor do texto é D. E. S/d. O artigo é encimado pro uma foto, a preto e branco, do palácio do governador.