segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25834: Notas de leitura (1717): Crioulo guineense, qual a tua origem? (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Tanto quanto me lembro, a primeira vez que aqui falei sobre o crioulo foi a propósito do livro de Benjamim Pinto Bull "O Crioulo da Guiné-Bissau: Filosofia e Sabedoria". Muitos outros autores se têm debruçado sobre o crioulo. No termo do texto que hoje vos envio vem um interessante artigo de Luigi Scantamburlo sobre a grafia do crioulo e anexo os trabalhos de Jean-Louis Rougé, que trabalhou na Guiné-Bissau e nos países periféricos. É inesgotável a discussão sobre a origem do crioulo, o mérito deste livrinho é procurar a multiplicidade de aportes que chegam aos diferentes vocábulos, são meramente ilustrativos, já há dicionários de crioulo-português, prossegue a discussão se o crioulo devia ser classificado como língua oficial ao lado do português, compreende-se o amor próprio de quem o fala mas há que atender que é através do português que a Guiné-Bissau chega ao mundo global.

Um abraço do
Mário



Crioulo guineense, qual a tua origem?

Mário Beja Santos

Diversos autores da área da filologia, marcadamente da etnolinguística, têm procurado conhecer as raízes desta língua veicular. Um deles, é o reputado universitário Jean-Louis Rougé, com vastíssima obra sobre o estudo de algumas línguas da costa acidental africana, vale a pena darmos atenção a este Pequeno Dicionário Etimológico do Crioulo da Guiné-Bissau e Casamansa, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 1988. Logo no prefácio, o autor questiona as razões deste dicionário etimológico. Pretende-se fazer um equívoco muito divulgado de que o crioulo é um português mal falado. São indiscutíveis as relações que ligam o crioulo ao português, é elevadíssima a percentagem de palavras do crioulo que têm origem portuguesa, o que não obsta a originalidade da língua veicular. O propósito do autor neste dicionário etimológico é procurar seguir o encadeamento dos diferentes factos pelos quais as palavras tomam a sua forma e valor.

O crioulo nasceu na faixa litoral da Guiné, do Senegal à Serra Leoa, alguns grupos africanos tentavam aprender o português para fazer comércio ou também porque trabalhassem em estreita relação com os navegadores e os comerciantes. Instituiu-se, assim, um sistema que servia de comunicação entre portugueses e africanos, tanto a bordo como em terra, era seguramente a língua dos “lançados”, aqueles que se atreviam a entrar no mato profundo e a conviver com as populações nativas. Havia igualmente os “grumetes”, fixavam-se à volta das Praças, formavam uma sociedade na qual o sistema de comunicação tinha a base do português com uma enorme variedade de incorporações, era este crioulo que se falava nas praças (Geba, Cacheu, Ziguinchor, Bissau ou Farim). É impossível apresentar dados precisos sobre a constituição do crioulo, sabe-se que aquele que é falado em território da Guiné-Bissau também é usado na Baixa Casamansa, é língua comum. Com o aumento de falantes de crioulo graças à expansão de Bissau, ao seu uso, diríamos permanente em ambos os lados da guerra da Guiné, e naturalmente aceite no país independente e usado pelos representantes do PAIGC nas diferentes regiões, havia dialetos ou acentos, o crioulo de Bissau não era exatamente o de Ziguinchor ou Cacheu, em Bissau havia mesmo o costume de distinguir dois tipos de crioulo, o “Kriol fundu” (profundo) e o “Kriol lebi” (ligeiro ou suave).

De um ponto de vista etimológico, o vocabulário do crioulo divide-se em duas grandes categorias: a das palavras emprestadas a uma língua pré-existente (o português ou uma ou outra língua africana); e as palavras criadas pelo próprio crioulo. Os empréstimos não vieram exclusivamente dos portugueses. O português que serviu de fonte ao léxico do crioulo não é o português atual, era o que se falava nos séculos XV, XVI e XVII, isto sem prejuízo de que a intensidade da presença portuguesa durante a guerra colonial trouxe importantíssimas adições. Observa o autor que há certos termos do crioulo que têm por étimo termos portugueses que hoje na sua própria língua caíram em desuso ou evoluíram. Por exemplo, misti (querer) vem do antigo português é mister, que hoje praticamente não se usa; a palavra janta significa almoçar, perdeu o sentido que o seu étimo tinha na época, hoje usa-se em português para falar de jantar. Mas há outros inputs como a linguagem dos marinheiros, os termos trazidos das viagens dos portugueses em três continentes e também há que ter em conta o vocabulário da região católica. É o caso da palavra kriston que mais do que significar cristão refere-se a civilizado.

E depois há a incorporação das línguas africanas. As línguas africanas da região que nos interessa, a antiga Guiné, pertencem a dois grandes grupos linguísticos, ambos saídos da família Níger-Congo: as línguas oeste-atlânticas e as línguas Mandé. O conjunto oeste-atlântico compreende diversos grupos: as línguas do Norte (Wolof, que se pode aportuguesar em Jalofo, Serer, Peul, que se designa em português Fula); as línguas Bak (Djola, Manjaco, Mancanha, Papel, Balanta); mas também as línguas Tenda-Nun, onde podemos incluir os Cassangas, os Biafadas e os Nalus; e as línguas do Sul, onde encontramos o Mansoanque e o Baga. Com a exceção do Fula, estas línguas são faladas exclusivamente nos territórios do Senegal, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e Serra Leoa. As línguas Mandé faladas na região são essencialmente o Mandiga, o Sosso e o Soninqué.

O autor também recorda empréstimos do crioulo às línguas africanas, muitos destes termos devem-se aos viajantes portugueses, caso de Valentim Fernandes, André Álvares de Almada, André Donelha, muito especialmente os nomes de vegetais. Obviamente que foram aparecendo termos à medida que o crioulo se constituía como língua autónoma e preenchia as faltas do sistema de comunicação provenientes da língua portuguesa. O autor espraia-se nestes empréstimos e as respetivas mudanças fonéticas. Segue-se uma apreciação sobre a transformação gramatical e a semântica destas incorporações e depois tem lugar o pequeno dicionário de que aqui se dão alguns exemplos: abakati (do português abacate), abridor (é o novo nome para aquele que abre, vem da palavra portuguesa abridor), ansalmas (nome antigo do português para almas; bagabaga (o mesmo que térmita) em Bambara diz-se baga, em Mandiga baabaa. Donelha, a propósito das formigas da Serra Leoa diz-se explicitamente: “há outras que chamam bagabagas”; bana (vem do português abanar; baraka, associada a barraca do fanado vem do português barraca; bentu (vem do português vento); cigada (vem do português chegada); temos os números, como por exemplo, des ku kwatru (catorze), des ku nobi (dezanove), des ku oytu (dezoite), des ku seyis (dezasseis), desanobi (dezanove); dimistrador (proveniente do português administrador); dwensa (vem do português doença); es (vem do português este); falesi (vem do português falecer); feredu (vem do português ferreiro); futseru (vem do português feiticeiro); gagisa (vem do português gaguejar); ingratesa (ingratidão); jambatutu (nome de um pequeno pombo, termo curiosamente apropriado por várias línguas, caso do Mandiga mas também pelo crioulo; kaberdianu (vem do português cabo-verdiano).

Resta dizer que Jean-Louis Rougé, professor emérito em Orleãs, conclui este seu interessantíssimo trabalho pondo em anexo um projeto de ortografia e separação das palavras em crioulo, mostra-nos as letras fundamentais, caso do k, w e y, as letras de apoio que podem ser necessários para empréstimos recentes do português, as vogais nasais e as consoantes pré-nasais, como se processa a escrita e a leitura do crioulo, etc.

Penso que, no mínimo, este trabalho do cientista da filologia nos traz recordações da língua veicular sobre a qual, seguramente, ouvíamos, percebíamos este ou aquele termo, mas no essencial algo nos encantava, havia ali um português antigo que alguns, vindo de remotas aldeias, gostavam de escutar.

Jean-Louis Rougé
Uma aula em crioulo, parece que a senhora professora está a atender uma chamada
Uma imagem de Bolama na proximidade do seu porto
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Nota do editor

Último post da série de 9 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25824: Notas de leitura (1716): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1870) (15) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Valdemar Silva disse...

No Dicionário Bilíngue - Português-Crioulo de Guiné-Bissau, de Cirineu Cacote Stein, não aparece cigada mas sim tchegada, nem falesi mas mortu e dwensa aparece escrito duensa. Não sei se as palavras em crioulo deste dicionário são antigas ou modernas com inclusão de palavras da época dos anos de guerra ou, depois, com aperfeiçoamento/estudo posterior.
Como curiosidade em crioulo da Guiné-Bissau não há palavras começadas pela letra c nem vogais com acentos (voais são sempre lidas abertas), sendo o til sobre o ñ uma excepção em várias palavras, de entre as quais galiña que também assim se escreve no papiamento de Aruba-Curaçau (Caraíbas), que tendo muitas palavras em castelhano não dizem pollo.
O crioulo da Guiné tem forçosamente palavras de origem portuguesa e muito concretamente com o nosso betacismo doutros tempos, que ficou agarrado nos tempos e dicionarizado : balenti(valente), bai ku Deus (vai com Deus), baka (vaca), bapur (vapor/navio), bara (vara) e muitas mais.

Valdemar Queiroz

Alberto Branquinho disse...

O texto esqueceu referir as entradas de palavras francesas no crioulo, o que, aliás, se compreende pela existência de francófonos na zona. É o caso de "sanchu" (macaco) e de "bô" (vous).
Há uma palavra que nunca consegui descobrir a origem: "cá" (não), que, nos primeiros tempos de Guiné a gente confundia com a ênfase introduzida no discurso pela palavra "na". Ex: A mim bai/A mim cá bai/A mim na bai. O que o milícia me queria dizer era que iria mesmo que tivesse muitas dificuldades. (- A mim na bai!) E eu a entender que ele não queria ir.
Não entendo por que havemos de grafar (por ex.) o nosso u como w e o nosso i como y. Coisas...
Mais havia a dizer, mas fico por aqui.
Alberto Branquinho

Valdemar Silva disse...

Em francês macaco é singe pronunciado sanjch e o bo é a contracção do vós ou você para vó / bo com betacismo (sotaque nortenho).
Ka é não, nunca utilizado isolada sempre acompanhada com outra palavra que forma uma só ka maduru = verde. Na é em, também sempre acompanhada na ordi=em ordem, na bai é em ir ou simplesmente ir.
Também já existem considerados neologismos como imboskada e antionti, e muitos mais.

Valdemar Queiroz