Meus caros Camaradas,
Dando cumprimento ao que havia referido, abaixo um segundo texto sobre este assunto.
Uma saudação camarada.
Paulo Salgado
Algumas (breves) notas sobre missionação - II
Carta de Inácio de Loyola a Diogo de Gouveia
Dou continuidade à minha breve referência sobre a missionação, tema que, por certo, outros trabalharão melhor, mas tentarei cumprir o que me propus no texto anterior.
Vale a pena este testemunho prévio para nos apercebermos da necessidade de o Reino enviar frades para a evangelização - a dimensão religiosa, nem sempre bem conseguida, mas preocupada com a palavra de Jesus. De resto, todos sabemos que uma das intenções, um dos objectivos dos descobrimentos era a pregação, a evangelização. Nas naus portuguesas e espanholas seguiam sempre “missionários”. Quem não se lembra dos nossos capelães, já não para evangelizar, mas para “dar força espiritual” às NT - assim era entendido pelos mandantes?
Repare-se, caros leitores, que existia (e existe) a preocupação de respeitar a hierarquia da Igreja - neste caso da parte de Loyola.
Mais uma nota: quem assina esta carta é o braço direito, admirador e seguidor indefectível de Inácio de Loyola, Pedro Fabro, que sempre procurou seguir o pensamento do Padre Superior da Companhia de Jesus - os jesuítas.
Finalmente, o próximo texto incidirá sobre um dos grandes missionários - Francisco de Xavier, e não Francisco Xavier; na verdade, ele era natural da localidade da região de Navarra - Xavier.
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A DIOGO DE GOUVEIA[1]
Roma, 23 de Novembro de 1538[2]
(Ep. I, 132-134 – original latino)
IHS. A graça e a paz de Jesus Cristo N. S. estejam com todos!
Há poucos dias chegou o vosso mensageiro com carta para nós[3]. Por ela soubemos notícias vossas e vimos quão boa lembrança guardais de nós, bem como o zelo que vos faz sedento da salvação das almas dispersas por vossa Índia, onde as messes já lourejam[4]. Oxalá pudéssemos satisfazer a vós e às nossas almas que sentem o vosso zelo. Mas existem alguns obstáculos que impedem corresponder não só aos vossos desejos, mas também aos de muitos outros.
Compreendereis isto pelo que vou dizer-vos. Todos quantos estamos reunidos nesta Companhia estamos oferecidos ao Sumo Pontífice, pois é o senhor de toda a messe de Cristo[5]. Por esta oblação lhe prometemos estar prontos para tudo quanto dispuser de nós em Cristo. Assim, se ele nos enviar aonde nos convidais, iremos alegremente. A causa desta nossa resolução, que nos sujeita ao seu juízo e vontade, foi entender ter ele maior conhecimento daquilo que convém ao cristianismo universal.
Não faltaram alguns que há algum tempo se esforçaram para que nos enviassem a esses índios que os espanhóis conquistam diariamente para o seu imperador. Para isso veio interceder em favor dessa causa, principalmente, certo bispo espanhol e o embaixador do imperador[6]. Mas persuadiram-se que a vontade do Sumo Pontífice era que não saíssemos daqui, pois é abundante a messe em Roma[7].
A distância do país não nos espanta, nem o trabalho de aprender línguas. Faça-se somente o que mais agrada a Cristo. Rogai, pois, por nós para que nos faça ministros seus no Verbo da Vida. Porque, embora «não sejamos por nós mesmos capazes de pensar algo como se fosse nosso», pomos a nossa esperança na abundância d’Ele e nas suas riquezas (2 Cor 3,5).
De nós e das nossas coisas tereis notícias completas por cartas escritas ao nosso particular amigo e irmão em Cristo, Diogo de Cáceres, espanhol, que vo-las mostrará[8]. Ali vereis quantas tribulações por Cristo passámos em Roma até agora e como delas por fim saímos ilesos[9]. Tão pouco faltam em Roma muitos a quem é odiosa a luz eclesial de verdade e de vida.
Sede, pois, vigilantes e esforçai-vos tanto em edificar o povo cristão com o exemplo de vida, como trabalhastes até agora em defesa da fé e doutrina da Igreja[10]. Porque, como podemos crer que nosso bom Deus conservará em nós a verdade da santa fé, se fugimos da sua bondade? É para temer que a causa principal dos erros de doutrina provenha de erros de vida. Se estes não forem corrigidos, não se extirparão aqueles. Pondo fim a esta carta, resta-nos pedir que vos digneis recomendar-nos aos nossos respeitadíssimos Mestres Bartolomeu, De Cornibus, Picard, Adam, Wankob, Laurency, Benoit a todos os mais que gostaram de chamar-se nossos mestres e nós seus discípulos e filhos em Cristo Jesus. N’Ele vos saudamos a vós.
Desta cidade de Roma, dia 23 de Novembro de 1538.
Vosso no Senhor, Pedro Fabro e mais Companheiros e Irmãos.
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Notas:
1 - Diogo de Gouveia (1471-1557), teólogo português de rígida ortodoxia católica, contrário mesmo a Erasmo, foi reitor da Universidade de Paris (1500-1501), obteve de D. João III a concessão de bolsas para estudantes nacionais, transformando Santa Bárbara num colégio português da Sorbona, do qual foi principal, durante longos anos. Mal informado sobre os primeiros discípulos de Inácio em Paris, esteve para castigar o Santo publicamente, como sedutor da juventude. Após a defesa de Inácio, reconheceu a sua inocência e pediu perdão de seu erro perante professores e alunos, reunidos para o projectado castigo. Agora, por sua iniciativa e por comissão do rei, escreve aos Companheiros, convidando-os para a missão da Índia (Fontes Narr. 139; Autob. 78).
2 - Um ano antes (Novembro de 1537), Inácio, com Fabro e Laínez, dirigia-se a Roma e, pouco antes de lá chegar, tivera a célebre visão de La Storta, que confirmava o título desses sacerdotes «amigos no Senhor», Companhia de Jesus, e lhe dava o seu significado profundo (Autob. 96). Como diz Ribadeneira sobre esta carta: «Escreveu a nosso Padre se teriam por bem irem todos ou parte dos Companheiros a pregar o Evangelho às Índias Orientais». Responde Fabro em nome dos demais, dizendo-lhe que estavam às ordens do Sumo Pontífice, o qual prefere que por então trabalhem em Roma (Iparr. BAC 668).
3 - D. Pedro Mascarenhas, novo procurador de Portugal em Roma, junto do Papa. Tratou com Inácio e Companheiros sobre a ida de alguns deles para missionar na Índia, a pedido de D. João III. Mais tarde, como Vice-Rei da Índia, apoiará os missionários jesuítas.
4 - Em Goa já havia um bom grupo de cristãos e até um colégio fundado para jovens indianos, chamado de Santa Fé, além da cristandade antiga de S. Tomé e outros núcleos.
5 - Em Maio de 1538, já estabelecidos em Roma, por não terem podido ir à Terra Santa, exercitavam-se em ministérios em favor da cidade de Roma. Levantou-se grave perseguição contra eles movida por Landívar, despedido da Companhia, e por outros espanhóis influentes na Cúria Romana. A defesa de Inácio é levada até à sentença final, que lhes restituiu a fama e os ministérios, muito frutuosos junto do povo (Autob. 98). Pouco antes de escrita esta carta, passado mais de um ano sem navio para Jerusalém, os Companheiros ofereceram-se ao Papa, de acordo com o voto de Montmartre (Autob. 85).
6 - João Fernández Manrique de Lara, marquês de Aguilar, era o embaixador de Carlos V em Roma. «Certo bispo espanhol» é talvez o antigo discípulo de Inácio em Barcelona, João de Arteaga, bispo de Chiapas no México, que oferecera o seu bispado a Inácio ou a algum dos Companheiros, e acabou por morrer na sua diocese (1541), ao beber veneno por engano (Autob. 80).
7 - Palavras do Papa, segundo Bobadilha: «Porquê esse tão grande desejo de ir a Jerusalém? Autêntica Jerusalém é Itália, se desejais trabalhar na Igreja de Deus» (Fontes Narr. III, 327).
8 - Diogo de Cáceres, em Paris, determinara seguir a Inácio. Em 1539, chegou a Roma e interveio na reunião dos primeiros Companheiros. No mesmo ano, voltou a Paris e ordenou-se sacerdote, mas em 1541 abandonou a Companhia (Iparr. BAC 669).
9 - Cf. supra, nota 5.
10 - Diogo de Gouveia opusera-se com toda a força ao primeiro aparecimento do luteranismo na Sorbona. Alguns aderentes à heresia tiveram então de fugir de Paris.
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Notas do editor:
Poste anterior de 8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23599: Notas de leitura (1491): Algumas (breves) notas sobre missionação (I) - Missionaria Africana - coligida e anotada por António Brásio; Agência - Geral do Ultramar - Lisboa / MCMLXV (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)
Último poste da série de 26 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23645: Notas de leitura (1498): "Ussu de Bissau", por Amadú Dafé; Manufactura, 2019 (1) (Mário Beja Santos)
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