terça-feira, 23 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11447: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (10): Regresso a Samba Cumbera, a sudoeste de Galomaro, 42 anos depois...

1. Mensagem do Rui Felício, com data de 19 do corrente:

Meu Caro Luis Graça,

Retomando uma longa ausência e na sequência dos teus últimos e-mails, deixo à tua consideração a eventualidade de publicação do texto que anexo, rememorando a última das passagens que fiz pela Guiné, esta há cerca de dois anos.

Um abraço

Rui Felicio
[ Ex-Alf Mil Inf,
3º Gr Comb
CCAÇ 2405
Dulombi, 1968/70]


2. Estórias de Dulombo  (10) (*) > Regresso à Guiné

Estava destacado com o meu pelotão em Samba Cumbera, pequena tabanca perdida no mato.

Há dois dias que chovia torrencialmente, sob um céu plúmbeo, abafado, abrasador. Um rio de lama saltitava pelos degraus de terra batida de acesso ao abrigo subterrâneo, coberto com grossos troncos de palmeira, com terra e com chapas de zinco. Lá dentro, precocemente enterrado, eu jazia exausto, fraco, cheio de febre, estendido no colchão de espuma empapado em suor. Em volta da cama de ferro, no lamaçal castanho de uns 10 centímetros formado pela água que entrava no abrigo, boiavam pequenos objectos, uma bota, um cinto, umas chinelas de plástico.

O médico estava na sede do Batalhão a muitos quilómetros de distância e, com a picada intransitável, tornava-se impossível deslocar-me até ele.

Desde anteontem que não comia nada. O estômago não aguentava qualquer bocado de comida, nem sequer a água que de vez em quando eu tentava beber para matar a sede intensa que me secava, expulsando-a em prolongados vómitos. Era a segunda vez em pouco tempo que era acometido por um fortíssimo ataque de paludismo.

O Samba, chefe da tabanca, e a sua jovem e bonita filha Fatwma, assomaram à entrada do abrigo, e ele chamou-me no seu português arrevesado:
- Alfero! Pudi entra? Bo stá milhor?

Resmunguei que estava pior, mas que sim, que podia entrar, e ele curvou-se, desceu para o abrigo, chapinhou no lamaçal e, com um molho de ervas na mão, disse-me:
- Tem mezinho manga di bom, qui bai cura alfero!

A Fatwma começou a esfregar as ervas que o pai lhe dava, na minha testa, nos lábios, no pescoço e no peito, formando com o suor, uma pasta esverdeada à medida que as ia esmagando. Ardia um pouco, mas nada que não se suportasse.

Senti-me psicologicamente melhor. Principalmente porque alguém se preocupava comigo. Com alguém que era um intruso em terra alheia!

No dia seguinte, amainado o temporal, cambaleante, trôpego, consegui enfiar-me no Unimog com meia dúzia de soldados. Vencemos os obstáculos da picada numa viagem lenta e atribulada e chegámos horas depois a Bafatá, onde o médico me deu duas injecções que me aliviaram o mal.

Passados 42 anos, por sinuosos carreiros que a mata invadira há muito e por onde o jeep abria caminho com dificuldade, afastando à sua frente os intrincados ramos da floresta, voltei ontem a Samba Cumbera [, a sudoeste de Galomaro, vd. carta Duas Fontes]. Disseram-me que o Samba já morreu há muitas luas. A Fatwma, abriu um largo sorriso ao reconhecer-me e correu a ir buscar uma cabaça com água fresca. Pareceu-me ver lágrimas nos olhos dela e senti-as também nos meus.
Está velhota a Fatwma, mas ainda é uma mulher muito bonita...

Nota de rodapé:

Tento resumir as características da doença, na minha ignorância médica, sujeita às correcções dos especialistas na matéria, aquilo que nos era ensinado nos manuais militares:

A malária é uma doença potencialmente mortal se não for atacada a tempo. Durante muito tempo supunha-se que a sua causa provinha directamente da proximidade de terrenos pantanosos fétidos e daí o seu nome originário de “mau ar” que redundou em malária. Descobriu-se que, afinal, a causa estava numa bactéria injectada no nosso sangue pela picadela do mosquito “anofelis” que a transporta consigo. O que explica a relação entre esse insecto e o seu habitat perto dos pântanos. Este mosquito alimenta-se exclusivamente do sangue dos mamíferos, razão da sua ferocidade e persistência, ditadas pela sua própria sobrevivência.

A bactéria, acomodada no circuito sanguíneo humano, imune às defesas do organismo, desenvolve-se, destrói paulatinamente os glóbulos vermelhos, ataca o fígado e vai enfraquecendo as resistências, provocando sintomas que na fase inicial da doença se assemelham a uma gripe forte, degenerando em febres altíssimas, vómitos, debilitação geral e prostração física e psicológica.

Na Guiné chamam-lhe paludismo, que deve ser prevenido, com tomas regulares semanais de comprimidos ou injecções de medicamentos elaborados à base de quinino.

Rui Felício - 29/06/2011
( Ex-Alf.Mil. CCAÇ 2405, Galomaro e Dulombi, 1968/70 )
__________

Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral

(...) O Natal aproximava-se… Antes da data prevista, chegara-nos um presente inesperado! Um periquito…. O furriel Cabral foi-nos mandado para substituir o furriel vagomestre, uns meses antes falecido em acidente de viação na estrada de Galomaro-Bafatá numa viagem de reabastecimento de viveres à nossa Companhia… O Cabral era uma jóia de pessoa, simpatiquíssimo, um tanto ingénuo e crédulo, sempre bem disposto e que rapidamente granjeou a estima de todos. (...)


14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili

(...) Ao cair da tarde, com a luz alaranjada do sol a começar a esconder-se na linha do horizonte poente, o Paulo Raposo, alferes da CCAÇ 2405, de quem guardo as mais pistorescas histórias, estava sentado perto do bunker do Capitão, com o olhar fixo num ponto afastado a sul do aquartelamento, perto do arame farpado. Aproximei-me e comentei:
- Eh, pá, não estejas a pensar na morte da bezerra… Já faltou mais e não tarda estaremos em Lisboa a beber umas imperiais e a olhar as bajudas brancas que por lá abundam. (...)


19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua

(...) 20 de Julho de 1969. Era domingo… Durante todo o dia a rádio ia noticiando a chegada do homem à Lua… A célebre frase do astronauta afirmando que o passo que acabara de dar em solo lunar era um passo de gigante para a humanidade, era escutada repetidamente nos pequenos transístores que nos mantinham ligados ao mundo. Claro que não havia televisão na Guiné e, mesmo que houvesse, jamais seria vista em Samba Cumbera, pequena tabanca onde a luz nos era fornecida através de garrafas de cerveja cheias de petróleo, nas quais se embebiam torcidas de desperdício que, depois de acesas, nos enchiam os pulmões de fuligem e fumo. (...)


5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço

(...) Daí a poucos dias íamos finalmente embarcar em Bissau no Carvalho Araújo para o ansiado regresso… Tínhamos acabado de receber no Dulombi a Companhia de atónitos periquitos que, durante uma semana, iam ficar em sobreposição connosco. Acolhemo-los com o aquele ar superior de guerreiros invencíveis, calejados pelos combates, a pele tisnada dos sóis tropicais, e além das costumadas praxes, meio inofensivas, que exercemos sobre eles, dedicámos-lhes, com a proverbial simpatia característica dos Baixinhos do Dulombi, um hino de recepção ao periquito que ainda hoje cantamos em todos os almoços anuais de comemoração que realizamos. (...)


18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG

(...) Já de si, o apelido originário da ascendência estrangeira da sua Família, o tornava notado. A sua invulgar estatura de quase dois metros, os olhos salientes, o cabelo arruivado, a pele branca e sardenta e o corpo magro, longilíneo e desengonçado, completavam a estranha figura propicia ao sorriso e aos mais díspares comentários. Falo do Parrot, que conheci em Mafra e que fez parte do meu pelotão do 1º Ciclo do COM da incorporação de Abril de 1967. Não era fácil, porém, tirar o Parrot da sua fleumática postura de não te rales, por mais provocações que se lhe tentassem fazer. Ele era a calma personificada, e senhor de uma inteligência fora do comum. (...)


27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1217: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (6): Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo

(...) Sinchã Lomá é uma pequena tabanca a Sudoeste de Dulo Gengele e esta por sua vez fica a Sul de Pate Gibel. Quando a CCAÇ 2405 chegou a Galomaro, destacou três dos seus Grupos de Combate para regiões circundantes da sede da Companhia com a missão de marcar posição no terreno e fazer ao mesmo tempo uma espécie de guarda avançada para protecção da Companhia. A mim, coube-me ir para Pate Gibel, a tabanca mais a sul de Galomaro. (...)


8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405)(7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi (Rui Felício)

(...) No terço final da comissão, com a Companhia finalmente concentrada no Dulombi, pensou-se em encontrar um emblema e uma divisa para a nossa Unidade. Não deveríamos deixar acabar a comissão sem legar aos vindouros um símbolo que nos identificasse, tal como a maioria das outras unidades já o tinham feito. Acolhida a ideia, estabeleceu-se um período de tempo para que fossem apresentados projectos para futura escolha daquele que merecesse o consenso geral. E assim surgiram meia dúzia de ideias para a o emblema da Companhia. (...)


30 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2073: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (8): O Fula, a galinha e o vestido

(...) Galomaro, Maio de 1981. Passados 11 anos após o regresso da CCAÇ 2405, retornei à Guiné, em 1981, naturalmente já civil, e passei alguns dias em Galomaro onde esteve sediada a Companhia antes da sua deslocação final para o Dulombi. Percorri, de jeep ou de bicicleta, toda aquela região que tão bem conheci por força dos patrulhamentos militares efectuados entre 1968 e 1970. (...)


26 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2683: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (9): O Jorge Félix e o Prisioneiro

(...) Num certo dia de Agosto de 1969, o Jorge Félix transportou no seu helicóptero um grupo de paraquedistas que iam fazer um assalto, a uma base do PAIGC, identificada pelos serviços de informações militares da Guiné, como estando localizada na região de Galomaro. Ao procurar local para a aterragem perto do objectivo, em plena mata, o Jorge Félix foi descendo o helicóptero e, a uns 5 metros do chão, a deslocação de ar provocada pelo movimento das pás do aparelho, afastou uma série de ramos de arbustos deixando a descoberto um guerrilheiro do PAIGC que ali se havia emboscado. O homem estava armado com um RPG7, e a granada colocada, apontando para o helicóptero, o que naturalmente deixou em pânico o piloto e os tripulantes. (...).

5 comentários:

Luís Graça disse...

Obrigado, Rui... É uma bela prenda de aniversário... esta 10ª estória de Dulombi, cinco anos depois da última... É de uma grande humanidade e sensibilidade. Gostei muito.

Força para ti!... Luis

Rui Felício disse...

Obrigado Luis.
Honro-me que a tenhas publicado.
Porque a nossa passagem pela Guiné deixou marcas positivas também, felizmente.

Rui Felicio

Anónimo disse...

Caro camarada Rui Felício

Quantos de nós passaram por esse sofrimento com o maldito "paludismo".

Pedes que os peritos expliquem a doença..bem julgo que não tem grande interesse a descrição cientifica.
Sobre o que vinha nos "canhenhos"militares é mais ou menos igual sobre a guerra "nuclear" e como nos devíamos defender ou proteger...simplesmente hilariante para não dizer trágico.
Aproveito só para dizer que o causador da doença não é uma bactéria mas sim um protozoário denominado "plasmodium" com vários tipos,sendo o mais grave o "falciparum" que tem o defeito de parasitar os glóbulos vermelhos onde a circulação é mais lenta nomeadamente a cerebral,daí a designação incorrecta de "paludismo cerebral".
Só a "mosquita" pica porque precisa do sangue que é muito rico em proteínas para fazer a desova.
A "gaja" tem a mania de quando fica "prenha" picar a torto e a direito sem olhar a classes.. género...condições..etc..é muito democrática..qualquer mamífero lhe serve..e na tropa estava-se nas tintas para as patentes..

Um alfa bravo

C.Martins

Hélder Valério disse...

Caro camarada Rui Felício

Uma história bem dignificante.
A tua descrição do ambiente e do teu estado debilitado pode parecer estranha a quem 'não esteve lá', mas era assim mesmo!

No que diz respeito ao teu reencontro trata-se de uma situação sempre recorrente por quem voltou lá e teve a felicidade de voltar a encontrar pessoas 'daquele tempo'.

Abraço
Hélder S.

Rui Felício disse...

Obrigado pelo teu comentário Helder.
Com efeito, quando falava aqui do que era o paludismo ( que apanhei por três vezes...), os meus amigos que não tinham passado pela Guiné, ficavam com ar incrédulo e sei que duvidavam do sofrimento que eu lhes descrevia, agravado pelas condições anómalas em que viviamos.

Só quem por lá passou e sobretudo só quem lá sofreu a doença, compreende como era dolorosa essa situação.

Um abraço do
Rui Felicio