Sexto episódio da série do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), Bom ou mau tempo na bolanha.
Assim começa Tó d'Agar uma nova vida nos Estados Unidos.
Depois de analisarem mais uma vez a situação, o Tó d’Agar,
que é como se chama no princípio deste texto, junto com a
Margarida, decidem que o melhor era ele ir sozinho na frente,
para os Estados Unidos. Uma pessoa sozinha é mais fácil arranjar
colocação e sobreviver, do que duas e um bebé.
Depois de comprarem um bilhete de avião para Nova Iorque,
com algum dinheiro que
tinham e um adiantamento
do ordenado da
Margarida, o Tó d’Agar
embarca. No mesmo
avião viajam diversas
famílias de emigrantes. Ao lado do Tó d’Agar
está sentado um
emigrante que vive nos
Estados Unidos há alguns
anos, numa cidade ao sul
de Nova Iorque, para lá
do rio Hudson, em Nova
Jersey. Como a viajem é
longa e depois de algumas horas de conversa, esse emigrante
explica ao Tó d’Agar:
- Próximo da cidade onde eu vivo, existem muitos emigrantes
portugueses a trabalharem que vivem sozinhos, há muito
trabalho, e você, novo e forte, que já fala algumas palavras em
inglês, não vai estar parado um dia sequer.
Depois de todas as formalizações, no Centro de Imigração do
Aeroporto de Nova Iorque, o Tó d’Agar sai do aeroporto com
novos documentos de identificação, tinha uma oferta de emprego,
só oferta, sem qualquer obrigação para ambas as partes, de uma
editora de Nova Iorque que o Tó d’Agar não vai dizer o nome
como devem compreender, pois nos anos sessenta do século passado
mais de 30% da indústria da cidade de Nova Iorque e arredores
eram tipografias e
editoras onde havia
alguma falta de
pessoal qualificado.
Depois de ouvir
o emigrante que
viajou a seu lado,
dizendo-lhe que na
sua área trabalho
não lhe iria faltar,
além de outras
razões, pois essa
oferta de emprego na
editora, era só
oferta, sem qualquer
compromisso em ambas as partes, portanto livre de ir para lá
trabalhar, ou da editora o empregar, mencionava um ordenado que
era de longe inferior ao que o referido emigrante lhe explicava
que pagavam em outros empregos na sua área, e também pensando no
dinheiro que trazia consigo, o seu pensamento focou-se na região
onde o referido emigrante vivia. Iria ver como corriam as coisas
e só depois entraria em contacto, se necessário fosse, com a editora em
Nova Iorque, que não era assim tão longe.
O seu primeiro nome foi alterado, porque o antigo era
difícil de pronunciar, passou a chamar-se, única e simplesmente,
Tony, pois é este o nome que vem nos novos documentos de
identificação, logo não é mais Tó d’Agar, nem Cifra, a
partir de agora, chama-se Tony. Já fora do aeroporto, admirado
de ver os carros muito grandes, olha o céu, fecha os olhos e
medita por uns
segundos, traz
consigo um saco de
lona, parecido com
os que se usavam no
exército de Portugal,
mas um pouco mais
pequeno, com alguma
roupa, dezanove
dólares que escondeu
nas meias, mesmo
dentro do sapato e o
coração a transbordar
de saudades da
Margarida e do seu
bebé.
Como antes tinha combinado com o referido emigrante, a
família que o esperava, proporcionou-lhe transporte até essa
cidade, ao sul de Nova Iorque, para lá do rio Hudson, em Nova
Jersey, que o agora Tony agradecendo, aceitou. Deixaram-no na
avenida principal com votos de felicidades, dizendo-lhe que
havia algumas casas de negócio nessa avenida, onde sempre havia
alguém que falava espanhol ou português. Assim o Tony veio
parar a Nova Jersey, como podia ter ido parar a Nova Iorque ou
a qualquer outro estado, mas quis o destino que fosse Nova
Jersey.
Era inverno, havia neve no chão, fazia algum frio, era ao
cair da tarde, o dia estava a acabar já sem muita luz, trazia ao ombro o
tal saquito que tinha uma pequena corda, servindo de alça, começa a caminhar, parando aqui e ali, e foi
tirando algumas informações, passou por baixo de uma ponte do
caminho de ferro, uma zona com algum movimento. Um polícia afro-americano vendo-o parar por alguns momentos, faz-lhe sinal
com a mão, para continuar seguindo, talvez com receio que o Tony
quisesse dormir por ali. Caminhou por mais algum tempo e
lembrando o seu companheiro de
guerra, Curvas, alto e refilão,
decidiu dormir nessa noite, numa
espécie de jardim onde havia a
luz de um candeeiro, que
iluminava a zona, mesmo na
margem do rio Passaic, onde
também outras pessoas, alguns
oriundos da América do Sul e
outros afro-americanos,
procuravam ajeitar a sua cama
com cartões e outras objectos. Havia mesmo a disputa de lugar,
onde o terreno era mais seco, o
Tony ajeitou-se encostado a uma árvore com o saco a servir de
cabeceira, mesmo junto de um casal afro-americano, que ao vê-lo
aproximar-se se encostaram um pouco para o lado, fazendo-lhe
um gesto para se deitar ali, junto deles. Depois do Tony se
deitar, esse afro-americano coloca-lhe um
grande plástico por cima e encostam-se a
ele, dando a entender, que juntos se
aqueciam mutuamente.
Pela manhã do dia seguinte, mesmo ao
clarear do dia, o casal de estende-lhe uma espécie de
bolo, colorido por cima, que mais tarde
veio a saber se chamava “Donats”, que o
Tony aceitou e comeu- Regressa à avenida
principal e encontra diversos grupos de
pessoas, na esquina das ruas, alguns com
uma bolsa de farnel, e que falavam
português entre eles, pois esperavam
transporte para os seus trabalhos. O Tony
logo se lhes dirige, contando-lhe a sua
história, um deles, que parecia ser o chefe, logo lhe diz:
- Oh homem, trabalho não te vai faltar, se quiseres vai a
esta direcção, que é ali ao dobrar da esquina, que é onde nós
vivemos, falas com este senhor e ele logo te arranja lá
alojamento. Olha, toma lá um banho bem quente, e come alguma
coisa, do que nós lá temos no frigorífico, pois tens um aspecto
de uma alma do outro mundo.
Assim foi, ficou instalado na cave de uma casa de
emigrantes, com mais doze pessoas, todos homens. Havia uma cozinha comunitária e dois
frigoríficos, as camas estavam de um lado da cave, encostadas a
uma parede. Havia um quarto de banho com um chuveiro, todo este
luxo custava seis dólares à semana, com a vantagem de começar a
pagar quando arranjasse trabalho. Eram todos pessoal de
trabalho, uns trabalhavam na construção de estradas, outros em
obras de casas, outros na abertura de valas e colocação de
manilhas de esgotos, alguns em fábricas, um era padeiro e outro
empregado num restaurante. Portanto, potenciais contactos para
arranjar trabalho.
Ao outro dia pela manhã, que era um sábado, o Tony, que é
como a partir de agora passa a ser conhecido, saí da cave e dá
uma volta pela
área. Fica um
pouco triste com
o cenário que vê,
as casas são
todas iguais e
encostadas umas
às outras, há
neve no chão, em
certos lugares, da
altura de um
homem. Começa a
nevar, passado
uns minutos o
chão está todo
branco, escorrega
e cai, levanta-se e sacode-se, passam algumas pessoas na rua,
não saúdam, vão atarefadas, algumas até se desviam dele, os
carros grandes e alguns cobertos de neve de alguns dias. Já
todo molhado e cheio de frio da neve, regressa de novo à cave,
falando sozinho:
- Isto, não pode ser a
América.
Os novos companheiros, na cave, Veem-no chegar com uma cara um
pouco triste, cheio de frio e com
um ar de pessoa desanimada. Um deles, o
que trabalhava no restaurante, logo
lhe disse:
- Não fiques assim homem de
Deus, aqui é onde está o trabalho e
o dinheiro.
Outro, o que trabalhava numa
fábrica de serração de madeiras, com ar sorridente, disse-lhe:
- Daqui a uns anos, já não queres saber mais do céu azul e
do sol brilhante.
E ainda outro, que andava na colocação de manilhas de
esgotos, falou muito alto:
- Todas as pessoas que chegam de Portugal, nesta altura do
ano, ficam desmoralizadas, deixa vir a primavera e o verão e
vês como a América é linda, e te vai dar um milhão de
oportunidades. Tens é que ter saúde.
O Tony ouviu todas essas palavras de encorajamento, já
tinha estado na África, em situações de desespero e sobreviveu.
Portanto isto, comparado com o cenário de guerra que viveu
na Guiné, naquele aquartelamento de terra vermelha e arame
farpado em Mansoa, era um paraíso. Pelo menos aqui, e segundo a
opinião destes companheiros, não haveria ataques de tiros e
granadas e não lhe iria faltar oportunidades de trabalho.
Um dos
problemas que mais o preocupava, e era um pouco diferente, eram
as saudades do bebé e da Margarida, mas iria superar tudo isso,
ele lá no fundo, sabia que sim.
____________
Nota do editor:
Úlimo poste da série 23 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11450: Bom ou mau tempo na bolanha (5): A Fé também ajuda (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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9 comentários:
Quem sabe se alguns dos afro americanos companheiros de Tony na noite gelada de Nova York, não seriam primos de algum fula das margens do Geba ou do Casamance ou Gâmbia?
É que o mundo às vezes é bem pequeno.
Olá Tony,
Welcome to the terra de oportunidade...
Um dia, alguém afirmou convicto que os dólares na América eram aos pontapés.
Com isso bem presente, um emigrante quando chegou a Boston, ao descer do avião, encontrou um dólar distraído no chão e disse:
- Cá está o primeiro! Não se baixou para lhe pegar. Preferiu dar-lhe um potapé.
Claro que o protagonista nunca mais encontrou outra no chão e o resto da história nós bem sabemos como acabou.
O Termo de Responsabilidade e o Contracto de Trabalho eram dois documentos absolutamente necessários para se poder imigrar para este País americano. Tinham força de lei, mas ninguém a usava.
Na verdade, se alguém accionasse os seus direitos, as pessoas e agentes de trabalho que facilitavam aqueles documentos, jamais se sujeitaria a passar novos documentos.
Foi assim, entre o entendimento todos, beneficiando da boa vontade de uns e de outros já aqui estabelecidas, que muitos portugueses conseguiram assentar raízes e refazer as suas vidas neste grande país americano.
Eu tive mais sorte que o Tony, pois já tinha a minha família aqui. Mesmo assim, cheguei a casa dos meus pais sem avisar.
Quando o Táxi que me trouxe de Boston parou no estacionamento da casa, o meu pai saíu à porta para ver o que se passava. Ao reconhecer-me quase caí com a surpresa. Tive que o amparar.
Ao entramos em casa, a minha mãe estava sentada à mesa, era hora do jantar, ficou presa na cadeira, sem fala, tremendo como varas verdes em dia de ventania.
Raio de chegada que quase matou os meus velhotes.
Sentei-me à mesa. Jantámos. Quase quatro anos depois a família estava de novo junta.
Abraço,
José Câmara
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