quarta-feira, 24 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11456: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (2): Nem santos nem pecadores



Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole >  CART 2716, Xitole, 1970/1972) > A Helena e o David, em 1970.

Tal como Bambadinca, o Xitole era um posto administrativo, pertencente à circunscrição administrativa (concelho) de Bafatá. Com a guerra, tinha perdido importância económica e demográfica. "Sede do Posto Administrativo do mesmo nome, sede da CART 2716, com uma população normal de 300 habitantes, dispõe de 3 lojas comerciais em funcionamento. Sofreu forte repressão na sua importância comercial (principais fontes de riqueza, coconoto e madeira), com a guerra" (Fonte: História do BART 2917, Bambadinca, 1970/72).

Foto: © David J. Guimarães (2005). Todos os direitos reseravdos

1. Texto do David Guimarães (ex-furriel miliciano da CART 2716, Xitole, 1970/1972), que hoje faz anos... e que é um dos primeiros camaradas a aparecer, a dar cara, a escrever no nosso blogue, nos idos anos de 2005. O primeiro poste que temos dele é de 17 de maio de 2005, e era o nº 20 (Foi você que pediu uma Kalash ?).

É bom lembrar que, se a antiguidade fosse um posto, na nossa Tabanca Grande (ou tertúlia, como dizias no princípio), então o David já era general... De facto, ele foi dos primeiros camaradas a aparecer, a dar a cara, a expor-se, a desenterrara as memórias do baú, a escrever... Ele, o Sousa de Castro, o Humberto Reis, o A. Marques Lopes...

É por isso que as suas "estórias do Xitole" merecem, pelo menos algumas, ser reeditadas. Vai ser a nossa prenda de aniversário. O David merece. Foi também ele um dos primeiros a fazer uma viagem de saudade, à Guiné, em 2001...  Aí vai, pois, o poste nº 2 de um série que tem estado interrompida. (*).. Em homenagem ao nosso tertuliano nº 3..., que é um tipo bonacheirão, nortenho, músico, camarada do  seu camarada, amigo do seu amigo... Bebo um copo à tua, meu! (LG).

2. Estórias do Xitole (2) > Nem santos nem pecadores (**)
por David Guimarães


Até que enfim!... Acho que sim — não poderá haver tabus e ainda bem que o Zé Neto, o Zé Teixeira, o Jorge Cabral e o Luís são, afinal, os responsáveis por quebrarem o tabu... Falaram de algo que também é guerra... Foi e marcou a nossa guerra: a lavadeira, o cabaço, etc, etc... Ai, ai, ai, que começo a falar demais, ou talvez não...

Creio que nunca houve grandes abusos nesse sentido, nunca foi preciso apontar a G3 a nenhuma bajuda, já uns pesos, enfim ... Que mal fazia, se era dinheiro de guerra?!...

Também é importante todos dizermos que, nesse capítulo, não fomos nem santos nem pecadores. èramos humanos, soldados que passávamos uma vida metidos entre matos, entre perigos e guerras esforçados... E pela noite dentro, a escapadela da ordem, na tabanca. Ai que maravilha!... Foram muitos e belos romances... E aqueles que podiam ir a Bafatá, eram uns sortudos... Eu só no fim da comissão é que soube o que era Bafatá!...

Lembro-me de um romance de um camarada que comprou a liberdade de uma mulher. Os nativos pensaram que ele se tinha casado com ela... Bem, porreiro para ele! Não é segredo, foi verdade, e a testemunha foi o chefe de posto, isso mesmo, aquele que a mulher —  linda ali, no Xitole!!! — morria de amores por um camarada nosso, já falecido...

E não vamos contar a do tenente que, às 4 horas da manhã, estava sentado no colo de um soldado.... Tudo boquiaberto? Aconteceu no Saltinho, sim ... Fora aquele camarada — ai Senhor do Céu ! — que,  um dia, estava eu a dormir no palácio das confusões, e ele por cima de mim:
— Guimarães! — dizia o B..., camarada do Xime — porra, estás bem?
— Deixem-me dormir! — pedia eu... — Porra!...
— Pois é, estás porreiro!!!

Pois é e pois é...  E eu dormi mesmo....De manhã fui perguntar se estava tudo com os copos durante a noite, que nem me deixavam dormir... Então disseram-me:
— Ó seu c..., então não sabes que o fulano tem uma amante que é um cabo !? —. Respondi eu:
— F...-se, que perigo em que eu estava... Porra!!! Já viram,  a mina mesmo ali, mesmo por cima de mim?!...

Estávamos num beliche... Quem me perguntar, prometo que não digo o nome do camarada furriel — nem me lembro do nome... Sei apenas que foi meu carmarada de recruta nas Caldas da Rainha... Um dia, a CCAÇ 12 acompanhou uma coluna ao Saltinho... Houve no caminho um acidente onde morreu um soldado africano, condutor, e um furriel ficou ferido... Bem, lá ficou o camarada em convalescença no Xitole:
— Ai que vocês são tão simpáticos....
— Bem, bem...

[Foto à esquerda: David Guimarães, no Xitole, em 2001]


E o Cardoso (outro furriel que estava lá desde 1966) ... Esse pedia-me para eu fazer guarda mais pela noite... Vinha-me acordar, para eu seguir para a tabanca: vinha sempre de casa da Mariana, com as calças na mão, descomposto... E ria, ria... Lá ia eu, sempre furioso:
— Seu porco! — e ia ter com a Mariana e ela, coitada, queixava-se:
— Guimarás — pronúncia dela —, Cardoso manga de tolo, mas Mariana gostar dele....

Isto também era guerra — ou, se quiserem, os intervalos de guerra, que eram poucos... O suficiente, afinal, para se apanhar uma borracheira ou ir, com lindos penteados, passear à tabanda, para bajuda ver ou para quem aparecesse, pelos vistos....
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2 comentários:

Luís Graça disse...

David, estou em grande parte de acordo contigo: tanto no meu tempo como no teu (e que foram, um e outro, parcialmente coincidentes), não tenho conhecimento de factos que nos permitam afirmar que as NT se comportaram como "tropa ocupante".

Não sei o que se passou antes, em épocas anteriores ao gen Spínola, como governador e como com-chefe...

Houve, no nosso tempo, processos disciplinares e criminais contra militares por má conduta (incluindo conduta criminosa) contra as populações, civis, e em particular as mais indefesas (mulheres, bajudas, crianças...) ?

Houve, ouvi falar de casos, embora eu não tenha dados estatísticos que me permitam fazer inferências ... O que te posso dizer é que, em quase dois anos (22 meses), de permanência no leste, vivendo lado a lado com militares e civis fulas, não tive conhecimento de casos de violação...

Em geral, e apesar das diferenças sociais, religiosas e culturais, entre nós e a população local, fui testemunha privilegiada de um trato, em geral, cordato e correto, sobretudo com os fulas, nossos aliados de longa data...

Mas nós não podemos ser juízes em causa própria... (É bom não esquecer!).

Anónimo disse...

Sexo,sexualidades e outras novidades.

Como todos sabem a homossexualidade era altamente reprimida tanto na sociedade civil como na militar tendo o próprio R.D.M. especificidades nesta matéria.
Era um caso grave se fossem detectados e altamente reprimidos.
Claro que sempre existiram.
Pessoalmente nunca tive conhecimento de nenhum caso tanto cá como lá,mas certamente que havia.
Parece-me que os casos relatados pelo camarada Guimarâes foram encarados com uma certa bonomia,e ainda bem.
Não sou homofóbico,mas confesso que não gosto de ver "bichas","mariconços" etc.
Felizmente que muitos dos homossexuais não são assim.
Só me dá vontade de rir quando se fala em "orgulho gay",orgulho de quê..?
É tão ridículo como se um houvesse "orgulho hetero..bi..sado-maso..".
A tendência sexual de cada um só a ele diz respeito..

C.Martins