Queridos amigos,
Ficamos com uma dívida impagável ao facultativo César Gomes Barbosa, chefe do serviço de saúde da Guiné, estamos na década de 1890. Os seus relatórios do serviço de saúde, quer o de 1891 e o de 1892, são modelares pela minúcia com que ele nos abre a porta até à farmácia central de Bolama, a natureza dos solos de Bolama e dos seus pântanos, a falta de enfermeiros, o inadmissível não haver um recenseamento da população da Guiné, escrevendo mesmo: "Sem haver um recenseamento da população da Guiné nenhum interesse científico há conhecimento do movimento obituário porquanto se não pode referir a termo algum de comparação. Em todo o distrito, o número de óbitos nas povoações em que se fazem internamentos nos cemitérios foi de 126 indivíduos desconhecendo-se por completo os óbitos ocorridos nas diversas tabancas gentílicas que fornecem na população flutuante um contingente sensível de mortalidade." Adverte continuamente as autoridades para o ingente problema da fuga à vacinação, é cuidadoso a descrever as casernas das instalações militares, enfim. Ficamos a dever a este facultativo elementos preciosos sobre a Guiné que caminha para o século XX.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de janeiro a agosto de 1894 (21)
Mário Beja Santos
Continuamos com o relatório do chefe do serviço de saúde, César Gomes Barbosa em diferentes números do Boletim Official deste ano de 1894, embora o documento se reporte a 1891. É indiscutivelmente um documento de grande importância, uma bela fotografia de um facultativo que não se limita a focar-se em exclusivo na saúde pública. Já falou de Bissau, Bolama e Cacheu, vejamos o que nos diz de Farim. “Não tem casas, mas sim cubatas; o seu solo é pantanoso, conseguindo no todo ou em parte os melhoramentos que tenho vindo a apontar para a Guiné, seria levantar-se a pouco e pouco o anátema que com razão pesa sobre si. Em Portugal é tal o horror que causa a ideia de uma demora na Guiné, parece a muitos impossível que em tal país se possa viver. Esse horror é razoável. A Guiné é hoje das nossas colónias a mais paludosa e insalubre.”
Fala depois dos quartéis, e logo Bolama:
“Ao pronunciar-me acerca das condições do aquartelamento em Bolama, sinto ter que estar em desacordo com pareceres dos meus antecessores quanto julgo importante. Refiro-me ao local da sua situação. A colocação dos pavilhões junto ao vasto pântano criado pela praia lodosa, na qual o mar se estende e constitui o esteiro conhecido por Rio dos Burames, é um defeito gravíssimo que só encontrará remédio no aterro da praia. Pena é que a tão bons edifícios tivesse sido dada uma tal colocação que parece não quis atender à topografia médica do terreno que deve ser tido muito em vista para quaisquer construções e muito mais para casernas onde é mais demorada a permanência dos seus habitantes. Os pavilhões que constituem o aquartelamento das praças da guarnição de Bolama são excelentes, casernas largas e bem arejadas, de construção belga formados por paredes de tijolos ocos, dispostos entre barras de ferro, assentando o edifício sobre colunatas de ferro e pilares de alvenaria, com uma altura do solo mínima de meio metro.”
E discorre sobre outros aquartelamentos, deriva depois para a sanidade marítima e queda-se na vacinação:
“A relutância que apresentam os habitantes da Guiné à inoculação da linfa vacínica é idêntica à que se nota nos povos de Cabo Verde. Receosos da febre que na marcha regular da evolução de uma pústula vacínica de boa qualidade se manifesta, todos recusam a fazer vacinar seus filhos. Por mais que a Junta de Saúde e seus delegados se esforcem para difundir a vacina, ela há de ser sempre diminuta enquanto se não tornar obrigatória. A vacinação obrigatória que não poderá estender-se às tabancas gentílicas, restringir-se-ia aos habitantes da capital e das praças de Bissau, Buba, Cacheu, Farim e Geba, o que, todavia, constituiria uma garantia à importação da varíola.”
E não deixa de manifestar preocupação sobre a inexistência de dados fidedignos sobre a demografia:
“Desconhecida a população de cada localidade da nossa efetiva e real ocupação, impossível se torna realizar o estudo do movimento da população que teria por base o conhecimento primário do número dos habitantes para cada uma. Nestas condições fica mais uma lacuna involuntária entre as muitas que devem existir neste relatório.”
O que se acaba de transcrever consta do Boletim Official n.º 16 e n.º 17, respetivamente de 21 e 28 de abril de 1894. No Boletim Official n.º 24, de 16 de junho do mesmo ano, temos de novo César Gomes Barbosa a falar do serviço de saúde durante o ano de 1892. Tanto teimou que começaram obras urgentes nos pavilhões do Hospital de Bolama. Queixa-se do espaço acanhado que é reservado à farmácia, reclama a construção da casa para o depósito das drogas da farmácia central do distrito, é necessário um compartimento para servir de laboratório farmacêutico. Queixa-se da falta de pessoal médico:
“Na Guiné há um simulacro do quadro de saúde – com um chefe e dois facultativos de 2.ª classe e um outro em comissão. Três médicos para toda a Guiné é um cúmulo! Pontos importantes hoje como Buba, Farim e Geba estão sem médico para acudir às suas imperiosas necessidades frequentes vezes são mandados os que residem em Cacheu, Bissau e Bolama (como delegados de saúde) visitar respetivamente Farim, Geba e Buba. Repetidas vezes fiquei só em Bolama para que o fundo facultativo que me acompanha para a formação da Junta de Saúde, pudesse sair ora para Geba ora para Buba, em socorros urgentes.”
Depois de discretear sobre o serviço hospitalar, põe por escrito o que ele estima sobre a saúde pública:
“O quadro patológico da Guiné divide-se em duas secções perfeitamente caracterizadas pelo predomínio das doenças e suas localizações no organismo. A primeira secção compreende 7 meses de maio a novembro e a segunda de dezembro a abril. Na primeira a epidemia palustre e, na segunda, as inflamações catarrais das vias respiratórias frisam a constituição médica. Durante os primeiros quatro meses da primeira secção patológica o paludismo complica-se de estados biliosos mais ou menos pronunciados, embaraços gástricos, intestinais e enterites (diarreia e disenteria) acentuando assim a localização do aparelho digestivo: nos restantes três meses agravam-se as manifestações paludosas, predominando as complicações congestivas do fígado, rins e baço, de onde as biliosas hematúricas. Na segunda secção, nos meses de dezembro a fevereiro dá-se a localização dos centros nervosos manifestando-se as perniciosas cerebrais e as insolações, predominando as inflamações catarrais das vias aéreas, por bronquites, pneumonias e pleurisias. Nesta quadra ordinariamente aparece Farim, Geba e Buba a coqueluche (tosse convulsa), o sarampo e a varíola, trazidas certamente por caravanas que chegam do interior. Pelo segundo período desta secção continua o predomínio dos catarros brônquicos e surgem as enterites devido à ingestão de frutas mal sazonadas.”
Mais adiante falará da higiene e da polícia médica, seguindo-se a vacinação, volta a mostrar o seu inconformismo, e escreve:
“Reputa-se na Guiné a vacinação como inútil não prejudicial e o povo está crente de que a vacina dá varíola, isto de suporem que ela deve produzir o mesmo efeito que o antigo processo da variolização muito usado pelo gentio que ainda hoje dele se serve como preservativo.”
Queixa-se da falta de médicos forenses, na dificuldade no recrutamento de enfermeiros e nas doenças vindas de fora:
“A Junta de Saúde declinando toda e qualquer responsabilidade de quaisquer ocorrências que poderiam advir da admissão em quarentena a embarcações procedentes de portos infecionados, julga necessário para se atender às vitais e imperiosas necessidades do comércio e interesse da fazenda pública, que se estabeleça um lazareto competentemente montado no Ilhéu do Rei. Uma colónia que vive quase exclusivamente de permutação de artefactos europeus pelos seus produtos agrícolas não pode deixar facilitar a entrada em seus portos a embarcações procedentes dos principais portos de exportação da Europa, portanto não pode demorar a constituição de um lazareto convenientemente apropriado.”
Interrompemos aqui as narrativas do facultativo César Gomes Barbosa, voltaremos com o Boletim Official n.º 32, de 11 de agosto, nele se transcreve o auto de submissão prestado pelos Grumetes e Papéis de Intim, Bandim, Antula e Safim, da ilha de Bissau a Sua Majestade fidelíssima.
Imagem retirada do trabalho de Leite de Magalhães, publicado na Agência Geral das Colónias em 1929
Imagem retirada do trabalho de Leite de Magalhães, publicado na Agência Geral das Colónias em 1929
Imagens de uma elefantíase num jovem
Foto aérea da ponte-cais de Bissau, poucos anos após a sua inauguração em 1953 - Foto Serra
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Nota do editor
Último post da série de 29 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26439: Historiografia da presença portuguesa em África (462): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de janeiro a agosto de 1894 (20) (Mário Beja Santos)
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