1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Julho de 2012:
Queridos amigos,
Por exigência do ofício, vou agora rondar pelas histórias da Guiné, imperativo que me é imposto pelo novo trabalho que tenho em mãos quanto a um roteiro que faz o arco entre a Guiné Portuguesa e a Guiné-Bissau.
É uma tentação este texto de René Pélissier, o investigador aparece bem documentado, é por vezes muito brusco e torna a leitura palpitante graças às suas descrições onde não faltam aventuras, guerras e a consideração que ele mostra pelo esforço dos portugueses em internarem-se no mato para consolidar posições. Deita por terra o mito da nossa presença ao longo de cinco séculos, o que é verdade é que mal se saiu da orla marítima, quase sempre dentro das praças e dos presídios. Sim, é apaixonante ler este René Pélissier que ainda se encontra nas livrarias.
Um abraço do
Mário
A história da Guiné, por René Pélissier (1)
Beja Santos
No âmbito do trabalho que estou a desenvolver com o Francisco Henriques da Silva e que se intitula “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro”, tem total cabimento afoitarmo-nos a fazer uma incursão pelas diferentes obras que falam da Guiné. A primeira história da Guiné foi a de João Barreto, um médico goês, curioso pelo passado da Guiné e que deu à estampa o seu trabalho em 1938.
É mais uma obra de divulgador que de especialista, tem incontestáveis méritos e revela abundantes insuficiências, como mais tarde se destacará. Em 1954, o então comandante Avelino Teixeira da Mota publica um estudo detalhado, a história da Guiné Portuguesa, que durante anos foi a peça de referência e ainda hoje é de leitura obrigatória em certos domínios. E veio a seguir René Pélissier com a sua História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia, 1841-1936, dois volumes, Editorial Estampa 1989.
A historiografia posterior aparece parcelada, António Duarte Silva escreve o seu incontornável “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, um olhar que permite ao estudioso e ao interessado pelas coisas guineenses entender a importância da obra de Sarmento Rodrigues e a fase da Guiné como província ultramarina, até chegarmos aos alvores da causa nacionalista. Como igualmente importante se revela a Guiné, 1963-1974, de Fernando Policarpo (QuidNovi, 2006), porventura o estudo nos oferece a melhor síntese do período correspondente à luta de libertação.
O trabalho de Pélissier aparece prefaciado por Leopold Senghor. É muito belo o que ele nos escreve aqui:
“Os meus antepassados fulas e mandingas provêm de Gabu, no nordeste da Guiné portuguesa, para se integrarem em Sérères do Sine, mais exatamente na Petite Côte do Senegal, onde Joal, minha terra natal, é um porto banhado pelo Oceano Atlântico. Além disso, o meu apelido Senghor tem origem na palavra portuguesa Senhor, tal como o nome da minha cidade natal, Joal, é igualmente um apelido português. Acresce ainda que, além de outras coisas, tenho sangue português. Last but not least, no Senegal predominam os nomes e, portanto, o sangue português, sobre os nomes e o sangue franceses. Para compreender este facto bastará ler o livro de Pélissier. Aliás, no Casamansa fala-se ainda o crioulo português como dialeto regional (…) o que René Pélissier, ou melhor, mostrar, é a originalidade da colonização portuguesa e, sobretudo, o seu carácter nem racista, nem fanático (…) O leitor europeu não ficará pouco surpreendido ao verificar isto: estas campanhas, mais exatamente estas repressões ou estas guerras são quase sempre dirigidas não tanto contra os revolucionários das cidades, os mestiços, os cristãos, até mesmo os muçulmanos, mas contra os povos animistas: os Papéis, os Balantas, os Felupes e outros Beafadas”.
Senghor considera que esta obra proporciona uma leitura apaixonante e dou-lhe toda a razão.
Na introdução, o autor explica-nos ao que vem. Primeiro, contribuir para desfazer o mito dos cinco séculos da colonização-exploração portuguesa; segundo, tentar encher um vazio no conhecimento da África Ocidental pelos francófonos, cujos historiadores, praticamente todos, cessaram as suas investigações nas fronteiras da Guiné. Sem aparentemente se aperceberem de que este enclave não só tinha uma história própria como ainda uma certa importância; terceiro, um estudo dirige-se principalmente aos guineenses para eles considerarem a resistência/colaboração dos seus avós à conquista colonial. Neste ponto, o autor é esclarecedor:
“A Guiné, entre 1841 e 1936 foi uma terra de violência, repetitiva e de uma intensidade que não foi igualada nos territórios de extensão comparável na África Ocidental: perto de três vezes mais que no Casamansa. Com 81 campanhas, expedições ou simples operações que envolveram um mínimo de cerca de 8500 soldados regulares e cerca de 42000 guerreiros e auxiliares alistados do lado português, para consolidar uma colonização que, até ao começo do século XX não sabia se não teria de fazer as malas e pôr-se a andar. Ver-se-á, ao longo do texto, que a razão essencial desta acumulação de choque está ligada com a fraqueza intrínseca do poder português que só avança verdadeiramente para o interior das guerras depois dos grandes massacres de animistas de 1913-1915”.
Nos primórdios tínhamos a Guiné de Cabo Verde (1841-1844), de cedência em cedência a presença portuguesa fica confinada à Guiné de Cabo Verde, uma fração da Guiné de Cabo Verde dos séculos XVI-XVII que começava na foz do Senegal e ia até à Serra Leoa. Esta Guiné é a dependência de Cabo Verde, um género de colónia de uma colónia, pontificam tanto no tráfico negreiro como na administração incipiente os cabo-verdianos, a despeito do tratado luso-britânico de 19 de Fevereiro de 1810 pelo qual o tráfico negreiro era proibido na Guiné.
Pélissier desvela as práticas desse tráfico e os seus protagonistas. Interpelando o que era a Guiné neste período responde:
“Em 1841-1844, a Guiné dos portugueses e dos lusitanizados é, em primeiro lugar, os rios. A isto se junta, em equilíbrio precário nas suas margens, algumas escalas mestiças que sobrevieram à concorrência estrangeira”.
Explica quais são os limites da Guiné, a sua fronteira marítima de cerca de 450 quilómetros e tece novas considerações:
“Na prática, o problema dos portugueses do litoral, no século XIX, consistirá em fazer com que a França e a Grã-Bretanha admitam que esta costa lhe cabe sem partilhas. Ora, contrariamente a Moçambique e principalmente a Angola, que aumentarão a sua extensão, a Guiné fictícia de 1841-1844 perderá quase metade das suas margens antes de se reduzir às fronteiras que lhe conhecemos. Esta costa é disputada não só nas chancelarias como até já no terreno”.
Seguir-se-á o trabalho de interiorização, os portugueses afanosamente acabarão por criar uma verdadeira colónia. As receitas, nesta fase ainda de tutela de Cabo Verde, resumem-se aos rendimentos da alfândega de Bissau e as despesas aos soldos das guarnições e de alguns funcionários civis, bem como às raras obras de consolidação dos edifícios públicos.
René Pélissier afirma que não há conhecimento exato do comércio das feitorias e argumenta:
“Com a exceção de dois ou três navios americanos, a exclusividade da navegação lícita pertence às escunas e chalupas inglesas e francesas de Gâmbia e de Goreia, que visitam duas ou três vezes por ano, cada uma, os postos portugueses. Os produtos declaráveis são o marfim, os couros e peles, a cera, o óleo de palma, as tartarugas, algum ouro e as madeiras”.
Há um prudente silêncio sobre o tráfico negreiro. Todo o comércio se baseia na troca e nos pagamentos em espécie. Quanto à topografia político-militar, o autor refere duas capitanias-mores, a de Cacheu e a de Bissau que estão unificadas numa comarca que tem à cabeça um subperfeito, residente em Bissau, isto antes de 1842 ano em que a Guiné volta a dividir-se em dois distritos autónomos, cada um com um governador dependente do governador-geral de Cabo Verde. Os portugueses ocupam Zinguichor, de há muito cobiçada pelos franceses, há registo de um enorme esforço de Honório Pereira Barreto para suster esta presença francesa, mas o Casamansa português está num completo declínio.
Na bacia do rio Cacheu, a presença portuguesa é dada pelo presídio de Bolor, pela povoação de Cacheu e a sua antena de Farim. No rio Geba espalha-se uma série de guarnições a começar por Bissau, depois Fá, Geba e Ganjarra, quase em frente à feitoria de Geba; há uma ténue presença no Rio Grande de Buba, no arquipélago dos Bijagós a presença portuguesa ocorre em Bolama e na Ilha das Galinhas. Por esta data inicia-se a “Questão de Bolama”. Só no final do Século XIX é que os portugueses se afoitarão à região Sul, depois do acordo celebrado com os franceses em 1886.
Mas a vida em Bissau é terrível, está sujeita a guerras permanentes, como se passa a descrever.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10436: Notas de leitura (411): "Rumo a Fulacunda", de Rui Alexandrino Ferreira (Belarmino Sardinha)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Já aqui foi feita, pelo Beja Santos, uma recensão bibliográfica do livro dedicado à Guiné (1963-1974), no âmbito da coleção "Batalhas de Portugal", editado pela Quidnovi em 2006, da autoria do Coronel Fernando Policarpo...
Refira-se que se trata de um camarada nosso, que foi alferes miliciano no TO da Guiné, de 1972 a 74, tendo ficado gravemente ferido em combate, por ação de uma mina que lhe amputou um pé.
O Fernando Policarpo é licenciado em História, foi co-fundador do Centro de Estudos de História Militar e é professor do Colégio Militar. É irmão da ex-alf enfermeira paraquedista Maria do Céu Policarpo Vidigal (que prestou serviço em Angola) bem como do cardeal patriarca de Lisboa, José Policarpo.
Já em tempos convidei o Fernando a integrar a nossa Tabanca Grande.
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