1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (12)
O Madragoa
O Madragoa era um militar com quem todos simpatizavam.
Nasceu na capital de Portugal, no bairro da Madragoa, e
falava com um sotaque que todos tentavam imitar. Ao
falar, quase que cantava, e mexia os lábios duma
maneira que o tornava único. Sabia boxe, e ao caminhar,
com um jeito gingão, balançando o corpo, cigarro “três vintes”
na boca, sempre tinha uma maneira diferente de saudar os
militares por quem passava.
E os militares que por ele passavam, já diziam, tentando
imitá-lo:
- Tásss booom, hó pááá.
Ele ria-se, e dizia, debaixo dum sorriso matreiro:
- Touuu porreiroooo, embora aqui não haja “garinas”, tááá.
“Garinas”, creio que era garotas.
Bem, mas vamos à história.
Para os lados do norte, na região do Oio, para lá do rio
Cacheu, depois de intensa floresta e de um pequeno rio
afluente, que não era mais do que a continuação de alguns
pântanos, havia uma aldeia considerada ponto estratégico,
devido à sua localização. Ao norte da aldeia, por alguma
extensão, não havia rios ou pântanos, era perto da fronteira com
outro país africano, era uma área com um excelente potencial,
para um futuro corredor de abastecimento das bases dos guerrilheiros, que entretanto se instalavam, com alguma
agressividade, construindo “casas mato”, que era como disignavam
as suas pequenas bases, na região do Oio.
O comando a que o Cifra pertencia, depois de trocar mensagem
atrás de mensagem, durante bastante tempo, com o comando do
território na capital da província, informando de que havia
notícias de infiltração e passagem de guerrilheiros, assim como
material de guerra, na área, ao fim de algum tempo recebe
autorização para dessa aldeia fazer um posto avançado.
E o Cifra, pensava:
- Quem serão os desgraçados dos militares que para lá vão
ser mandados?
O comando, passado mais ou menos uma semana depois de receber
autorização, destacou para essa área, primeiro, parte de uma
companhia de infantaria que tinha chegado há pouco à província,
portanto com pouca experiência no conflito, mas reforçada com
uma secção de alguns militares de um pelotão de morteiros, já
com alguma experiência em combate.
Para ajudar na instalação destes militares, colaborou a Armada com duas lanchas de patrulha dos rios e pântanos, que os
transportou, assim como algum equipamento militar.
Depois de os militares se instalarem um pouco distantes da
referida aldeia, num local onde o terreno era seco, que ficava
um pouco ao norte mas quase encostados ao tal afluente de rio,
que não era mais do que um pântano, que já aqui falámos, que
quando a maré subia aumentava o volume do seu caudal, formando
uma extenção de água que se estendia para sul, por bastante
distância, e onde entenderam que era o lugar ideal, construiram
um pequeno acampamento com paredes feitas com sacos de terra e
cobertas com alguns troncos de palmeiras e folhas de zinco, onde
por sua vez, também colocavam sacos de terra, para mais
protecção; alguns abrigos, abertos no chão onde o terreno era mais seco, também cobertos com troncos de palmeiras, folhas de
zinco e sacos de terra. Enfim, de pouco a pouco, construiram
uma pequena fortaleza, onde se instalaram.
O único meio de transporte que tinham para se deslocar, e
ter contacto, com qualquer unidade militar avançada na zona, era
uma pequena lancha com motor fora de bordo, com capacidade para
no máximo cinco pessoas, atravessarem o rio e pântanos, e virem
de encontro a essa mesma unidade, que previamente avisada pelo
serviço de transmissões, os esperavam em terra firme.
Era assim que eram abastecidos, semanalmente de alguns
víveres e géneros de primeira necessidade, assim como o correio.
Estavam praticamente isolados. A maior parte dos militares,
para passarem o tempo, aprendiam algumas habilidades. Por
exemplo, com uma simples bola de futebol, davam umas centenas de
toques, sem deixarem a bola tocar no chão. Outros, depois de
algum treino, bebiam líquidos com a boca aberta. Corriam, dando
saltos mortais, como nos jogos olímpicos. Com a G3 davam
tiros, com a arma no ombro, para trás, acertando no alvo com a
ajuda de um espelho. Quase todos deixavam crescer a barba e
grandes bigodes, competiam entre si, a ver qual apresentava o
maior bigode.
Passado uns meses, alguns militares começaram a adoecer. A
principal causa era uma espécie de paludismo. Febre,
tonturas, vomitar, cor amarelada da pele do corpo, e logo lhe
diziam:
- “Estás apanhado”.
Eles queriam água limpa, pura, para beber, mas não havia.
Era a dos bidons que se tirava do rio, turva, e depois assentava
no fundo, ao fim de umas horas, que se fervia alguma, outra não.
Nessa altura, começou a funcionar o meio de transporte de
emergência, que era o helicóptero, e começou a evacuá-los. Vinham dois e três de cada vez. Iam para o hospital da capital
da província.
Como até aquela data não fora detectada qualquer presença,
vestígios ou possível movimento de guerrilheiros na área, pelo
menos não havia reportes nesse sentido, pelas forças militares
que lá se encontravam, pois se os guerrilheiros se movimentassem
na zona, não era durante o dia, mas sim de noite, e de noite,
não havia patrulhas, e também não iam atacar a pequena
fortaleza, pois com essa atitude iam denunciar a sua
movimentação na referida zona, e com toda a certeza que depois
disso acontecer, os militares iriam ser reforçados, iriam
dificultar toda a sua movimentação, mas continuando com a
narração, o comando, decide fazer regressar quase todos os
militares.
No seu lugar, deslocou para lá, duas secções de combate, uma
duma companhia de infantaria e outra dum pelotão de morteiros,
de mais ou menos sete ou oito homens, cada uma, que seriam
rendidos todas as semanas.
Aqui, começou a trabalhar o tráfico de influências.
Das secções de combate nomeadas, uns não queriam ir, davam
baixa de doentes, outros queriam ir, porque era pura liberdade
nessa semana. Levavam vinho, comida, ninguém lhes dava ordens,
dormiam quando queriam, não tinham que sair, quase todos os
dias, a bater as zonas nas matas próximas do aquartelamento.
Enfim, o costume, nestas situações. Havia os que davam dez
maços de cigarros, para não irem, e os que davam quinze, para
irem no lugar de outros.
Já lá vão quase dois meses, não houve situação de perigo, a
zona, afinal era sossegada, a semana passa rápido, já iam com
muito mais prevenção, e não adoeciam como os primeiros. A
população local, era mais ou menos conhecida, já havia alguns que iam duas vezes por mês, e tinham lá namorada, como era o
caso do Madragoa.
(A história de acção, que se segue, o Cifra teve conhecimento
pelos relatórios que lhe passavam pelas mãos, de informadores
que os militares tinham em diversas zonas da província, pois
muitas vezes era por essas informações que os militares
movimentavam tropas no terreno)
Por volta das duas horas da manhã, uma coluna a pé,
possivelmente vinda da fronteira com outro país, segue em fila
indiana. Esta coluna é composta por guerrilheiros e
transportadores de material de guerra. Na frente vão nove
guerrilheiros, fardados, de metralhadora pronta a disparar e
catana à cinta. O primeiro vai distanciado do segundo,
aproximadamente vinte metros, o segundo do terceiro, mais ou
menos dez metros, os restantes sete, mais ou menos dois metros
uns dos outros. Seguem-se vinte e sete mulheres guerrilheiras,
com a mesma distância, de aproximadamente os mesmos dois metros,
umas das outras, transportando à cabeça, alguns pesados fardos,
outras cestos e caixas de material de guerra, seguidas por
outros nove guerrilheiros, fardados, de metralhadora pronta a
disparar, e de catana à cinta, com a mesma distância de dois
metros um do outro, excepto os dois últimos, que mantinham a
coreografia do primeiro e do segundo.
O Madragoa, que já dormia com a namorada na palhota da
aldeia, que ficava um pouco retirada do acampamento, ouvindo um
pequeno barulho que lhe parecia passos constantes, vem cá fora
espreitar.
Escuta, avança uns passos com curiosidade. Não viu mais
nada. Foi golpeado, no lado esquerdo, pelo golpe de forte
catanada que lhe atingiu o coração. Levou mais uns tantos
golpes, mas deverá de ter morrido ao primeiro golpe.
Nesse momento, mais dois militares dormiam nas palhotas da
aldeia, que regressaram ao acampamento, pela madrugada, com
sempre faziam, sem suspeitarem de nada.
Ninguém sabe se foi a curiosidade do Madragoa que o matou,
o que é certo é que pela manhã, a namorada tinha
desaparecido da aldeia.
O Comando, quando recebeu o reporte da morte do Madragoa,
mencionava que ele ia dormir com a sua namorada sem o
comandante da secção ter conhecimento, pois ia para a aldeia,
pela calada da noite, e regressava ao acampamento pela
madrugada, pelo menos era esta a versão do reporte oficial.
Nunca foi mencionado nada a respeito dos outros dois, que deviam
ter aprendido a lição com o exemplo do companheiro morto à
catanada. E era natural que o comandante da secção não soubesse, ou se
sabia, colaborava, pois era natural entre companheiros
facilitar a vida uns aos outros.
Mais tarde, pela rádio de uma emissora, que todos diziam,
funcionava num país vizinho, que, com o seu programa
patriótico, insentivava os naturais à luta e desmoralizava as
tropas de Portugal, descreveu toda a história, dizendo entre
outras coisas que: Mais uma mulher patriótica e corajosa, que depois de matar
o invasor militar que a raptou, libertou-se, e com a ajuda dos
nossos corajosos combatentes, que não dormem, para abastecer as
nossas bases, e que estão sempre vigilantes nesta luta de
libertação..., esta mulher patriótica, juntou-se, vindo reforçar
o nosso movimento, blá, blá, blá.
Propaganda. Só Deus sabia.
O Cifra, ao ter conhecimento da morte do Madragoa, com quem
confraternizava, e com quem algumas vezes treinava boxe, e
sempre lhe dizia:
- Olha-me nos olhos. Os olhos é que comandam os meus
movimentos.
Sim os seus olhos ficaram gravados para sempre na sua
memória. O Cifra sofria, chorava sem lágrimas, perante todo este
cenário, de morte e de guerra, em que estava envolvido, sem ter
dado um passo, para que ela existisse.
E nas suas meditações, algumas vezes falava alto, dizendo: Por que razão me tiraram do meu vale do Ninho d’Aguia,
onde ouvia todas as manhãs o meu comboio das seis e meia, o
berrar das minhas ovelhas pedindo mais erva, da minha família,
da minha represa no lameiro, do meu rio e da companhia
das minhas amigas, que pelo menos mostravam que
gostavam de mim.
E continuava, virando a cara para o céu: Se é que existe alguma divindade aí em cima, a que nós
terrestres chamamos Deus, por favor liberta-me e tira-me deste
sofrimento.
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Nota de CV:
Vd último poste da série de 22 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10419: Do Ninho D'Águia até África (11): Zarco, o combatente (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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