1. Mensagem de Armor Pires Mota enviada a Mário Beja Santos, a propósito de "A Viagem do Tangomau", livro de autoria deste nosso camarada:
Meu caro Tangomau, perdão, Mário Beja Santos:
Acabei de ler o seu monumental livro cuja temperatura foi subindo à medida que caminhava para a visita aos lugares míticos e neles entrava com lágrimas suas e de toda a gente. Gostei imenso. É uma memória muito completa e minuciosa. Nada lhe escapou. Felizmente. O que penso do livro vai no texto abaixo, que se divide em duas partes e assim elaborado para que, se quiser dele dispor, publicando-o no Luis Graça, já esteja pronto, embora possa ser corrigido, aqui e ali, se alguma coisa não estiver correcta. Tem toda a liberdade.
Apresento-lhe os parabéns e rejubilo pela obra.
Um abraço
Armor
“A Viagem do Tangomau – Memórias da guerra colonial que não se apagam”
Ou um livro de afectos e de plena reconciliação
Este livro é uma viagem ao passado guerreiro de Mário Beja Santos, na pele de Tangomau, difíceis e atribulados dias, que lhe continuam presentes no coração e na carne das palavras. Uma guerra que se trave deixa sempre uma ferida, sempre dói. É o remate feliz dos anteriores testemunhos, inscritos em dois Diários de Guerra - “Na Terra dos Soncó” (1968-1969) e “O Tigre Vadio” (1969-1970), na medida em que faz o pleno: é o livro da reconciliação sem reticências, total, entre homens que, há quarenta anos, se guerrearam e bateram na mata, cada qual com os seus objectivos e armas.
Pode dizer-se mesmo que é, sobretudo, um livro de afectos – e mais do que isso, é a sua confissão plena e exultante – de um alferes miliciano para com os seus subordinados, valorosos soldados nativos, exemplos de audácia, e para com as populações para quem quis e fez sempre o melhor, dentro dos condicionalismos reinantes. E vice-versa. Mas não só. Reflecte uma serena e descomplexada paixão por aquelas terras, com as suas paisagens deslumbrantes, manhãs de púrpura quente e muito luminosa e ocasos fantásticos, com o sol transformado em bola de fogo, tombando “lesto-lesto” no horizonte, é a mostra de uma ternura especial e universal por aquelas gentes, nutridas de uma enorme afabilidade. Neste patamar, os afectos, com laços fortes, marcados a fogo, no lume daquele tempo, chegam a atingir a sublimação, quando considera irmãos de coração alguns deles. Por sua vez, os seus soldados, com o beneplácito contente das populações, consideravam o combatente e destemido operacional Mário Beja Santos não apenas “o branco de Missirá”, mas N´Baké”, o que significa a maior prova de amizade e consideração para com outro… O mar verde e temível da mata de galeria e as ondas contínuas das dificuldades geraram relações indestrutíveis entre todos.
Pode dizer-se, sem sofismas, que se trata igualmente de um libelo contra a má preparação das tropas, (a lembrar um pouco António de Cértima, na sua Epopeia Maldita, a propósito das forças portuguesas em Moçambique, durante a I Grande Guerra) o seu quase total desconhecimento sobre a Guiné no tocante a história, usos e costumes, lealdades e insurreições, terrenos e actuação do IN. Um libelo
contra o vergonhoso abandono de milhares de milícias locais que combateram ao lado das tropas portuguesas. Um libelo contra certos pormenores da descolonização. Apressada da parte dos negociadores portugueses quando “os negociadores guineenses pediram às autoridades portuguesas para ficarem transitoriamente na Guiné, podiam estar deslumbrados pela independência, mas não tinham ilusões de que não dispunham de estruturas administrativas capazes” (p.510).
Livro escrito com paixão, lágrimas, sangue e saudade, não podia deixar de ser um livro comovente em muitas das suas páginas, nos diálogos travados, nos gestos naturais, sem encenações, e pungente noutras situações. Quem andou pela Guiné lê-o com prazer e encanto. Em cada página perpassam cores em delírio, em todos os tons, os incontornáveis odores, as falas calorosas e os mistérios infindáveis das matas, cujos rumores fixa em belas imagens e plasma numa linguagem perfeita, adequada, assumindo, aqui e ali, o tom poético. Nas suas páginas nada há de romanesco, é tudo de conhecimento próprio. O autor dá-se ao trabalho de voltar a Mafra, às casernas e corredores húmidos, aos locais de instrução, às marchas forçadas e esforçadas. Volta à difícil recruta. Mas não só, vai também aos Arrifes, Açores, onde dera duas recrutas antes da mobilização. E regressa, em 2010, carregado de memórias no baú da saudade, mais uma vez à Guiné, onde estivera, em 1990 e 1991. Este chão ficou-lhe na alma. Para sempre, como de resto reconhece. Não será o único caso, mas é aquele que, apesar de tudo, faz uma declaração, em voz alta, de amizade, amor e reconciliação.
Mário Beja Santos queria visitar especialmente os lugares onde combatera entre 1968-1970 (Missirá, Finete, Mato de Cão e Canturé). Tendo transmitido esse desejo a alguns dos seus audazes soldados em Lisboa, logo estes o desencorajaram, dizendo que não fosse. Temiam o choque pela destruição e pela pobreza que iria encontrar. Não desistiu. Precisava de ir para um último adeus, visitar gentes e amigos do Cuor, um território que o fascinou desde sempre. É um amor “pessoal e intransmissível”, confessa (p.470). Houve um tempo de guerra; cristão, chegara o tempo da definitiva reconciliação, a descoberta e contacto com os que um dia lhe montaram emboscadas. Pretendia fazer a memória destes lugares. E em nenhum deles houve azedume algum, “era só um dever de memória”, escreve Beja Santos (p. 4678). Os antigos guerrilheiros “guardavam a serenidade das contas feitas, nada de fantasmas nem de rancores” (p.469).
Visita lugares míticos, encontra-se com o antigo comandante de Madina, Mamadu Jaquité, hoje coronel, que deixava bilhetinhos em Canturé, provocando-o e ameaçando-o de morte, mas de quem na visita recebeu só provas de afabilidade. O que também sucedia em muitas tabancas onde eram organizadas grandes recepções, como se de familiar se tratasse. Braços estendiam-se francos e sucediam-se abraços fortes e sentidos. Umas vezes, brotavam lágrimas de fogo, outras, conseguia retê-las. Havia mensagens de boas-vindas, discursos de congratulação e louvor, que o deixavam ainda mais fraternal e comovido. Os terreiros enchiam-se para ver e cumprimentar “o branco de Missirá”. Vai recebendo também notícias da morte de alguns subordinados. São murros no estômago do comandante de Missirá e Finete. Em algumas aldeias vai com o povo â mesquita agradecer a Deus os dias da peregrinação, orar pelos mortos e pelo melhor futuro de todos. É inegável que é um livro cheio de humanidade e ternura. Depois, enchem-lhe as mãos das maiores diversas solicitações: dinheiro, vistos para Portugal, emprego, bolsas de estudo, livros, tantas coisas, as mais inverosímeis, como se fosse um príncipe rico e tivesse poder em Lisboa. E isso fazia-o sofrer porque, sabedor da sua impossibilidade, não tinha a varinha do condão nem o poder de multiplicar os indispensáveis benefícios. Os ex-milícias chegam a pedir-lhe pensões de guerra...
Sofre choques brutais. Quando percorre Bambadinca, cujo quartel encontra destruído, bebe o maior “cálice de fel”. A bela rampa de acesso ao antigo quartel sobe-a e desce-a várias vezes. O coração parece querer rebentar-lhe contra o muro do peito. Vê outros destroços da antiga Bambadinca que se lhe apresenta agónica, “tudo lhe parece uma povoação fantasma”. Nem o porto escapou ao abandono. E chora mais uma vez. Tangomau “não compreende esta fúria destruidora”. De visita ao quartel, na companhia do comandante, tenente-coronel, Seco Mané, alcançam o sítio da messe e é aqui que “apanha um grande safanão”, “ali se quebrou o ânimo, o Tangomau soluça alto e bom som, desabam-se emoções nem ele próprio supusera tal transformação (p.452). O anfitrião pede-lhe para não chorar, nos olhos dos seus soldados há comiseração, “percorre os espaços com o olhar enlouquecido, ocorrem-lhe imagens, sente cheiros, pressente vultos, vai resfolegando e só acalma à saída”. E recupera, quando, a caminho do mercado, teve uma surpresa: “Sadjo avança para ele em majestade, os olhos estampados de alegria”, abraçam-se, Sadjo mostra-lhe os ferimentos que sofreu na operação “Tigre Vadio”. E Beja Santos, reportando-se a este momento e a outros de idêntico calor humano e de boa lembrança, declara que já valera a pena ter regressado ao chão do Cuor, ao chão guinéu. Teve, ao longo da viagem, horas inesquecíveis que apagaram desilusões, dificuldades (deslocou-se nos transportes habituais, toca-toca, candonga e motoreta, cada qual o pior, vive peripécias, é tocado pelo cansaço e come banana-maçã com bolacha pelas tabernas e aí dormita), mas o que viveu de positivo no campo da amizade e dos afectos bastou para encher-lhe o coração de uma indescritível satisfação.
Esta peregrinação (capítulos “Lesto Lesto” e “Gandaressa”) a locais concretos está plasmada de emoções que pingam forte sobre o avivar da memória e acontecimentos que ocorreram, nos dois anos que permaneceu na zona, e que ele revive, na serenidade dos dias, no grande capítulo Xaianga. Onde fala dos dias difíceis, do sangue derramado, das operações conseguidas e das operações falhadas; do dia a dia na construção de Missirá e das embocadas montadas e sofridas. Mas também do amor, quando recorda o seu casamento na catedral de Bissau, com a presença inesperada e discreta da mãe e de uma das irmãs de Amílcar Cabral, que, muito solícitas, ajudaram a noiva a aconchegar um ramo de orquídeas no altar de Nossa Senhora. Por Bissau, cidade que já achou descaracterizada em 1990 e 1991 e cuja degradação se acentua, deambula, aproveitando as viagens ao QG, descrevendo paisagens, gentes, sonhos, cores, cheiros, locais, movimento, que também é o lúdico e lúcido recheio deste livro que, no seu todo, mostra na pequenez da sua quadrícula, a dimensão perigosa e mortífera da guerra nesta ex-colónia. Constitui-se assim um inegável contributo e muita valia para a sua cabal história.
Só uma mágoa lhe restou desta notável e arrojada viagem-peregrinação aos locais da guerra, (matas e bolanhas) onde nem sequer falta o registo de aspectos de cariz etnográfico: o tempo não chegou para visitar todos os lugares que gostaria de rever e os amigos recusam-se a acreditar que seja o derradeiro adeus, que Beja Santos fez querer que fosse. A despedida, trocando as voltas ao autor, uma partida dos ex-milícias, foi em local mítico, Mato de Cão, para onde corriam constantemente, de modo a permitirem a navegação no rio Geba…Houve rios de comoções e emoções, quentes lágrimas e fortes abraços.
Um livro que se lê de fio a pavio, de alma em ânsias, um testemunho que comove e empolga, páginas que desnudam também a alma lusitana, na universalidade das emoções e do esquecimento de factos que lhe foram adversos, um apelo muito profundo a todos quantos, um dia, andaram de armas na mão, para uma reconciliação consigo próprios e com os outros que lutaram em trincheiras opostas. Afinal, uma grande e ousada prova de amor que a história jamais esquecerá.
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Notas de CV:
(*) Armor Pires Mota foi Alf Mil na CCAV 488, Mansabá, ilha do Como, Bissorã e Jumbembem, nos anos de 1963 a 1965, autor de inúmeros livros entre os quais: Guiné, Sol e Sangue, Tarrafo, Bagabaga, Cabo Donato Pastor de Raparigas, A Cubana que Dançava Flamenco, Estranha Noiva de Guerra.
Vd. último poste da série de 24 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10428: Notas de leitura (409): "Comandante Hussi", de Jorge Araújo (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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