1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (13)
O Bóia
Já lá ia mais de um ano de estadia na província.
A farda que usávamos era amarela, começando a aparecer
tropa com roupa de diferente cor, um verde
azeitona. Diziam que era feita de tecido melhor e que se adaptava
mais ao clima tropical, podia ser verdade, mas estes novos
militares logo foram
baptizados com o nome de “Periquitos”. E alguns desses militares podiam ser pessoas com bastante
senso nas palavras e com escola superior, mas isso não
interessava nada, tudo o que pudessem dizer, não valia e não
tinha qualquer senso, pois vinha da boca de um “Periquito”.
O Cifra tinha quase a certeza, mas podia estar enganado, de quem baptizou estes novos militares, foi o cabo “Bóia”,
pois um dia quando chegou ao aquartelamento um Unimog
carregado com alguns tropas vestidos com a farda
verde azeitona, quando esses militares saltaram para o chão, o
cabo Bóia, disse: Oh raio, parecem periquitos!
O nome pegou.
O cabo Bóia, em Portugal, era da região do Alentejo, falava
devagar e com um sotaque bastante popular, que só ele sabia,
era difícil de imitar. O seu vocabulário tinha um conjunto de
palavras que só ele e mais uns quantos entendiam, e era conhecido por esse nome porque sempre que se aproximava a hora
da refeição, dizia: Hei, compadres, está na hora da bóia.
A bóia, na sua linguagem, era a comida.
Tinha um grande bigode, retorcido nas pontas, era tropa dos
velhos, pois pertencia à tal companhia onde o capitão batia nos
soldados e furriéis.
O Curvas, soldado atirador, alto e refilão, um dia na altura
da refeição do meio dia, pega no recipiente onde vinha
a comida para a mesa, que parecia uma bacia em alumínio,
diz a respeito do tal capitão: Ca granda filho da puta! Se fosse comigo, enfiava-lhe com
esta bacia cheia de merda nos cornos! Cabrão!
Era assim o homem. Quando se lhe desprendia a língua, era
melhor fugirem!.
Para nossa salvação andava sempre por perto o Trinta e Seis,
soldado telegrafista, baixo e forte na estatura, que logo lhe
disse:
- Cala-te homem de Deus, e tem respeito, pois isto é uma
mesa onde todos comem.
Mas adiante, vamos à história. Havia uma pequena ponte, um
pouco distante do aquartelamento, quem ia para o interior, creio
que na estrada que ia dar à povoação de Cutia, que era guardada
durante o dia por uma secção. Na dita altura das
chuvas formava-se um grande pântano a que os militares
chamavam bolanha sul, com alguns quilómetros de extensão, mas
onde se transitava pela estrada de terra, que era um pouco mais
alta, onde a água tinha pouca ou quase nenhuma altura, e quem conhecia o caminho ia e vinha sem qualquer
problema. A zona onde estava localizada a ponte era seca.
Estes militares levavam comida para todo o dia, e para lá
iam de Unimog, onde tinham uma espécie de pequena fortaleza
montada, que era um abrigo feito com sacos de terra, coberto
com uma estrutura de alguns troncos de palmeira e algumas
folhas de zinco, que por sua vez estavam também cobertos de
terra. Ali passavam o dia, e entre outras coisas, identificavam
quem passava na ponte. Tinham aparelhagem de rádio e estavam em
contacto, se fosse caso disso, com o aquartelamento.
Não muito distante havia uma pequena aldeia de naturais que
trabalhavam nas terras pantanosas, ou seja a bolanha do arroz e
criavam alguns animais, eram pessoas pacatas, pelo menos
pareciam, não havia pessoas novas, eram só velhos e crianças,
mesmo crianças. Havia até alguns militares que queriam fazer
esta segurança à ponte, pois no regresso traziam aguardente de
palma, que compravam, ou talvez não, na referida aldeia.
O Bóia foi destacado, nesse dia, para ir com outros
militares prestar segurança à referida ponte.
Tudo normal.
Chegam, inspeccionam o local, normalmente deixavam um sinal
em certos pontos estratégicos para verem se alguém tinha usado
a ponte ou a pequena fortaleza, durante a noite.
Nesse dia, sim, tinham usado.
Havia sinal de pegadas, de sandálias que os militares
conheciam, pois faziam parte da farda dos guerrilheiros, logo muito conhecidas.
Ficam com cuidado redobrado, comunicam ao aquartelamento o
sucedido e recebem ordens de se manterem de olhos bem abertos, que alguma tropa iria já para lá, para reforçar a zona da
ponte e talvez fazer uma patrulha mais aprofundada na zona.
O Bóia, com o cigarro no canto da boca, com o seu ar
bonacheirão, com a mão direita, pois a esquerda segurava a G3,
tira o cigarro da boca, molha os dedos com saliva, coloca de
novo o cigarro na boca e retorcendo o seu grande bigode, diz:
- Deixa lá ver o que estes “compadres” andaram por aqui a
fazer durante a noite?
Enquanto os militares se encontravam quase todos juntos
a discutir a situação, o Bóia com passo lento mas firme, começa
a atravessar a ponte de G3 na mão, pronta a disparar, quase
com se andasse à caça aos coelhos, em alguma herdade lá no seu Alentejo, quando mais ou menos ao meio, mas mais perto do final,
sente qualquer coisa a tocar-lhe a perna e a prender-lhe o
movimento.
O pobre do Bóia, não viu mais nada. Sem querer accionou um engenho explosivo que lhe destruíu
quase todo o corpo.
Morreu, tendo o seu corpo sido recolhido aos bocados. Mais
dois soldados foram atingidos com alguns estilhaços. Quando chegaram os
reforços, que aumentaram o andamento ao ouvirem o rebentamento
do engenho explosivo, depararam com toda esta cena, onde parte
dos soldados choravam e tentavam recolher os restos do corpo da
pessoa a quem carinhosamente chamavam Bóia.
Quando chegaram ao aquartelamento, com o resto do corpo do
Bóia, o Cifra tinha acabado de decifrar uma mensagem dirigida à companhia a que pertencia o defunto
Bóia, comunicando que se deviam apresentar num dos próximos dois dias no comando
territorial da provincia, na capital, a fim de embarcarem para
Portugal, pois tinham completado o tempo de serviço, que na altura eram dois anos. Esperariam pela chegada da força militar que os vinha substituir
naquele cenário de guerra, que tinha vindo no mesmo barco que
os havia de levar de regresso a Portugal, levando o defunto Bóia dentro de um caixão.
Era esta a guerra onde estávamos envolvidos, onde não havia
regras de sobrevivência, o militar estava exposto até ao último
minuto da sua estadia, pois era substituído por outra força
militar, em pleno cenário de guerra, não tinha nenhuma chance,
pois mesmo que houvesse leis, não havia qualquer meios na
capital da província de se restabelecer, uns dias antes de
regressar à Metropole, como então se dizia.
Alguns apresentavam-se à família, no cais da Alcântara em
Lisboa, com a roupa rota e suja, as botas também rotas, com o
cabelo comprido, com grandes barbas e bigodes, os dentes negros,
mas mesmo negros, vários insectos minúsculos em determinadas
zonas do corpo, cara de selvagens, falando pouco, desconfiados,
deprimidos, olhando sempre para o chão, algumas encurrilhas na
testa, em sinal e na expectativa do pior, não queriam que lhes
tocassem no corpo, admirados por verem tantas pessoas trajando
civilmente, pensando que ainda estavam debaixo de um abrigo, que os guerrilheiros iam atacar, que o arroz que iam comer
lhes fazia os intestinos andarem parados por dias, com dores
constantes na região do estômago e que só de facto algum
excesso de álcool, entre outras coisas, lhes fazia ter uma vida
considerada “normal”.
A alguns, todos estes sintomas não mais sairam do seu corpo
e passado quase cinquenta anos, os que ainda estão vivos, que
são homens com um “H” muito grande, apresentam por vezes todo
este aspecto, também por vezes alteram um pouco a sua voz de
revolta, e algumas pessoas, das novas gerações, onde se incluem
muitos políticos, ao verem-nos, viram a cara, riem-se baixinho,
e dizem:
- Deixa lá esse desgraçado falar, pois aquilo é só stress e
saudades da guerra.
Oxalá que o Curvas, alto refilão, ainda esteja vivo, mas que
não leia este texto, porque depois de ouvir todas estas
considerações do amigo e companheiro Cifra, é capaz de vir por
aí e matar tudo e todos, como ele dizia, pois era a pessoa que
mais bem preparada estava, naquele tempo, para enfrentar aquele
conflito, pelo menos na linguagem.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10438: Do Ninho D'Águia até África (12): O Madragoa (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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