domingo, 16 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25646: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (22): "Engenharia e tatuagem"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Engenharia e tatuagem

Ele sempre sonhara ser engenheiro, mas desistiu na quarta classe porque os pais não tinham qualquer hipótese de o mandarem estudar. Eram catorze irmãos e o único que chegou a alguma posição de jeito, foi um dos do meio, que foi para padre. O pároco da freguesia engraçara com ele e enfiou-o num seminário do Porto.

O pior foi quando rebentou essa merda da pedofilia, ele engraçara com um catraio, meteu-o na sacristia… e não vale a pena desenvolver a temática. Foi um enorme desgosto para a mãe que pouco tempo depois morreu.

Esta conversa era entre ele, o que sonhara ser engenheiro, e um amigo que vivia num quarto alugado, isto é, num quarto alugado pela Segurança Social, na mesma rua onde se situava o café onde esta conversa se desenrolava. O da Segurança Social estava em fase de recuperação, uma espécie de mestrado da sua longa carreira de marginal.

O que sonhara ser engenheiro e desistira na quarta classe estava bêbado que nem um cacho. Tinha uma gabardine à detetive, tipo Colombo, e uma prisca ao canto da boca. E dizia, em sentido figurado e um tanto filosófico que, ultimamente, era cada bebedeira, cada chumbo, cada carraspana, que quando se atirava para cima da cama, não adormecia… não adormecia… desmaiava!

O amigo que vivia no quarto alugado pela Segurança Social e que parecia não ter ponta de vinho, muito provavelmente por falta de guita e não de apetite, dava ares de quem não percebia patavina do que se estava a passar, e insistia no grande fenómeno que é, hoje em dia, a tatuage. A tatuage é uma expressão de liberdade, uma forma de intervir numa sociedade adormecida, trazendo à superfície de cada corpo a sua própria identidade e individualidade, os seus afetos, os seus sonhos, as suas desilusões, as suas memórias, aquilo que está preso dentro de cada um pelas grilhetas da sociedade. E mostrava o braço direito que mais parecia um sarcófago egípcio.

O seu interlocutor, se calhar ainda embevecido com as sonhadas linhas programáticas, mais positivas e concretas da engenharia, na cabeça, mas sobretudo com adequados níveis de tintol, dizia que a tatuage era uma cagada. Só cabeças ocas escrevem nos braços, nas pernas, nas costas, a merda que lhes vai lá dentro.

Ninguém de bom senso desenha na pele o que quer que seja. Precisavam era de uns copos, a grande vitamina da vida, para entenderem o mundo e a realidade. Nada melhor do que uns copos para estimular a criatividade, abrir a janela da liberdade e elevar a frustração ao nível do altar.

A conversa já ia longa, suficientemente longa para quase resvalar para um diálogo de conflito. Palavra puxa palavra, a tua filosofia é de esfregão, a tua é uma filosofia de carambola, o que te vale é eu ser um homem da dialética, o que te vale é eu ser um homem de princípios, o que te vale é eu ser um homem para quem a cultura não é um amontoado de peidos mais ou menos sonoros, o que te vale é eu ser um homem que chama a vida pelo nome, o que te vale é eu ser um homem que agarra a vida pelos cornos e pensa com a cabeça bem apoiada, ainda que seja nas pedras da rua. De outra forma já te tinha partido o focinho.

Ai sim? Anda lá para fora que eu te explico, disse o subaluga da Segurança Social. E fez o gesto de sair para a rua. Se tu não entendes puto dos fenómenos da vida, se não entendes a arte da tatuage como manifestação de massas, fenómeno universal traduzindo a mais popular das expressões artísticas da atualidade contemporânea, o máximo impulso da fuga da prisão do ser humano, é porque és burro. E contra burros não pode haver argumentos.

Valeu como vacina contra a agressiva evolução da conversa, a potente manápula de um dos utentes do café, velho cliente de quase dois metros de altura, sempre afável e pacífico, que agarrou um e outro pela gola do casaco e os sentou, como meninos, direitinhos à mesa. Nem mais um pio. Pensamos que, a seguir, não houve, propriamente, acordo quanto à filosofia de cada um. O que houve foi uma abordagem, pelos dois, cremos que paga pelo engenheiro, ao sentido comunitário da vida, através de uma bebedeira comum que obrigou o amigo Zé a pô-los, muito diplomaticamente no passeio, às duas da matina.
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Nota do editor

Último post da série de 9 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25623: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (21): "Na altura própria"

3 comentários:

Eduardo Estrela disse...

Pois eu sou como o quase engenheiro que só não o foi por ter desistido na quarta classe.
Não consigo entender essa coisa da tatuagem.
Diverti-me a ler o conto e a imaginar as duas personagens.
Obrigado pela partilha Dr. Adão Cruz
Abraço
Eduardo Estrela

Valdemar Silva disse...

Esta é das boas, Dr. Adão Cruz.

De tatuagens, lembro-me sempre do Augusto e da tatuagem de "Amor de Maria" feita na guerra em Angola.
Mas, quando chegou aquela Maria do braço já tinha outro amor.
A sorte foi que Marias há muitas e sempre dava para dizer 'tás a ver, já estava a pensar em ti'.

Valdemar Queiroz

Hélder Valério disse...

Pois é, amigo Adão, sempre que estamos atentos à "fauna humana" que abunda por aí, principalmente nos meios urbanos, encontramos casos dignos de registo.
E de estudo.
Esse crescendo de desentendimentos iria, certamente, originar mais alguma rixa e sem se prever como poderia terminar, dadas as tendências que hoje em dia vamos tomando conhecimento, em que "por dá cá aquela palha", não faz "tremer toda a Ribeira", mas parte-se para ações de violência, não raras vezes mortal.

Não sei se vem a propósito mas isso dos "desentendimentos" fez-me lembrar uma cena duma revista, já lá vão bastantes anos, em que dois fulanos estavam sempre a discutir, e a desconversar, por tudo e por nada, e em certa altura um deles diz ao outro, como réplica:
"ai sim, tem graça"!
E o outro como a magicar naquela diatribe, entra numa mnemónica..
"tem graça? ...hum, Senhora da Graça, Senhor dos Passos;
Senhor dos Passos..., Paços do Conselho:
Passos do Conselho... Conselho de Guerra;
Conselho de Guerra.... Guerra Junqueiro:;
Junqueiro... Junqueira;
Junqueira.... Belém;
Belém... Alcântara;
Alcântara... Alcântara Terra, Alcântara Mar;
Mar... peixe;
Peixe... pescada;
Pescada... do alto;
Do alto... da serra;
Da serra... Serra da Estrela;
Estrela... do céu;
Céu... azul;
Azul... tinta;
Tinta... de óleo;
Óleo... de linhaça;
Linhaça.... papas de linhaça;
Papas de linhaça... papas de leite;
Papas de leite... o menino bebe o leite;
O leite vem da vaca... o marido da vaca é boi!
Ai espera aí que o gaijo está a chamar-me cabrão!"

Com se vê, quando se quer, consegue-se sempre "atingir o objetivo"!

Hélder Sousa