O cabo Abel nunca tinha estado em Bissau.
O batalhão a que pertencia chegou a Bissau no paquete que os transportava desde Lisboa, mas a sua companhia saiu do paquete sem pisar terra, passou, diretamente, para batelões rebocados e, assim, foram rio acima,deixando, ainda, a bordo as restantes companhias do batalhão. (…)
Nunca tinha saído de junto da companhia, nos vários aquartelamentos por onde tinha peregrinado. Nem sequer uns dias de férias em Bissau. Tinha-se afeiçoado ao periquito que tinha preso à barra da cama. (…)
Agora, passados vinte e três meses, em Bissau,à espera de embarcar para a Metrópole, também já com a cara verde-amarela azeitona que o impressionara nos velhinhos no dia da chegada, passeava o seu espanto pelo espaço urbano de Bissau. Pela primeira vez!
Em Bissau a companhia recebia, por vezes, instruções para fazer cerco aos bairros negros de Bissau. O bairro era cercado pelas quatro horas da manhã, com ordem para não deixarem sair ninguém. Completo o cerco, grupos de militares inspecionavam casa a casa, pedindo os documentos.
(...) Era já manhã. O pessoal que fazia o cerco sentava-se no chão, com a G-3 entalada entre os joelhos ou em cima das coxas, em atitude descontraída, que, em nada, se assemelhava às situações de tensão que, em circunstâncias idênticas, tinham sido vividas, em emboscadas ou cercos no interior da Guiné,
De entre as casas, caminhando por uma vereda que passava ao pé do grupo de militares em que estava o cabo Abel, surgiu uma rapariga negra, que vestia uma bata impecavelmente branca,trazendo consigo os livros escolares, agarrados contra o peito. O cabo Abel levantou-se e, com a G-3 a tiracolo, segurou o cigarro com a mão esquerda e com a direita barrou-lhe o caminho:
−Bajuda, bô cá pude passa!
A moça, que teria catorze ou quinze anos, parou por um momento, encarou o cabo Abel nos olhos e perguntou-lhe:
− Porque você não fala comigo português direito ?
E, contornando-o, continuou o seu caminho para Bissau. O cabo, apalermado, ficou com o braço levantado, a vê-la passar.
Fonte: Excertos de Alberto Branquinho - Cambança final: Guiné, guerra colonial: contos. Vírgula, Lisboa, 2013, pp. 141/43
(Título, excertos, revisão / fixação de texto, parênteses curvos, para efeitos de publicação deste poste, na série "Humor de caserna": LG) (Com a devida vénia ao autor e à editora...)
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Nota do editor:
5 comentários:
Calhando, a bajuda falou assim por perceber que o Abel não estava a falar crioulo correctamente.
Bajuda, bo ka pudi pasa. Assim já percebia
Em crioulo da Guiné em nenhuma palavra entra a letra C que é substituída por K, excepto nas palavras com ch, bitchu=mosquito, assim como as vogais a,o,e não têm acento por serem vogais abertas, o único a acento é o til para a pronuncia nh como p. ex. araña .
Valdemar Queiroz
Na minha leitura, ela falou assim ao Abel, com o ar de superioridade de quem já anda na escola, sabe português "direito" e não supporta o "crioulo" atamancado... Um grande lição!
Luís
Vim agora ao blogue e vi este texto. Agradeço.
Já deves ter este livro há uns dez anos. Creio que é de 2013.
Valdemar
Na Guiné, do Cacheu (já depois da "peluda") até Nova Lamego ou Canquelifá, de Bafatá até Catió ou Cabedu, ouvi diferentes entoações do crioulo. Pequenas, mas notórias. Às vezes variando até com a raça do falante. Alías é o mesmo em Cabo Verde (mais notório nas ilhas mais afastadas).
Quanto à ortografia do crioulo guineense, não sei se existem regras (oficiais). Há? Não me importou saber.
Sei que em Cabo Verde introduziram o "K". Eu não sei, mas eles lá saberão porquê. Nunca o perguntei aos amigos caboverdeanos (alguns ex-governantes). Por outro lado, Valdemar, em crioulo falado, não se nota a diferença na pronúncia de um "ká" para um "cá". Com acento ou sem acento.
Um grande abraço, com estima e consideração.
Alberto Branquinho
Ok, caro Branquinho.
Não passou duma brincadeira minha igual à da bajuda.
Mas, uma coisa é certa, no crioulo da Guiné pode haver várias palavras para a mesma "coisa" nos falantes variando de local, não tanto como no crioulo de Cabo Verde que varia de ilha para ilha, e que é muito diferente do crioulo da Guiné.
Também o não se notar entre o "ká" ou "cá" com ou sem acento, será como por cá com o betacismo, o 'bocê num passa' é assim ouvido e não faz diferença com 'você não passa", quer dizer a mesma coisa e não tem nenhuma importância especial.
Abraço, saúde da boa e continuação de boas destas histórias do nosso tempo na guerra da Guiné.
Valdemar Queiroz
Sim, Alberto, tenho um exemplar autografado do "Cambança Final" que diz:
"Para o Grande Chefe da Tabanca Grande, Luís Graça, com um abraço do Alberto Branquinho. 8jun2013. Monte Real".
De vez em quando gosto de te reler... Força. Luís
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