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Em mensagem do dia 23 de Setembro de 2014, o nosso camarada António
Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), enviou-nos mais um Pedaço do seu tempo.
PEDAÇOS DE UM TEMPO
10 - Quando a manta passou a servir de colchão
Quando fomos para Cobumba, foram-nos distribuídos colchões pneumáticos. Eram compostos por cinco partes, mais a almofada, cada uma autónoma no modo de conservar o ar e de serem cheias.
Passadas algumas semanas uma dessas partes do meu colchão esvaziou, por mais que soprasse para a encher, passados poucos minutos voltava a estar vazia.
Durante algum tempo lá fui dormindo mesmo assim, de esguelha, como os sonos eram sempre de tempo reduzido, tínhamos de fazer reforço todas as noites, e de vez enquanto ainda éramos acordados, ainda que estivéssemos sempre à espera… só nunca sabíamos a que horas, mas lá fui aguentando.
Passadas umas semanas mais uma parte deixou também de conservar o ar, então só tive uma solução que foi esvaziar as outras que ainda se mantinham boas e ficar só com a almofada, que se manteve cheia até ao fim da nossa permanência naquele local.
Saída do abrigo, local que servia de sala de refeições, tinha acabado de almoçar, a mesa foi construída pelo meu camarada condutor Cruz.
A partir dessa altura, a maior parte do tempo que lá estivemos, passei a dormir com uma manta dobrada a servir de colchão, nada agradável, a cama tinha sido feita por mim com tábuas que ia aproveitando de caixas que tinham servido para levar bacalhau e outras coisas, embora eu não tivesse grande jeito para carpinteiro, mas a necessidade a isso obrigou.
No início, ainda dormíamos no chão, com o chegar da época das chuvas, em abrigos subterrâneos em que a cobertura era feita de troncos de palmeiras cobertos de terra, a água começou a infiltrar-se fizemos uma cobertura de capim, cada um teve de desenrascar o melhor que pôde.
O tempo passou mas foi uma das muitas situações que não é fácil esquecer.
Para quem estava privado de quase tudo que necessitava, naquele buraco de difícil acesso, a falta de colchão era apenas mais uma…
António Eduardo Ferreira
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13479: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (9): Mesmo lá (tive sorte)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Eduardo, disseste tudo, ou melhor, o essencial: aquela guerra foi um exemplo da arte lusitana do desenrascanço... Desde o início, quando fomos apanhados de calças na mão, e o Salazar nos manda "para Angola, rapidamente e em força"...
Luís Graça
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desenrascanço | s. m.
de·sen·ras·can·ço
(desenrascar + -anço)
substantivo masculino
[Informal] Capacidade de solucionar problemas ou resolver dificuldades rapidamente e sem grandes meios.
"desenrascanço", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/desenrascan%C3%A7o [consultado em 26-09-2014].
Na lista das “10 palavras estrangeiras mais fixes ["cooliest"] que a língua inglesa devia ter”, vem em nº 1 o vocábulo português “desenrascanço”.
O sítio é norte-americano e o artigo (de 13 de abril de 2009) tem quase 3 milhões de visualizações...
“Desenrascanço" (sem cedilha...) a seria a arte de encontrar a solução para um problema no último minuto, sem planeamento e sem meios...explica o "site": o exemplo mais próximo seria a célebre personagem da série de televisão MacGyver.
É um traço da "cultura" portuguesa e terá sido a chave para o segredp da sua sobrevivência ao longo de séculos... “Enquanto a maioria de nós [norte-americanos] crescemos sob o lema dos escuteiros 'sempre prontos', os portugueses fazem exactamente o contrário"... Em suma, há sempre uma solução de última hora para resolver um problema...
Moral da história: O futuri ? Logo se vê...Viva a arte lusitana do desenrascanço!... Andamos a desenrascarmp-nos há mil anos!
http://www.cracked.com/article_17251_the-10-coolest-foreign-words-english-language-needs.html
Alguns exemplos do "top ten" das palavras maia fixes que o inglês não tem e o que os americanos gostariam de ter:
“Bakku-shan” > palavra usada pelos japoneses quando se querem referir a uma rapariga bonita, vista de costas;
“Nunchi” > usada pelos coreanos para falar de alguém que fala sempre do assunto errado, no sitio eraerdo, na altura errada, com a pessoa errada; em suma, o topo desbocado ou inconveniente;
“Tingo” > uma expressão usada na Ilha da Páscoa, Chile, e significa pedir emprestado a um amigo até o deixar de tanga, sem nada...
http://www.cracked.com/article_17251_the-10-coolest-foreign-words-english-language-needs.html
Alguns exemplos do nosso desenrascanço na Guiné (lista para completar pelos leitores, é meramente exemplificativa):
(i) não tínhamos cão, caçávamos com gato;
(ii) não tínhamos inseticidas, matavámos mosquitos com a bazuca 8.9;
(iii) não havia peças sobresselentes para o jipe do comandante, canibalizava-se um unimogue sinistrado;
(iv) não havia "bunkers" à prova de canhão sem recuo, fazíamos buracos com tetos de cibe;
(v) não havia gente para a guerra, alistávamos putos de 16 anos e velhos de 40;
(vi) as viaturas atolavam-se, e não havia reboques ? Guincho de GMC com elas, ou vai ou racha...
(vii) com um frango, o cozinheiro faz massa com "estilhaços de frango";
(vii) não há friogorífico na tabanca em autiodefesa onde estás destacado com a tua secção, comes uma lata de fiambre dinamarquês de 5 kg num dia (devia durar duas semanas, para ti e para o soldado o de transmissões, que os teus soldados fulas não comem carne de porco e são desarranchados)...
etc., etc.
... E a lista é infindável!
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