Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > Abril de 2006 > O Xico Allen e a sua filha, Inês, observendo um abrigo em ruínas do antigo aquartelamento das NT. Ele esteve por aqui, com os seus camaradas da CCAÇ 3566 - Os Metralhas (1972/74).
Foto: © A. Marques Lopes (2006)
Enfim, esta foi uma agradável surpresa que o Xico Allen nos fez: em primeiro lugar, ao seu companheiro de viagem, o Marques Lopes; e depois a nós, membros desta tertúlia.
Quando, em Abril de 2006, ele voltou à Guiné, de jipe, e revisitou Empada, pela enésima vez, mas desta vez com a sua filha Inês e o Marques Lopes, o Xico, que é uma homem de acção, mostrou uma outra face que, se calhar, nem a filha conhecia de todo, a de poeta popular, nortenho, da Ribeira, ao rapar de uma folha de papel onde tinha escrito estes versos no seu tempo de metralha, em Empada, mesmo no local do crime... Com a devida autorização, vamos aqui divulgá-lo em primeira mão (embora já tenha circulkado pela tertúlia)...
Já pedi ao Zé Teixeira, seu vizinho de Matosinhos, para dar os meus parabéns ao Xico Allen, por esta amostra do Cancioneiro de Empada... E fiz-lhe um pedido: "E se ele tiver mais, que nos mande (por teu intermédio ou do Marques Lpes ou da Zélia, mãe da Inês, já que ele insiste em não ter endereço de e-mail e não querer ouvir falar em computadores)...
Este pedido é, de resto, extensivo, a todos os amigos e cmaradas: "De facto, há para aí muito poeta escondido nos abrigos do nosso tempo... Esse material poético é precioso: ele diz mais do que muita fotografia... Vê se apanhas mais coisas destas... Já leste os versos, que o A. Marques Lopes mandou para a tertúlia ? Vou publicar, para chegar ao grande público"...
Depois do Cancioneiro de Mansoa (1), de Canjadude (2) e de Bafatá (3), temos agora o de Empada, sem esquecer o de Gandembel (4). Bem hajam os poetsas da nossa terra. (LG)
I
Antes de chegar à Guiné
Recebi uma medalha
Hoje ainda a conservo
Com o nome de METRALHA
II
Viajei de avião
Rumo à cidade de Bissau
Às primeiras impressões
Não me pareceu muito mau
III
Depois de lá chegar
Segui pr’ó Cumeré
Fui conhecer o mato
Para saber como é
IV
Quinze dias durou o estágio
P’rá condução na picada
Depois fui obrigado
A juntar-me à macacada
V
Quando cheguei a Bolama
Muita fome lá passei
De fome julguei morrer
Mas desta ainda escapei
VI
Bolama ficou para trás
E rumei para Empada
Lá ia ser melhor
Era o que tudo pensava
VII
Empada estava à vista
Que era o nosso destino
Andei pela mão dos grandes
Como se fosse um menino
VIII
De noite cheguei a Empada
Estava tudo iluminado
De manhã fui passear
Fiquei decepcionado
IX
Comecei a comer melhor
Depois que cá cheguei
Mas foi à minha custa
Pois cá me desenrasquei
X
Houve cabritos e cabras
Mortos a tiro e paulada
Que para matar a fome
Não nos custava nada
XI
Neste rol de matança
Também há porcos e leitões
Que para nós mais tarde
São grandes recordações
XII
Nos dias de avionete
Anda tudo em reboliço
Não só esperamos correio
Como presunto e chouriço
XIII
Agora que somos velhos
Esperamos rendição
Porque estamos quase
No fim da comissão
XIV
E o tempo vai passando
Com muita dificuldade
E vivo ansiando
Voltar à minha cidade
XV
Nas noites de Inverno
Mil amarguras passei
E nas horas de reforço
Muita chuva apanhei
XVI
Trovoada e relâmpagos
Iluminavam como o dia
Não desejo que ninguém passe
Aquilo que eu não queria
Xico Allen
Comentário do A. Marques Lopes:
Ainda deu para poemas... trovas à fome que passa, trovas à chuva que cai.
____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1): o esplendor de Portugal
(2) Vd. post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIII: Cancioneiro de Canjadude (CCAÇ 5, Gatos Pretos)
(3) Vd. post de 31 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXV: Cancioneiro da Cavalaria de Bafatá (Radiotelegrafista Tavares) (1): Obras em Piche
(4) Vd. post de 30 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel (Zé Teixeira)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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