sábado, 3 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P838: Cancioneiro de Mansoa (9): A mais alta de todas as traições (Magalhães Ribeiro)

Dos cadernos (1) do Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612 (que esteve em Mansoa por escassos dias, cabendo-lhe a honra de arriar a nossa bandeira em 9 de Setembro de 1974, por ocasião da transferência de soberania do território para o PAIGC) (2):

A mais alta de todas as traições
Muitos africanos foram os nossos melhores amigos,
Tinham orgulho em envergar uma farda portuguesa,
Na instrução eram afincados, cumpridores, e...
No combate davam tudo... até a vida, com nobreza!



Após a revolução dos cravos
Reinava no país a anarquia,
Assaltavam-se as Instituições
O povo em partidos se dividia.

Gente a falar do que não sabia
Ou que não sabia do que falava,
Que ora dizia uma coisa
E passados minutos... negava.

No meio de todas as convulsões
O poder político era restaurado,
Os governos tomavam decisões
Aos repelões, uns p’ra cada lado.

E assim, no meio deste arraial
Foi assinado, se bem me lembro,
O acordo p’ra descolonização
Nesse ano, em 9 de Setembro.

Só para se ter uma leve ideia
Do resultado deste processo
Olhe-se para o drama de Timor,
O grotesco de um insucesso.

Mas se Timor é a cara da moeda,
A coroa anda envergonhada,
Vamos virá-la e falar nela,
Iluminar uma traição abafada.

Uma ignóbil e cobarde traição
A história qu’aqui se vai contar,
Parte do povo ignora, naturalmente,
Outra sabe... mas prefere não falar.

Assim, começando pelo princípio
Na nossa África colonial
Os africanos eram baptizados, e…
Registados... em nome de Portugal.

Portugueses para todos os efeitos,
Eram convertidos ao burgo cristão,
Eram detidos, julgados e punidos
Por leis e juízes da nossa Nação.

Pois era, muitos desses africanos
Nas nossas escolas estudavam,
Dignos de respeito e estima, e…
No nosso meio trabalhavam.

Eram tratados com igualdade
E cumpriam serviço militar,
Prestavam juramento de bandeira
Juravam, também, a Pátria honrar.

Na tropa ostentavam com orgulho
As mesmas insígnias e fardas,
Tornavam-se aprumados, vaidosos,
Seguravam firmes as espingardas.

Combatiam fiéis ao nosso lado,
Ao nosso lado feridos tombaram,
Alguns estropiados p´ra sempre
Outros... a vida sacrificaram.

Em Angola, Moçambique e Guiné
Foram louvados e condecorados,
Foram graduados do Exército
E, como Heróis, foram saudados.

Logo após a descolonização
Estes pretos foram abandonados,
Portugal deixou de os considerar seus
Os deles acusavam: - São renegados!

Votados ao desprezo e à humilhação,
Fria e cruelmente torturados,
Apátridas ao seu novo Partido,
Foram sumariamente executados!

Odiados por um simples facto
Que nunca lhes foi perdoado
Gostarem e lutarem pelos portugas,
Seu único e último... pecado.

Perante a velada indiferença
Dos políticos e das Nações,
É tempo da História julgar
A MAIS ALTA DE TODAS AS TRAIÇÕES.

Haverá porventura gesto humano mais divinal
Q’um homem possa fazer para outro auxiliar,
Que disponibilizar o seu mais supremo bem, a vida?
Jamais deixemos a sua memória alguém desonrar!

RANGER Magalhães Ribeiro - Furriel Mil.º CCS do Batalhão 4612/74 - Mansoa/Guiné

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post anterior, de 31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXI: Cancioneiro de Mansoa (8): a amizade e a camaradagem ou o comando da 38ª

(2) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

Comentário de L.G.:

Temos vindo a publicar o Cancioneiro de Mansoa (que não é mais do que um colectânea de versos do nosso amigo e ex-ranger Eduardo Ribeiro Magalhaes, do Porto), e que valem não pela sua qualidade literária como sobretudo pelo seu interesse documental, para um futuro estudo da ideologia político-militar que permitiu sustentar uma longa guerra de 13 anos em três frentes.

O Eduardo teve a gentileza de me oferecer um exemplar dos seus cadernos e me autorizar a sua reprodução no nosso blogue. Os versos que hoje se publicam não são de leitura pacífica, a começar pelo seu título: podem ser entendidos como um branqueamento ou até uma glorificação da colonização portuguesa... O autor acaba sobretudo por prestar uma homenagem aos combatentes africanos que estiveram do lado das tropas portuguesas (outros dirão: dos colaboraccionistas...).

Em suma, é um texto que não é de mera opinião, tem de ser entendido em nome da liberdade poética ou literária. Naturalmente que ele reflecte a ideologia do espírito de corpo das tropas especiais (rangers, comandos, paras, fuzos...) para quem a mais alta traição é abandonar um camarada no campo de batalha às mãos dos seus inimigos, e faz-se eco da confusão de sentimentos que alguns destes nossas camaradas experimentaram com o fim da guerra colonial e os ajustes de contas pós-revolucionários, nomeadamente na Guiné.

Não é preciso lembrar, em todo o caso, que a nossa caserna é plural e que o Eduardo é membro de pleno direito, da nossa tertúlia. (LG)

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