quarta-feira, 31 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P824: Ainda sobre os fuzilamentos (Jorge Cabral)

Texto do Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71).

Caro amigo, companheiro e camarada
Muito atarefado embora, tenho procurado seguir todas as intervenções produzidas sobre as questões dos Fuzilamentos.

Mantenho a opinião que sempre tive sobre a Guerra Colonial, uma guerra absurda, injusta e cruel. Já assim pensava em Mafra, quando conheci o camarada Tunes (1), por intermédio do amigo comum Resende.

Como já escrevi, as nossas experiências foram diferentes. Cada um de nós conheceu uma pequena parte da Guiné, e o contacto com tropas e populações africanas, que para uns foi diminuto ou inexistente, constituiu para outros o dia a dia, comendo juntos, dormindo lado a lado, partilhando medos comuns, e chorando os mesmos mortos. Será pois natural, que a sensibilidade com que abordamos o problema, reflicta essa realidade. Obviamente que uma coisa é analisar em abstracto, outra é sentir, recordando Homens concretos, com nome, família e sonhos, executados sumariamente.

Que o Exército Colonial cometeu crimes é verdade, o que não fez (nem faz) de nós todos violadores, torturadores ou massacradores. Inerentes ao colonialismo foram a violência, a opressão e a injustiça. De quem o combateu era legítimo esperar outro tipo de comportamentos mais idóneos à construção de uma sociedade mais Justa, Humana e Solidária.

Podemos evidentemente explicar e até procurar entender, mas tal não pode implicar a concordância ou aceitação, justificando porque sempre foi assim e transformando a vingança em regra. O crime não se combate com o crime, e o direito a ser julgado não é um luxo burgês, nem o "olho por olho, dente por dente" bíblico poderá ser tolerado. Trata-se de uma conquista da Humanidade, que deve ser vigente em todo o Mundo. Não existiram bons ou maus Gulagues, nem existem bons ou maus Guantanamos...

Informou o nosso historiador [Leopoldo Amado] que foram mortos cerca de 11.000 homens, e que em 1976 ainda se fuzilavam colaboradores dos Portugueses. Tal número é impressionante, e certamente ninguém de bom senso, admitirá que todos tenham sido criminosos de guerra, torturadores ou pides. Tratou-se de uma matança injustificada e absurda, cujas sequelas perduram até hoje, cá e lá. Também alguns dos meus soldados pereceram e nunca nenhum, durante os vinte e sete meses que os comandei, cometeu qualquer crime de guerra. Eram homens cansados, alguns com mais de quarenta anos, que faziam a guerra por necessidade e rotina, uma tropa fandanga sem heróis.

Quanto aos Comandos Africanos, conheci-os como Pessoas, em Fá Madinga, no período de instrução da Companhia. Nunca os acompanhei em combate e os temas das nossas conversas raramente incidiam sobre a guerra. Ensinavam-me costumes e tradições da Guiné, e eu retribuía, descrevendo a beleza do meu País.

Acredito que tenham cometido crimes de guerra como aliás todos os Africanos que~, aliados aos Portugueses, lutaram nas Campanhas de Pacificação. Falar no meu tempo, aos Homens Grandes Mandingas, no nome de Abdul Injaí, impunha ainda o respeito e o medo, mas também a admiração. Toda a história da Guiné do Séc. XIX e inícios do Séc. XX, está prenhe de violência, massacres, razias, saques.

Claro que não conhecíamos a História, tendo-nos sido inculcada a ficção de um País idílico, de pretinhos obedientes e portuguesíssimos, posto a ferro e fogo por traidores comunistas. Nós não sabíamos mas certamente a elite conselheira do Spínola havia estudado o passado e aprendido a manobrar as profundas inimizades étnicas. Sabiam eles, já então, também, qual seria o destino da Guerra, e o que iria acontecer à tropa africana.

Perdoa-me, Luís, a extensão do desabafo, mas qualificar de ingénua a minha intransigente posição sobre a dignidade da Pessoa Humana, em todas as circunstâncias, custa-me, porque há muitos anos ensino que nenhum Homem é monstro, que os monstros se abatem, mas que os Homens se julgam.

Um grande, grande Abraço
Jorge

P.S. – Se Amílcar Cabral fosse vivo, teria permitido o que aconteceu?
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXVIII: Ainda sobre os fuzilados... ou comentário ao texto do Jorge Cabral (João Tunes)

(2) Vd. post de 16 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXIV: Fala-se em 11 mil fuzilados (Leopoldo Amado, historiador)

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