por Luís Graça (*)
− Eu era capaz de oferecer o meu lugar no reino dos céus por um prato de favas suadas!... Antes que se faça tarde…
− Tarde ?!... O que queres dizer com isso, Arsénio?... E, por favor, não blasfemes…
− Calma, senhor provedor, não invoquei o nome de Deus em vão… Também andei na catequese como tu, embora em África…
− Mas o teu catecismo não era o mesmo que o meu, aposto…
− Olha, a mim quem me dera saber se tenho um lugar reservado no céu…
− É com essa que Deus nos trama… Mantém o suspense até ao fim…
− Ah!, para ti, António, está mais do que reservado, está assegurado!... Não precisas que te rezem missas...
− Obrigado, mas que história, afinal, é essa… das favas ?!
− É o que me estava mesmo a apetecer agora, um prato de favas suadas…
− Abriste-me o apetite. Também já ia… E estamos em março, é a altura delas. Vamos almoçar ao Jacinto, pode ser que nos arranje, nem que seja um pires de favinhas, como entradinha, com chouriço preto alentejano…
− Sabes, tenho medo de esquecer como se chamava o prato de favas suadas feitas pela minha mãezinha, com tanto esmero e carinho…
− Ah! , a nha Bertinha, de saudosa memória…
− … E sobretudo esquecer a delícia do seu sabor, memória que me vem dos tempos da meninice.
− Ó engenheiro!..., estás com a doença do Alemão, ou quê ?!...
− Quem sabe ?!...
− Só Deus e os médicos é que sabem… A tal doença que nenhum de nós ousa nomear.
− Acho que ainda não a tenho, meu caro António… Os neurónios estão no sítio, descansa...
− Mas quem te pode garantir que a não vais apanhar, a dita cuja?...
− Cruzes, canhoto!... A única coisa que me aterroriza, mais do que a morte, é perder a memória, a identidade... e alguns dos cinco sentidos, como o gosto, o olfato, o tato...
− Terror por antecipação… Mas essas reminiscências da infância, quando recorrentes, dizem os entendidos, podem muito bem ser o primeiro sintoma precoce da doença do Alemão…
− Achas ?!...
− Lembras-te das favas suadas da senhora tua mãe que Deus já lá tem, mas não do que comeste ontem…
− Tens razão… E não me lembro mesmo!... Fora de brincadeira, dizem que para lá caminhamos todos…
− A demência ?!... A menos que apareça, um dia destes, a tal droga milagrosa que nos há de salvar da amnésia total…
− Já não será para os dias que me restam…
− Não sejas tolo, Arsénio, não vês o cancro ?!... Todos os anos saem novos medicamentos inovadores.
− Ah!, a indústria da doença: quem entra num hospital, já de lá não sai… Vê o meu irmão: já não lhe bastava ter que fazer hemodiálise três vezes por semana…
− Ah!, sim, é bem pesada a sua cruz… Mas desculpa-me que te pergunte: e a outra solução, o transplante renal?!
− Não brinques comigo, António, estás farto de saber que ele também já passou o prazo de validade!
− Tens razão, os setenta?!
− Sim, os malditos setenta!… Ainda esteve na lista de espera. No dia em que fez os setenta, riscaram-no logo da lista.
− É tramado…
− É isso mesmo, não fazem transplantes aos velhos. E não há dinheiro que compre um rim novo...
− Nem serviço nacional de saúde que aguente... Mas dizes bem, os setenta!... Passas a ser “velho… vitalício”!... Ora toma lá o carimbo...
− …com direito a uma salva de prata e uns versinhos recitados pelas criancinhas mais novas… ”Ao nosso querido diretor, dr. António Queiroz, com (e)terna saudade!”… Até houve balões, coisa que eu sempre detestei e proibia por causa do ambiente…
− E o que é que tu querias mais, meu velho e caro amigo, dr. António Queiroz, agora dedicado e piedoso provedor da Santa Casa da Misericórdia ?!
− Gratidão, verdadeira gratidão… E não reverência cínica!... No último dia de trabalho, dão-te um chuto no rabo com sapato de veludo.
− Mas ergueram-te um busto, em bronze…
− …um mamarracho, que está lá no átrio, ao pé do lago com repuxo, nenúfares e peixinhos vermelhos… Por mim, bem o dispensava.
− És um gajo com sorte, António… A mim, nem isso, nem salva de prata, nem versinhos, nem balões… E muito menos um busto em bronze...
− Oh!, pá, mas ainda não morreste, que eu me tenha dado conta!... Ou sou eu que já estou com a doença do Alemão ?!
− Não, não morremos, nem tu nem eu!...Ou melhor, eu já morri, da primeira vida. Morte social, que não é menos cruel que a morte física que me espera, um dia destes…
− Morte social ?!... Dizes bem. Foi por isso que eu nunca mais lá pus os pés na associação que ambos ajudámos a criar e a engrandecer. E tu ainda mais, Arsénio, que andavas na política, tinhas bons contactos em Lisboa e puxavas os cordelinhos…
− Sempre a pensar no interesse da terra do meu querido pai... Mas poucos já se lembram desses tempos!… E, sem memória, não há gratidão!
− Dizes bem: essa é outra forma de doença do Alemão, a que dá no povo…
− … ingrato e vilão, o Zé Povinho!
− Mas tu não tens lá ido mesmo, nem na festa de Natal ?!...
− Eu, agora, é raro lá pôr os pés, e pior ainda com a hemodiálise do meu irmão. A minha vida social acabou há muito, desde que larguei a política.
− Lembro-me sempre do tipo que eu fui substituir, o dr. Veloso, o professor do Colégio… No dia seguinte, depois de deixar o cargo, deu-lhe a veneta, quis ir matar saudades e foi lá cumprimentar as criancinhas, os velhos, as funcionárias… Ele era a delicadeza em pessoa.
Mas é dele que eu quero falar: retornado, engenheiro técnico, empresário, autarca, dirigente partidário, figura grada da terra. Os seus mandatos como autarca a seguir ao 25 de Aril não terão sido pacíficos ou consensuais. A avaliação dependia muito das simpatias ou antipatias partidárias. Diabolizado por uns, santificado por outros, não deixava ninguém indiferente.
A seu favor tinha a construção de todas as infraestruturas e equipamentos sociais que fizeram a terra dar "um salto para a modernidade"… Abriu estradas, construiu em altura na orla costeira, fez a rede de saneamento básico, criou o parque industrial, ofereceu terrenos aos investidores de fora, inaugurou o polidesportivo, fez o passeio marítimo, trouxe o politécnico, pôs o clube de futebol da terra a subir de divisão, convidou os homens de letras para as feiras do livro, apoiou a banda filarmónica e os bombeiros, deu emprego a muita gente, na câmara e nos serviços municipalizados, desenvolveu o turismo, em suma, "pôs a terra no mapa"... Chamavam-lhe o “marquês de Pombal sem acento circunflexo”. O seu apelido era Marques…
(*) Último poste da série > 22 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23803: A galeria dos meus heróis (48): Adeus e até à próstata! (Luís Graça)
− Eu era capaz de oferecer o meu lugar no reino dos céus por um prato de favas suadas!... Antes que se faça tarde…
− Tarde ?!... O que queres dizer com isso, Arsénio?... E, por favor, não blasfemes…
− Calma, senhor provedor, não invoquei o nome de Deus em vão… Também andei na catequese como tu, embora em África…
− Mas o teu catecismo não era o mesmo que o meu, aposto…
− Olha, a mim quem me dera saber se tenho um lugar reservado no céu…
− É com essa que Deus nos trama… Mantém o suspense até ao fim…
− Ah!, para ti, António, está mais do que reservado, está assegurado!... Não precisas que te rezem missas...
− Obrigado, mas que história, afinal, é essa… das favas ?!
− É o que me estava mesmo a apetecer agora, um prato de favas suadas…
− Abriste-me o apetite. Também já ia… E estamos em março, é a altura delas. Vamos almoçar ao Jacinto, pode ser que nos arranje, nem que seja um pires de favinhas, como entradinha, com chouriço preto alentejano…
− Sabes, tenho medo de esquecer como se chamava o prato de favas suadas feitas pela minha mãezinha, com tanto esmero e carinho…
− Ah! , a nha Bertinha, de saudosa memória…
− … E sobretudo esquecer a delícia do seu sabor, memória que me vem dos tempos da meninice.
− Ó engenheiro!..., estás com a doença do Alemão, ou quê ?!...
− Quem sabe ?!...
− Só Deus e os médicos é que sabem… A tal doença que nenhum de nós ousa nomear.
− Acho que ainda não a tenho, meu caro António… Os neurónios estão no sítio, descansa...
− Mas quem te pode garantir que a não vais apanhar, a dita cuja?...
− Cruzes, canhoto!... A única coisa que me aterroriza, mais do que a morte, é perder a memória, a identidade... e alguns dos cinco sentidos, como o gosto, o olfato, o tato...
− Terror por antecipação… Mas essas reminiscências da infância, quando recorrentes, dizem os entendidos, podem muito bem ser o primeiro sintoma precoce da doença do Alemão…
− Achas ?!...
− Lembras-te das favas suadas da senhora tua mãe que Deus já lá tem, mas não do que comeste ontem…
− Tens razão… E não me lembro mesmo!... Fora de brincadeira, dizem que para lá caminhamos todos…
− A demência ?!... A menos que apareça, um dia destes, a tal droga milagrosa que nos há de salvar da amnésia total…
− Já não será para os dias que me restam…
− Não sejas tolo, Arsénio, não vês o cancro ?!... Todos os anos saem novos medicamentos inovadores.
− Ah!, a indústria da doença: quem entra num hospital, já de lá não sai… Vê o meu irmão: já não lhe bastava ter que fazer hemodiálise três vezes por semana…
− Ah!, sim, é bem pesada a sua cruz… Mas desculpa-me que te pergunte: e a outra solução, o transplante renal?!
− Não brinques comigo, António, estás farto de saber que ele também já passou o prazo de validade!
− Tens razão, os setenta?!
− Sim, os malditos setenta!… Ainda esteve na lista de espera. No dia em que fez os setenta, riscaram-no logo da lista.
− É tramado…
− É isso mesmo, não fazem transplantes aos velhos. E não há dinheiro que compre um rim novo...
− Nem serviço nacional de saúde que aguente... Mas dizes bem, os setenta!... Passas a ser “velho… vitalício”!... Ora toma lá o carimbo...
− E é aí que um homem se sente velho pela primeira vez, António Queiroz. Ou discriminado como tal.
− Mas, por outro lado, já não precisas de renovar o bilhete de identidade…
− É agora o que somos, meu amigo. Eu, tu, o meu irmão… Gosto da expressão: “Velho… vitalíco!”... A mim também me puseram o carimbo, quando arrumei as botas aos setenta!
− Há que dar lugar aos novos!, dizem-te os safad0s que lá ficam…
− É agora o que somos, meu amigo. Eu, tu, o meu irmão… Gosto da expressão: “Velho… vitalíco!”... A mim também me puseram o carimbo, quando arrumei as botas aos setenta!
− Há que dar lugar aos novos!, dizem-te os safad0s que lá ficam…
− Mas a ti ainda te fizeram uma festinha…
− …com direito a uma salva de prata e uns versinhos recitados pelas criancinhas mais novas… ”Ao nosso querido diretor, dr. António Queiroz, com (e)terna saudade!”… Até houve balões, coisa que eu sempre detestei e proibia por causa do ambiente…
− E o que é que tu querias mais, meu velho e caro amigo, dr. António Queiroz, agora dedicado e piedoso provedor da Santa Casa da Misericórdia ?!
− Gratidão, verdadeira gratidão… E não reverência cínica!... No último dia de trabalho, dão-te um chuto no rabo com sapato de veludo.
− Mas ergueram-te um busto, em bronze…
− …um mamarracho, que está lá no átrio, ao pé do lago com repuxo, nenúfares e peixinhos vermelhos… Por mim, bem o dispensava.
− És um gajo com sorte, António… A mim, nem isso, nem salva de prata, nem versinhos, nem balões… E muito menos um busto em bronze...
− Oh!, pá, mas ainda não morreste, que eu me tenha dado conta!... Ou sou eu que já estou com a doença do Alemão ?!
− Não, não morremos, nem tu nem eu!...Ou melhor, eu já morri, da primeira vida. Morte social, que não é menos cruel que a morte física que me espera, um dia destes…
− Morte social ?!... Dizes bem. Foi por isso que eu nunca mais lá pus os pés na associação que ambos ajudámos a criar e a engrandecer. E tu ainda mais, Arsénio, que andavas na política, tinhas bons contactos em Lisboa e puxavas os cordelinhos…
− Sempre a pensar no interesse da terra do meu querido pai... Mas poucos já se lembram desses tempos!… E, sem memória, não há gratidão!
− Dizes bem: essa é outra forma de doença do Alemão, a que dá no povo…
− … ingrato e vilão, o Zé Povinho!
− Mas tu não tens lá ido mesmo, nem na festa de Natal ?!...
− Eu, agora, é raro lá pôr os pés, e pior ainda com a hemodiálise do meu irmão. A minha vida social acabou há muito, desde que larguei a política.
− Lembro-me sempre do tipo que eu fui substituir, o dr. Veloso, o professor do Colégio… No dia seguinte, depois de deixar o cargo, deu-lhe a veneta, quis ir matar saudades e foi lá cumprimentar as criancinhas, os velhos, as funcionárias… Ele era a delicadeza em pessoa.
− Quem, esse palerma ?!... Desculpa lá, está xexé...
− Sabes o que é que eu ouvi, sem querer (a porta do gabinete estava entreaberta), da parte de um grupinho de senhoras (educadoras, auxiliares e até a nossa antiga secretária e a assistente social) ?
− Não, não imagino…
− Estavam na galhofa, e a cochichar entre elas, deu para ouvir: “O que é que o filho da p... do velho está aqui a fazer?!”…
− Assim, sem mais nem ontem ?! Filho da p... ?!
− Isso mesmo, e ainda dizem que nós, os homens, é que somos ordinários… E toda a gente a saber que tinha sido ele, o meu antecessor, quem estabeleceu (ou melhor, propôs, em Assembleia Geral) o limite dos setenta anos para o exercício de cargos diretivos.
− Das catraias era de esperar tudo, mas logo da nossa assistente social!... Olha, era uma senhora por quem eu tinha elevada estima e consideração… Afinal, António, quem vê caras, não vê corações…
É uma longa transcrição, esta, que pode aborrecer o leitor, sobretudo se for jovem, com a vida toda pela frente: trata-se de uma conversa, seguramente deprimente, entre dois homens (chamemos-lhes “velhos”…) que eram das minhas relações sociais. E que eu, ainda há alguns anos atrás, costumava encontrar nos sítios habituais da pacata cidade de província onde então vivia: o barbeiro, o Café Central, o Museu Etnográfico, a Universidade Sénior (onde cheguei a dar aulas), o Clube Náutico e, claro, a IPSS, a associação privada de solidariedade social que era o orgulho da terra, e a que eles, os dois, estiveram ligados desde a sua fundação.
Eu sabia da história de vida de ambos, mesmo sendo um estranho, para não dizer um “outsider”, chegado há poucos anos do estrangeiro, mais exatamente do Luxemburgo, a minha segunda pátria.
Nos meios pequenos sabe-se tudo ou quase tudo da vida uns dos outros, das doenças, das sacanices, dos amores e até dos negócios (mesmo quando se diz que o segredo é a alma do negócio).
O homem, o engº. Arsénio Marques, que temia o Alzheimer (sem nunca o nomear), morreu há pouco tempo. Não teve "funeral de Estado" mas a câmara municipal acabou por fazer-lhe uma discreta e cínica homenagem póstuma: numa sessão da assembleia municipal, foi aprovado por unanimidade um voto de pesar pelo seu falecimento e foi-lhe atribuída a medalha de mérito municipal. Tarde e a más horas, como se costuma dizer.
O outro, o dr. António Queiroz, que fora diretor da IPSS que geria várias creches e lares de idosos em todo o concelho, e depois provedor da misericórdia local (o último cargo que exerceu), está doente, dizem-me que sofre da doença de Parkinson. E, em boa verdade, há alguns anos que não o vejo, não sendo eu visita da família, residente em Lisboa.
− Não, não imagino…
− Estavam na galhofa, e a cochichar entre elas, deu para ouvir: “O que é que o filho da p... do velho está aqui a fazer?!”…
− Assim, sem mais nem ontem ?! Filho da p... ?!
− Isso mesmo, e ainda dizem que nós, os homens, é que somos ordinários… E toda a gente a saber que tinha sido ele, o meu antecessor, quem estabeleceu (ou melhor, propôs, em Assembleia Geral) o limite dos setenta anos para o exercício de cargos diretivos.
− Das catraias era de esperar tudo, mas logo da nossa assistente social!... Olha, era uma senhora por quem eu tinha elevada estima e consideração… Afinal, António, quem vê caras, não vê corações…
É uma longa transcrição, esta, que pode aborrecer o leitor, sobretudo se for jovem, com a vida toda pela frente: trata-se de uma conversa, seguramente deprimente, entre dois homens (chamemos-lhes “velhos”…) que eram das minhas relações sociais. E que eu, ainda há alguns anos atrás, costumava encontrar nos sítios habituais da pacata cidade de província onde então vivia: o barbeiro, o Café Central, o Museu Etnográfico, a Universidade Sénior (onde cheguei a dar aulas), o Clube Náutico e, claro, a IPSS, a associação privada de solidariedade social que era o orgulho da terra, e a que eles, os dois, estiveram ligados desde a sua fundação.
Eu sabia da história de vida de ambos, mesmo sendo um estranho, para não dizer um “outsider”, chegado há poucos anos do estrangeiro, mais exatamente do Luxemburgo, a minha segunda pátria.
Nos meios pequenos sabe-se tudo ou quase tudo da vida uns dos outros, das doenças, das sacanices, dos amores e até dos negócios (mesmo quando se diz que o segredo é a alma do negócio).
O homem, o engº. Arsénio Marques, que temia o Alzheimer (sem nunca o nomear), morreu há pouco tempo. Não teve "funeral de Estado" mas a câmara municipal acabou por fazer-lhe uma discreta e cínica homenagem póstuma: numa sessão da assembleia municipal, foi aprovado por unanimidade um voto de pesar pelo seu falecimento e foi-lhe atribuída a medalha de mérito municipal. Tarde e a más horas, como se costuma dizer.
O outro, o dr. António Queiroz, que fora diretor da IPSS que geria várias creches e lares de idosos em todo o concelho, e depois provedor da misericórdia local (o último cargo que exerceu), está doente, dizem-me que sofre da doença de Parkinson. E, em boa verdade, há alguns anos que não o vejo, não sendo eu visita da família, residente em Lisboa.
Ambos, o Arsénio e o António, eram do mesmo partido, mas com diferentes sensibilidades e experiências de vida. O António, dizia-se, era da "Opus Dei". E o Arsénio, provavelmente, era "maçon"...
Mas é dele que eu quero falar: retornado, engenheiro técnico, empresário, autarca, dirigente partidário, figura grada da terra. Os seus mandatos como autarca a seguir ao 25 de Aril não terão sido pacíficos ou consensuais. A avaliação dependia muito das simpatias ou antipatias partidárias. Diabolizado por uns, santificado por outros, não deixava ninguém indiferente.
A seu favor tinha a construção de todas as infraestruturas e equipamentos sociais que fizeram a terra dar "um salto para a modernidade"… Abriu estradas, construiu em altura na orla costeira, fez a rede de saneamento básico, criou o parque industrial, ofereceu terrenos aos investidores de fora, inaugurou o polidesportivo, fez o passeio marítimo, trouxe o politécnico, pôs o clube de futebol da terra a subir de divisão, convidou os homens de letras para as feiras do livro, apoiou a banda filarmónica e os bombeiros, deu emprego a muita gente, na câmara e nos serviços municipalizados, desenvolveu o turismo, em suma, "pôs a terra no mapa"... Chamavam-lhe o “marquês de Pombal sem acento circunflexo”. O seu apelido era Marques…
Os insultos grafitados nas paredes da câmara municipal irritavam-no solenemente… Chegou a contratar uma empresa de segurança para apanhar em flagrante os autores dos grafitos… Até tinha uma família, decadente mas ainda com brasão, de alcunha os "Távoras", que concitavam os seus ódios de estimação por causa de um polémico processo de expropriação de terrenos. E com o padre da terra as suas relaçóes também não eram as melhores. Um dia, o padre, que era dos tesos, ostensivamente recusou dar-lhe a comunhão quando soube que ele mantinha uma amante no concelho vizinho.
Só o conheci no ocaso da sua vida política. Era ainda um cacique à moda antiga... e perdia-se por um rabo-de-saia, diziam as más línguas. Personalidade truculenta, tinha uma frase lapidar, reveladora da sua repugnância quase atávica para o compromisso e a negociação:
− Não se pode agradar a gregos e troianos, e quem os seus inimigos poupa, às mãos lhe morre.
Os pais do eng.º Arsénio Marques haviam-se conhecido em Cabo Verde. O pai fora expedicionário em São Vicente, durante a II Guerra Mundial, mobilizado pelo RI 5, das Caldas da Rainha. Cavador de enxada, tocador de concertina e poeta popular. A mãe era de Santo Antão, filha e neta de comerciantes e pequenos proprietários de terras.
Depois de cumprido o serviço militar, o pai do Arsénio fixou-se em Angola, empregando-se nos caminhos de ferro de Benguela. A mãe, depois de uns tempos no Continente, seguiu-lhe os passos. Ele nasceu em 1944. Foi a avó que transmitiu à mãe os segredos gastronómicos da família.
Não sei muito da sua vida em África. Mas, perguntará o leitor: onde e como nos conhecemos, eu e o Arsénio Marques ?
Eu explico… mas primeiro tenho que falar um pouco de mim… Sou ribatejano da beira rio. Emigrei, "a salto", para o Luxemburgo, em meados dos anos 60, como outros jovens da minha geração, para fugir à tropa e à guerra colonial. Não gosto do termo “fugir”, e muito menos de “fujão”. Já uma vez me chaparam isso à cara…Rejeito o insulto mas tenho que contar a minha história, se não se importam.
Faço aqui a minha declaração de interesses: nunca fui comunista. Mas o meu pai foi preso por estar ligado a um rede clandestina que distribuía o jornal “Avante”… Nunca foi julgado, mas não se livrou de estar preso, arbitrariamente, sem culpa formada, durante pelo menos seis meses…
Julgo que se portou com dignidade na prisão. E, mesmo sob tortura, não denunciou ninguém do Partido (como ele dizia...) por uma simples razão: ele não era militante comunista nem pertencia a nenhuma célula clandestina. Em boa verdade, era um simples simpatizante do PCP, o que para a PIDE era igual. E, depois, ser apanhado a distribuir o "pasquim do Avante", era crime de lesa-Pátria... De qualquer modo, não tinha nomes importantes a dar aos esbirros de Salazar. O jornal chegava sempre misteriosamente de comboio, que vinha de Santa Apolónia, num pacote embrulhado em folhas do jornal "O Século". A PIDE nunca terá descoberto o "ferroviário vermelho" que preparava a encomenda, e que seguia juntamente com os outros jornais e revistas ao cuidado do quiosque do meu pai...
Ficámos com o negócio do meu pai, eu e a minha mãe, um quiosque de jornais e revistas, que era o sustento da família. Claro que fiquei com ficha na PIDE, apenas por ser filho de quem era, embora legalmente ainda fosse menor.
Quando o meu pai regressou a casa, ainda antes de o Marcello Caetano ter substituído o Salazar na Presidência do Conselho de Ministros, eu devia estar a ser chamado para a tropa. Foi aí que tomei a decisão mais difícil e corajosa da minha vida: um antigo colega de escola, que já tinha em França os pais, também eles alentejanos como os meus, desafiou-me a ir com ele… Havia uma carrinha dum passador que partia num fim de semana próximo. Só precisava de 10 contos, o que na época, em 1967, era muito dinheiro.
Só o conheci no ocaso da sua vida política. Era ainda um cacique à moda antiga... e perdia-se por um rabo-de-saia, diziam as más línguas. Personalidade truculenta, tinha uma frase lapidar, reveladora da sua repugnância quase atávica para o compromisso e a negociação:
− Não se pode agradar a gregos e troianos, e quem os seus inimigos poupa, às mãos lhe morre.
Os pais do eng.º Arsénio Marques haviam-se conhecido em Cabo Verde. O pai fora expedicionário em São Vicente, durante a II Guerra Mundial, mobilizado pelo RI 5, das Caldas da Rainha. Cavador de enxada, tocador de concertina e poeta popular. A mãe era de Santo Antão, filha e neta de comerciantes e pequenos proprietários de terras.
Depois de cumprido o serviço militar, o pai do Arsénio fixou-se em Angola, empregando-se nos caminhos de ferro de Benguela. A mãe, depois de uns tempos no Continente, seguiu-lhe os passos. Ele nasceu em 1944. Foi a avó que transmitiu à mãe os segredos gastronómicos da família.
Não sei muito da sua vida em África. Mas, perguntará o leitor: onde e como nos conhecemos, eu e o Arsénio Marques ?
Eu explico… mas primeiro tenho que falar um pouco de mim… Sou ribatejano da beira rio. Emigrei, "a salto", para o Luxemburgo, em meados dos anos 60, como outros jovens da minha geração, para fugir à tropa e à guerra colonial. Não gosto do termo “fugir”, e muito menos de “fujão”. Já uma vez me chaparam isso à cara…Rejeito o insulto mas tenho que contar a minha história, se não se importam.
Faço aqui a minha declaração de interesses: nunca fui comunista. Mas o meu pai foi preso por estar ligado a um rede clandestina que distribuía o jornal “Avante”… Nunca foi julgado, mas não se livrou de estar preso, arbitrariamente, sem culpa formada, durante pelo menos seis meses…
Julgo que se portou com dignidade na prisão. E, mesmo sob tortura, não denunciou ninguém do Partido (como ele dizia...) por uma simples razão: ele não era militante comunista nem pertencia a nenhuma célula clandestina. Em boa verdade, era um simples simpatizante do PCP, o que para a PIDE era igual. E, depois, ser apanhado a distribuir o "pasquim do Avante", era crime de lesa-Pátria... De qualquer modo, não tinha nomes importantes a dar aos esbirros de Salazar. O jornal chegava sempre misteriosamente de comboio, que vinha de Santa Apolónia, num pacote embrulhado em folhas do jornal "O Século". A PIDE nunca terá descoberto o "ferroviário vermelho" que preparava a encomenda, e que seguia juntamente com os outros jornais e revistas ao cuidado do quiosque do meu pai...
Ficámos com o negócio do meu pai, eu e a minha mãe, um quiosque de jornais e revistas, que era o sustento da família. Claro que fiquei com ficha na PIDE, apenas por ser filho de quem era, embora legalmente ainda fosse menor.
Quando o meu pai regressou a casa, ainda antes de o Marcello Caetano ter substituído o Salazar na Presidência do Conselho de Ministros, eu devia estar a ser chamado para a tropa. Foi aí que tomei a decisão mais difícil e corajosa da minha vida: um antigo colega de escola, que já tinha em França os pais, também eles alentejanos como os meus, desafiou-me a ir com ele… Havia uma carrinha dum passador que partia num fim de semana próximo. Só precisava de 10 contos, o que na época, em 1967, era muito dinheiro.
Com algumas economias e com o resto emprestado por um tio (cerca de seis ou sete contos, já não me lembro bem), deixei a minha terra sem me despedir sequer dos meus pais… Não os queria comprometer, no caso de vir a ser apanhado na fronteira ou ao atravessar a Espanha do Franco. Pensava escrever-lhes quando chegasse a bom porto.
Mas tudo correu bem. Fiquei uns dias em Grenoble. E foi de lá que contactei uns parentes afastados que viviam no Luxemburgo, e que me arranjaram os papéis. Cama e mesa, sempre se arranjava por uns tempos. Sabia que não iria, nos anos mais próximos, voltar a ver os meus pais. Mas esperava que a Ditadura caísse ainda antes de eu completar os meus trinta anos. E de facto iria cair, uns anos mais tarde, em 25 de Abril de 1974… (Mesmo assim tarde de mais para o meu pai: morreu cedo, em 1972, e a minha mãe, vinte anos depois.)
É uma dor que trago comigo e que ainda não ultrapassei: não ter podido acompanhar os últimos dias de vida do meu progenitor. Nunca partilhei com ninguém, até agora, e muito menos no Luxemburgo, as minhas memórias de infância e adolescência. Sempre achei que não poderiam interessar a ninguém. Hoje não tenho a mesma opinião. Às vezes acusam-me de ter dado o "salto" por ter medo de ir parar à “guerra do ultramar”, como então diziam alguns dos saudosos do "Portugal do Minho a Timor". Irei ter mais tarde uma discussão sobre isso com o engº. Arsénio Marques, na terra do seu pai, e que eu irei adotar também como minha.
Confesso que ainda hoje não sei por que razão é que escolhi aquela terra, para voltar ao meu país natal e viver o meu último terço ou quarto de século de vida. Tinha 65 anos em 2009, uma razoável reforma (por comparação com os padrões portugueses da época) e umas boas economias (para quem tinha começado como eu a ganhar a vida como ardina…). Com isso comprei um apartamento à beira-mar, um T3 onde esperava poder receber os amigos e as amigas (poucos, é verdade, mas do peito) que eu fui fazendo ao longo de uma vida de “imigra”. E ainda com uma vaga esperança de, um dia, os meus netos irromperem, de braços abertos, pela casa dentro...
Não tinha filhos. Ou melhor: os que tive perderam-se, pelos quatro cantos do mundo: uma rapariga a viver algures na Califórnia, e um rapaz que criou raízes na Noruega, depois de casar com uma víquingue.
Fiquei viúvo relativamente cedo, aos 50 e tal anos. A mulher da minha vida morreu de cancro da mama. Era italiana, ou melhor napolitana. Certamente por inépcia minha, nunca consegui que os meus filhos luxemburgueses fizessem de Portugal a sua segunda pátria. Vieram cá, algumas vezes, ainda adolescentes. Mas depois casaram e foram à sua vida. Falamos por telemóvel pelo Natal e pouco mais… Fui à Califórnia conhecer os meus netos. E, claro, dei um salto também à Noruega, aqui mais perto.
Tudo isto para explicar por que é que eu sou mais espetador do que ator, na terra que me acolheu, aos sessenta e tal anos, depois de regressar do Luxemburgo. Aqui estive ligado à animação sociocultural. E exerci, nos primeiros tempos, os mais diversos ofícios, daqueles pouco ou nada qualificados, que são desempenhados por qualquer “imigra”: fui varredor municipal, trabalhador agrícola sazonal, trolha da construção civil, operador de caixa de supermercado, ajudante de camionista, etc. Mas também, mais tarde, radialista, diretor de clube de futebol de “imigras” portugueses, tradutor e guia turístico, jornalista, autarca, etc.
Acabei por montar um pequeno negócio na área da indústria gráfica, cujos principais clientes eram portugueses, ou descendentes de portugueses, mas também italianos. Em boa parte devido aos conhecimentos que tinha, eu e a minha mulher. Éramos um casal popular nas nossas comunidades.
Fixei-me nesta cidadezinha do Oeste Estremenho. Abreviando razões, tenho amigos aqui e no Alentejo. Reformados como eu. Aos alentejanos, meus compadres, visito-os uma ou duas vezes por ano, em Aljezur, na costa vicentina. Gosto do meu sossego, de ler os meus livros, de ver os meus filmes, e, sobretudo, de contemplar o pôr-do-sol à beira do Atlântico com as Berlengas e o cabo Carvoeiro no horizonte. E tenho alguns hábitos burgueses: não desgosto de comer bem, nisso sou igual ao Arsénio, que também é, ele, filho de gente pobre. Os pobres têm sempre mais olhos do que barriga, já dizia o meu velhote.
Um dia, há muitos anos, vim cá com uma representação municipal e uma banda filarmónica. Do meu município luxemburguês (que não identifico, porque o país é uma aldeia). Na altura era aqui presidente da Câmara, o engº. Arsénio Marques. Estava no auge da fama, da glória e do proveito.
Mas tudo correu bem. Fiquei uns dias em Grenoble. E foi de lá que contactei uns parentes afastados que viviam no Luxemburgo, e que me arranjaram os papéis. Cama e mesa, sempre se arranjava por uns tempos. Sabia que não iria, nos anos mais próximos, voltar a ver os meus pais. Mas esperava que a Ditadura caísse ainda antes de eu completar os meus trinta anos. E de facto iria cair, uns anos mais tarde, em 25 de Abril de 1974… (Mesmo assim tarde de mais para o meu pai: morreu cedo, em 1972, e a minha mãe, vinte anos depois.)
É uma dor que trago comigo e que ainda não ultrapassei: não ter podido acompanhar os últimos dias de vida do meu progenitor. Nunca partilhei com ninguém, até agora, e muito menos no Luxemburgo, as minhas memórias de infância e adolescência. Sempre achei que não poderiam interessar a ninguém. Hoje não tenho a mesma opinião. Às vezes acusam-me de ter dado o "salto" por ter medo de ir parar à “guerra do ultramar”, como então diziam alguns dos saudosos do "Portugal do Minho a Timor". Irei ter mais tarde uma discussão sobre isso com o engº. Arsénio Marques, na terra do seu pai, e que eu irei adotar também como minha.
Confesso que ainda hoje não sei por que razão é que escolhi aquela terra, para voltar ao meu país natal e viver o meu último terço ou quarto de século de vida. Tinha 65 anos em 2009, uma razoável reforma (por comparação com os padrões portugueses da época) e umas boas economias (para quem tinha começado como eu a ganhar a vida como ardina…). Com isso comprei um apartamento à beira-mar, um T3 onde esperava poder receber os amigos e as amigas (poucos, é verdade, mas do peito) que eu fui fazendo ao longo de uma vida de “imigra”. E ainda com uma vaga esperança de, um dia, os meus netos irromperem, de braços abertos, pela casa dentro...
Não tinha filhos. Ou melhor: os que tive perderam-se, pelos quatro cantos do mundo: uma rapariga a viver algures na Califórnia, e um rapaz que criou raízes na Noruega, depois de casar com uma víquingue.
Fiquei viúvo relativamente cedo, aos 50 e tal anos. A mulher da minha vida morreu de cancro da mama. Era italiana, ou melhor napolitana. Certamente por inépcia minha, nunca consegui que os meus filhos luxemburgueses fizessem de Portugal a sua segunda pátria. Vieram cá, algumas vezes, ainda adolescentes. Mas depois casaram e foram à sua vida. Falamos por telemóvel pelo Natal e pouco mais… Fui à Califórnia conhecer os meus netos. E, claro, dei um salto também à Noruega, aqui mais perto.
Tudo isto para explicar por que é que eu sou mais espetador do que ator, na terra que me acolheu, aos sessenta e tal anos, depois de regressar do Luxemburgo. Aqui estive ligado à animação sociocultural. E exerci, nos primeiros tempos, os mais diversos ofícios, daqueles pouco ou nada qualificados, que são desempenhados por qualquer “imigra”: fui varredor municipal, trabalhador agrícola sazonal, trolha da construção civil, operador de caixa de supermercado, ajudante de camionista, etc. Mas também, mais tarde, radialista, diretor de clube de futebol de “imigras” portugueses, tradutor e guia turístico, jornalista, autarca, etc.
Acabei por montar um pequeno negócio na área da indústria gráfica, cujos principais clientes eram portugueses, ou descendentes de portugueses, mas também italianos. Em boa parte devido aos conhecimentos que tinha, eu e a minha mulher. Éramos um casal popular nas nossas comunidades.
Fixei-me nesta cidadezinha do Oeste Estremenho. Abreviando razões, tenho amigos aqui e no Alentejo. Reformados como eu. Aos alentejanos, meus compadres, visito-os uma ou duas vezes por ano, em Aljezur, na costa vicentina. Gosto do meu sossego, de ler os meus livros, de ver os meus filmes, e, sobretudo, de contemplar o pôr-do-sol à beira do Atlântico com as Berlengas e o cabo Carvoeiro no horizonte. E tenho alguns hábitos burgueses: não desgosto de comer bem, nisso sou igual ao Arsénio, que também é, ele, filho de gente pobre. Os pobres têm sempre mais olhos do que barriga, já dizia o meu velhote.
Um dia, há muitos anos, vim cá com uma representação municipal e uma banda filarmónica. Do meu município luxemburguês (que não identifico, porque o país é uma aldeia). Na altura era aqui presidente da Câmara, o engº. Arsénio Marques. Estava no auge da fama, da glória e do proveito.
Ele tratou-me muito bem (a mim e aos meus munícipes). Ficámos amigos. Ou melhor, simpatizámos logo um com o outro. Desafiou-me a ficar ou a voltar, quando me reformasse. Ou sempre que me apetecesse. Com cama e mesa à disposição. Aceitei, vim cá pelo verão, duas ou três vezes. Sempre por minha conta, acrescente-se. No Luxemburgo sempre o tratei também muito bem, fazendo jus à tradição de hospitalidade do grão-ducado. Uma terra que ele também aprendeu a amar. Sempre pusemos de lado as nossas diferenças políticas, ele situava-se mais à direita, eu mais à esquerda. Mas era uma "charmoso", como dizia a minha mulher que ainda o chegou a conhecer.
Depois ele perdeu as eleições (ou já não podia legalmente concorrer a novo mandato, não sei ao certo). Ainda tentou uma carreira política a nível nacional, mas puseram-no na prateleira. Zangado com o seu partido, bateu com a porta e continuou a dedicar-se aos seus negócios. E a comenda de Belém, que lhe haviam prometido, nunca chegou em tempo útil, ter-lhe ia feito muito bem ao ego...
No bom tempo, e graças aos amigos de Benguela, do Huambo e de Luanda, matou o galo da UNITA e engoliu o sapo do MPLA (quer dizer, a catana e o martelo, que são mais indigestos)... Tinha amigos de um lado e do outro, gabava-se ele.
Fez alguns bons negócios, na área da engenharia, planeamento urbano e arquitetura, com um conhecido general que era do seu tempo de escola, e considerado um dos heróis da batalha do Cuito Canavale. Chegou-me a contar algumas confidèncias do general, sobre os horrores dessa batalha, que se travou no sul de Angola, entre novembro de 1987 e março de 1988, se não me engano. E onde o meu amigo perdeu gente conhecida sua.
Também chegou a ter, a meias, com esse general, uma empresa de construção civil e obras públicas. Nunca falei muito com ele sobre esses tempos. Mas sei que o sócio passou-lhe a perna. E o capítulo de Angola acabou por fechar-se na vida dele. Para mais, e para seu grande desgosto, ele nunca chegou a conseguir obter a nacionalidade angolana, apesar de lá ter nascido e vivido. Falava da sua terra com grande paixão e saudade. Em contrapartida tinha um filho a viver em Cabo Verde, onde explorava um pequeno hotel, em sociedade com um oitro estrangeiro, italiano ou francès, não sei ao certo.
Sei que fez a tropa (e a guerra) na Guiné. Não posso dar muitos pormenores, porque sou um zero à esquerda nessas matérias. Julgo que pertencia à arma da engenharia militar. Tanto quanto me lembro das nossas conversas, ele não deixava de simpatizar com o Amílcar Cabral, filho de pai cabo-verdiano. Mas achava um disparate a ideia de união ou unidade entre a Guiné-Bissau e Cabo-Verde.
− O Amílcar Cabral tinha tanto de génio como de ingénuo − recordo-me de ele me ter dito uma vez.
− Ingénuo ?... − indaguei eu.
− E viu-se: deixou-se matar por um dos seus. Em vez de mandar limpar o sebo a esse tal Inocêncio Cani, que era guineense, não, deu-lhe uma segunda oportunidade para ele se regenerar...
O Arsénio tinha uma costela cabo-verdiana, pelo lado da mãe que, garantia ele, era bisneta de escravos...
− E eu trisneto, com muita muita honra, sem qualquer complexo... Tive pena que Cabo Verde tivesse entrado, em 1975, na paranoia da dipanda, a reboque do PAIGC. Arrepiaram caminho, anos mais tarde, que a euforia revolucionária não enche barriga...
− Dipanda ?!...
− Ah!, desculpa, é angolês, uma corruptela de independência...
Eu aqui não quis comentar, nem nunca disse que tinha tido amigos cabo-verdianos que apoiavam o PAIGC no Luxemburgo... Depois meteram a viola no saco, quando se deu o golpe de Estado do 'Nino' Vieira, em 1989, se bem recordo... Foi o fim de muitas ilusões... "A segunda morte do pai das nossas nacionalidades", chorava um dos meus amigos que era cantor, com discos publicados na Holanda... E, para mim, também, embora eu nunca tivesse conhecido a realidade da Guiné-Bissau nem de Cabo-Verde, antes e depois da "luta de libertação", como eles gostavam de dizer... Mas o direito à independência, tanto da Guiné-Bissau, como de Cabo Verde, esse, sempre o reconheci. Como lá se chegou, num caso e no outro, isso eu já não discutia, era assunto para os guineenses, os cabo-verdianos, os portugueses e os historiadores... E eu, afinal, era cidadão luxemburguês...(embora mantivesse a cidadania portuguesa).
Nos últimos anos, senti o meu amigo Arsénio Marques mais alquebrado, para não dizer deprimido: o fogo do seu vulcão havia-se extinguido, e "a terra do seu pai" já não era mais a mesma para ele... Queixava-se que, no fundo, havia uma surda discrimição contra os retornados e os mestiços, como ele. O seu antigo partido nunca mais recuperara o poder, nem o antigo autarca era chamado para nada... O sonho de voltar a Angola estava cada vez mais distante, e em Cabo Verde também não se sentia em casa, embora uma vez por outra fosse visitar o filho.
O nosso convívio, por outro lado, também se foi espaçando... Afinal, pertencíamos a mundos muito diferentes. Incentivei-o a escrever as suas memórias. Mas a escrita não era o seu forte.
− Escrever, o quê ? Para quem ?... Sempre fui um homem de ação, não de pensamento... Tu é que és um homem de letras...
Divorciado, com um filho e netos a viver em Cabo Verde e nos Países Baixos, não tinha muitas amizades no fim da sua vida. O irmão, antigo professor primário, também já tinha partido. Para minha grande surpresa e desgosto, o Arsénio suicidou-se com um tiro nas têmporas, na casa da amante. Uma coisa premeditada. Na véspera, ainda me mandara uma mensagem por telemóvel: "Gostei de te conhecer. Um candando" (#). Nunca imaginei que ele pudesse fazer uma coisa dessas. Afinal, não foi a doença do Alemão que o matou. Prefiro, em todo o caso, pensar que ele partiu para a sua última viagem, desencantado mas lúcido...
(#) Candando, do quimbundo: abraço. (LG)
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Nota do editor: