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quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23993: Agenda cultural (827): Lembrar um construtor de nações, meio século depois do seu assassinato, no Colóquio "Amílcar Cabral e a História do Futuro", na Assembleia da República, Lisboa, 13 e 14 de janeiro de 2023 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Só na véspera à tarde é que recebi um mail a confirmar que podia participar neste colóquio, já tinha compromissos assumidos para sábado, de modo que o meu relato cinge-se ao que me parece ter sido o essencial do primeiro dia do colóquio. Recomendo a leitura do jornal O Expresso do próximo fim de semana, acerquei-me do José Pedro Castanheira para lhe pedir o texto, para mim uma das peças mais importantes daquele dia de trabalhos, respondeu-me que a sua comunicação será publicada integralmente no jornal, razão pela qual não ma podia facilitar. Não escondo a grande surpresa que tive com a categoria intelectual do Presidente da Assembleia da República, felizmente que podem ler na íntegra a sua intervenção.

Um abraço do
Mário



Lembrar um construtor de nações, meio século depois do seu assassinato

Mário Beja Santos

A Assembleia da República acolheu um colóquio intitulado “Amílcar Cabral, História do Futuro”, promovido por um conjunto de instituições universitárias, nos passados dias 13 e 14. Lamentavelmente só pude participar no dia 13, pelo que vou reportar, em síntese, o que ali se disse sobre a vida, a obra e a atualidade do pensamento revolucionário do líder do PAIGC.

Abriu o colóquio o Presidente da Assembleia da República, Augusto dos Santos Silva, que se debruçou sobre os lugares e as ideias de Amílcar Cabral, pegou em duas frases de Cabral sobre como a libertação é um fator de cultura e a distinção entre cultura e manifestações culturais. Para quem ali estava a ser evocado, importa entender que um povo colonizado está excluído pelo colonizador. Cabral entendia a libertação como processo de resgate, um resgate de identidade nacional, era na própria libertação que se ia construindo uma cultura agregadora, uma matriz nacional, superadora de diferentes crenças, de diferentes idiomas, e com a capacidade alavancar uma nação para o desenvolvimento socioeconómico e cultural. Cabral, observou o orador, entendia que o povo português era aliado de quem procurava a independência. Em síntese, para Cabral a libertação não era só a independência, adquirida esta era imprescindível passar para o desenvolvimento e aí a cultura era crucial como processo de transformação, seria a encarnação de uma identidade múltipla (comunicação integral do orador disponível em: https://www.parlamento.pt/sites/PARXVL/Intervencoes/Paginas/Intervencoes/Intervencao-PAR-na-sessao-abertura-coloquio-Amilcar-Cabral-Historia-do-Futuro.aspx)

Interveio, seguidamente, Fernando Rosas, centrou a sua comunicação sobre os termos e os modos como se deve ir mais além desta memória histórica que entrou perigosamente em esquecimento, importa retomar os estudos e as investigações alusivos à obra de Cabral e conhecer melhor todo o período da luta de libertação, aprofundando o que há de atual no pensamento de Cabral.

A comunicação seguinte coube a António Sousa Ribeiro, que na continuação das observações do comentador anterior deplorou o inconsciente colonial, postura que também foi mantida por Joana Dias Pereira que aludiu ao domínio do presentismo, uma historicidade que agora parece subordinada a estudos posteriores ao fenómeno do colonialismo; uma convidada estrangeira, Marga Ferré, pronunciou-se sobre os desafios que o pensamento de Cabral propõem para o futuro e não deixou de se sublinhar o que ela tratou como anomalia histórica, Cabral estava destinado a ser um agente colonial, provavelmente numa posição de todo, e rebelou-se contra o colonialismo, o que nos leva a refletir sobre lugares e ideias que impõem o vigor de um pensamento novo, daí a importância de continuar a estudar Cabral.

Seguiu-se a este período de apresentações o primeiro painel intitulado “Guerra colonial: memória e silenciamentos”, em que participaram Miguel Cardina, Carlos Cardoso, Patrícia Godinho Gomes e Cláudia Castelo. Cardina retomou a reflexão sobre o quadro do esquecimento sobre as lutas de libertação e propôs um conjunto de desafios que poderão contribuir para revigorar a memória destes acontecimentos, citou a necessidade de haver uma rede conjunta de arquivos, investigação sobre os modos com que se fez a guerra e a relação soldados/população, incentivar a investigação académica nos novos países independentes, entre outros.

O investigador guineense Carlos Cardoso recordou que a luta armada foi constitutiva da nação tal como ela existe e sublinhou a omissão existente no país quanto a políticas de perdão; para o investigador, a História da Guiné tem de ser contada com histórias e saudou o facto de hoje em dia os cinco países africanos de língua portuguesa terem resolvido estudar conjuntamente as suas lutas de libertação; Patrícia Godinho Gomes centrou a sua intervenção sobre as mulheres silenciadas na luta armada, chamou a atenção para a urgência em proporcionar investigações de história oral sobre estas mulheres, são testemunhos enriquecedores; Cláudia Castelo debruçou-se sobre o papel da Casa dos Estudantes do Império na luta de libertação.

Seguiu-se novo painel intitulado “Amílcar Cabral, trajetos de vida e memória viva”, fora intervenientes Vítor Barros, José Neves, Julião Soares Sousa, José Pedro Castanheira e Leonor Pires Martins. 

Ganharam realce as intervenções de Julião Soares Sousa e José Pedro Castanheira. Julião Soares Sousa comentou os olhares contemporâneos sobre o líder do PAIGC, favoráveis ou desfavoráveis: mártir, herói, autoritário e cultor da personalidade, homem previdencial, enfim, são revelações abonatórias de que continua a ser necessário estudar aquele tempo, a sua vida e a sua obra. 

José Pedro Castanheira recordou à assistência a investigação que leva há décadas sobre o assassinato de Cabral, mantêm-se as incógnitas sobre a origem do complô, referiu os diferentes arquivos e documentos onde é patente de que não houve qualquer ordem de autoridades portuguesas ou da PIDE para matar Cabral naquela altura, nada consta, referiu, nos arquivos na Torre do Tombo, no Arquivo Histórico-Diplomático e nas Actas do Conselho Superior de Defesa Nacional, sabe-se hoje que nos diferentes tribunais (foram três) se debruçaram sobre o assassinato de Cabral todos os presumíveis ligados ao complô foram guineenses, não foi inquirido nem acusado de qualquer culpa um só cabo-verdiano.

No final deste painel, foi recordado que em finais de março, no Palácio Baldaia, estará patente uma exposição sobre Amílcar Cabral.

Retomados os trabalhos da parte da tarde, a comunicação mais esperada a do comandante Pedro Pires que começou por referir que não era isento nem imparcial, valorizava o triunfo de Cabral durante a luta armada e post mortem, enalteceu a estratégia do líder por se ter preocupado em primeiro lugar com a consciencialização das massas camponesas, ter procurado a todo o transe apoios para formar quadros revolucionários, como aconteceu e ele próprio se ter encarregado da primeira preparação desses quadros, nas escola piloto em Conacri.

Recordou a resistência dos povos da Guiné contra a presença colonialista e interrogou-se sobre o valor histórico da colonização portuguesa. Logo que demonstrado que Salazar não queria aceder a qualquer tipo de negociação de abertura para a independência da Guiné, Cabral preparou etapa a etapa a solução militar, nunca escondeu a surpresa de como a luta de libertação se revelou fulminante e decisiva logo em 1963 e 1964. Lembrou também que coube a Cabral procurar romper o equilíbrio estratégico e que se deslocara à União Soviética não só para ali se prepararem os utilizadores do míssil terra-ar como que eles fossem cedidos com bastante rapidez, em 1973, tal como aconteceu. Pedro Pires mantém a tese de operação da PIDE para assassinar Amílcar Cabral e mantém a esperança de que a geração de Cabral continue a testemunhar e a ser ouvida sobre a visão do líder e do seu legado político e moral.

É este o apanhado que me parece mais pertinente para os meus confrades do blogue.

Artigo de Bárbara Reis, publicado no jornal Público em 14 de janeiro, com o título 50 anos depois, Amílcar Cabral está esquecido e está na moda, disponível em: https://www.publico.pt/2023/01/14/mundo/noticia/50-anos-amilcar-cabral-esquecido-moda-2035088, com a devida vénia.
Abertura do colóquio e comunicação do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva
Intervenção de Julião Soares Sousa
Intervenção do comandante Pedro Pires
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23975: Agenda cultural (826): Colóquio "Amílcar Cabral e a História do Futuro"... Organização: CES/UC (Projeto CROME Memórias Cruzadas; Políticas do Silêncio). Local: Assembleia da República, Lisboa, 13 e 14 de janeiro de 2023

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18505: Notas de leitura (1056): Colóquio Internacional "Bolama Caminho Longe" (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Na década de 1990, no âmbito de uma iniciativa destinada a revitalizar a cidade de Bolama, realizou-se um colóquio internacional onde houve intervenções de muitíssima boa qualidade, tem todo o cabimento dar-lhes aqui guarida.
Neste texto dá-se voz a um belíssimo trabalho do investigador francês sobre testemunhos de viajantes em torno de Bolama. A ilha sempre fascinou navegadores, comerciantes e aventureiros, convém recordar que os primeiros relatos de ocupação do arquipélago apontam para o período quatrocentista, cresceu depois a importância dos negócios ao longo do rio Grande de Buba, no continente, os Beafadas, que habitavam na zona costeira fizeram frente ao povo Bijagó. Temos descrições sobre os Bijagós com data de 1457, registos cartográficos a partir de 1468 e relatos de André Alvares de Almada e Duarte Pacheco Pereira de grande importância. E o processo de crescimento de Bolama ficou indissociavelmente ligado à região de Quínara e rio Grande de Buba. Pela sua posição geográfica, atraía a navegação marítima estrangeira e daí a aura de grande beleza com que irá ser descrita em documentos nacionais e estrangeiros.

Um abraço do
Mário


À procura da identidade de Bolama: 
Imagens da capital segundo relatos de viajantes europeus (2)

Beja Santos

Na obra dedicada ao colóquio internacional “Bolama Caminho Longe, Bolama entre a generosidade da natureza e a cobiça dos homens”, coordenada por Carlos Cardoso, edição do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Bissau, 1996, há um curioso texto assinado por Jean-Michel Massa, da Universidade da Bretanha, Rennes, França, dedicado às razões porque se escolheu Bolama como capital, em 1879.

O autor intenta proceder a uma reflexão sobre factos convergentes, decisivos, que levaram a que, contra toda a expetativa que existia quanto a duas aglomerações urbanas importantes, Cacheu e Bissau, a escolha recaiu sobre Bolama. Mais do que simbolicamente, esta escolha era interpretada como um corte com o cordão umbilical, depois de vários séculos de uma extensa mas vaga referência aos Rios de Guiné do Cabo Verde surgia a Guiné Portuguesa com uma capital de praticamente de raiz. Bolama não surgiu de repente. Navegadores e viajantes referem o Rio Grande, os Bijagós, a Ilha das Galinhas, a ponta de Bolama no Sul da ilha. E o autor exemplifica com a Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné e de Cabo Verde, de André Donelha, 1625, fala-se da ponta de Bolama que é terra dos Beafares (Beafadas) que está diante do Rio Grande de Guinala e Biguba (Buba) e acrescenta Donelha: “Indo correndo da Ponta da Bolama para ir ao chamado Rio Grande, sendo pequeno, ficando a terra de Bolama já nos Beafares, à nossa mão esquerda”. Lemos Coelho (1669) dirá que Bolama e a Ilha das Galinhas estavam desabitadas. O holandês Olfert Dapper (1668) referirá o Rio Grande mas não fará qualquer referência a Bolama. O senhor de La Courbe na sua primeira viagem à costa de África, 1685, fará referência expressa à ilha de Bolama e tecerá um comentário edénico, falando mesmo de elefantes e da existência de muitas fontes.

Jean-Michel Massa chama a atenção para outros testemunhos, procurando dissociar os viajantes que relatam o que viram e os viajantes que se limitam a dizer o que leram de outros viajantes. Para o investigador é em finais do século XVII, princípios do século XVIII que se irá definir o lugar de Bolama. O relato de Labat, Relação da África Ocidental, 1728, em sete volumes revela que o autor nunca esteve m Bolama mas construiu uma imagem bastante favorável da ilha. Galberry, que escreveu Fragmentos de uma viagem a África, 1802, também não conheceu Bolama, mas não deixa de fazer uma exaltação quase apoteótica às belezas da ilha. Estamos já numa época em que diferentes viajantes franceses incitam os seus compatriotas a instalarem-se no paraíso bolamense.

Monumento aos aviadores italianos falecidos em Bolama, imagem retirada do blogue Cadernos da Libânia, com a devida vénia

Antes de falar de Philip Beaver que irá estabelecer em Bolama, em 1792, uma importante colónia inglesa que redundará num completo fracasso, refere com muitos pormenores Duas Descrições Seiscentistas da Guiné, de Francisco Lemos Coelho, como se segue:
“Não terá mais do que quatro léguas de circuito mas é formosa e tem logo à entrada mui bons portos; a terra é fertilíssima, mui cheia de palmeirais e de árvores fruteiras, mui abundante de madeiras para fazer grandes fábricas de navios; tem um rio que a costa da terra de Guinala o qual tem um boca no Rio Grande, e a outra sai fora de fronte da ilha de Bissau, aqui é que o capitão Cristóvão de Melo foi de parecer que havendo de se mudar a povoação de Cacheu fosse para aqui, sendo forçoso ficar como no meio da Costa da Guiné, a viagem da Serra Leoa fica muito mais perto, a povoação de Geba para o negócio da cola dentro de casa, os Bijagós em frente; sobretudo livre de tantos perigos com tem a barra de Cacheu e serem aqui logo os brancos senhores da terra em que moram e podem fazer logo fazendas e em Cacheu não serem senhores nem da água que bebem; quando Sua Majestade que Deus guarde puser os olhos neste império então se fará o que parecer mais acertado”.

Noutra descrição, Lemos Coelho dar-nos-á uma versão muito semelhante ao que vimos atrás:
“Nesta ilha de Bolama foi de parecer o capitão Cristóvão de Melo (homem muito prático e antigo da Guiné quando se falava em mudar a povoação de Cacheu, que em nenhuma parte convinha que fosse a principal povoação e assistência do capitão-mor senão nesta ilha. Esta ilha fica no meio de toda a Costa da Guiné: a viagem de Serra Leoa mais perto, mais perto a povoação de Geba para o negócio da cola; os Bijagós de frente, a viagem da Costa e Gâmbia a mesma viagem, e menos riscos de baixios; os vizinhos caseiros o melhor gentio, que são os Beafadas”.

Está finalmente esclarecida a escolha de Bolama: a situação geográfica, a abundância da água, a vegetação, a terra fértil. Também o capitão Philip Beaver irá escrever um relato de 500 páginas sobre Bolama e os seus predicados. Como se disse atrás, Beaver irá instalar 275 colonos ingleses, o fracasso foi total. Na sua sequência, começará a disputa entre Inglaterra e Portugal, a Inglaterra irá alegar os direitos adquiridos pelas terras compradas e Portugal irá destacar a antiguidade dos seus direitos na região. A arbitragem do presidente norte-americano Ulysses Grant será favorável a Lisboa. Os oito anos que irão decorrer entre 1871 e 1879 permitirão a organização da infraestrutura administrativa: o distrito de Bolama a par dos distritos de Cacheu e Bissau, será instalada uma comissão municipal e criada uma paróquia. A criação de uma alfândega tornou-se o símbolo da presença colonial. E a cidade cresce. Entretanto, a França estende os seus tentáculos em toda a região de que é hoje o Senegal, iremos perder Ziguinchor.

Imagem da estátua hoje desaparecida do presidente Ulysses Grant, inaugurada em 1955, retirada com a devida vénia do blogue Bolama Minha Terra

Data de 1834 a descrição de Bolama pelo naturalista alemão Richard Greef. Ele desembarcou aqui em 17 de Novembro de 1879 e descreve a ilha luxuriante, as ruas da cidade em fase de pavimentação e pormenoriza informação sobre os insetos. Por essa época surge o Almanaque de Lembranças Luso-brasileiro. Veja-se Gaudêncio da Silva Gonçalves a descrever Bolama:
“Situada na embocadura do Rio Grande, tem um óptimo ancoradouro abrigado pela terra-firme, que lhe fica fronteira. O comércio é ali mantido por quatro ou cinco fortes casas francesas, cujas ramificações se estendem até Bissássema e Cacheu. O solo é feracíssimo de uma vegetação espontânea e maravilhosa e o clima é o mais salubre da Senegâmbia. Pelos esforços do governo da metrópole que, com tanta solicitude procurou promover nestes últimos tempos o engrandecimento das colónias, a Guiné Portuguesa acaba de ser levada à categoria de província ultramarina”.

No termo da sua comunicação, e seguramente olhando à volta a desolação de uma cidade em abandono, Jean-Michel Massa faz a exaltação da Imprensa Nacional, para ele um raio de luz para o renascimento da cidade, um renascimento sobre a égide da cultura.

Em anexo ao seu texto dá à estampa a carta de Claude Trouillet, datada de 26 de Maio de 1882 em que diz que a ilha é um porto natural magnífico, todo o comércio está nas mãos dos franceses, a nação francesa é muito amada aqui a tal ponto que certas tribos dos Bijagós arvoram nas suas pirogas o pavilhão da França. E acrescenta:
“A ilha tem de ponta a ponta 27 ou 28 quilómetros e a sua largura é de 10 a 11. Os rios que servem para o transporte de mercadorias são: Geba, Rio Grande, o Tombali e o Cacine, mais ao Sul, nas possessões francesas, o Compony, os rios Nuno e Pongo. Bolama é sobretudo frequentada pelos Nalus, Bijagós, Papéis, Brames e Fulas”. E descreve depois as riquezas e as potencialidades da colónia portuguesa, dizendo que em Bolama havia um governador com o posto de coronel, alfândega, hospício militar e igreja católica e que na cidade se publicava o Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Cabo Verde. E conclui: “Consideramos que é dever dos franceses fazer tudo o que estiver ao seu alcance para colonizar um país que em breve será cobiçado pelos nossos vizinhos da Europa”.
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Nota do editor

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segunda-feira, 2 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18477: Notas de leitura (1054): Colóquio Internacional "Bolama Caminho Longe" (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Na década de 1990, no âmbito de uma iniciativa destinada a revitalizar a cidade de Bolama, realizou-se um colóquio internacional onde houve intervenções de muitíssima boa qualidade, tem todo o cabimento dar-lhes aqui guarida.
Neste texto refere-se concretamente a folha "Fraternidade", um caso admirável de solidariedade com as vítimas cabo-verdianas a sofrerem uma longa e penosa estiagem; e também a importância dos Gans, porventura o caso mais bem-sucedido de mestiçagem cultural que ocorreu na Guiné entre os séculos XIX e XX.

Um abraço do
Mário


Um importante evento cultural: 
Colóquio Internacional Bolama Caminho Longe

Beja Santos

Aqui funcionou o tribunal de Bolama, capital da Guiné

A publicação sobre o Colóquio Internacional "Bolama Caminho Longe", subintitulado "Bolama entre a generosidade da natureza e a cobiça dos homens" foi dada à estampa pelo INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Guiné-Bissau, em 1996, tendo como coordenador o investigador Carlos Cardoso. É um documento extenso, com grane riqueza e pluralidade de opiniões. Vamo-nos cingir a duas intervenções da segunda parte, intitulada “Bolama e a sua contribuição na formação de uma consciência nacional”.

A primeira intervenção foi assinada por Benjamim Pinto Bull, trata-se de uma releitura da folha “A Fraternidade”, publicada em Bolama em 1883, iniciativa do cónego Marcelino Marques de Barros e Alfredo da Silva, que aparecem como signatários de uma peça dedicada ao eminente linguista português Adolfo Coelho. O que levou a esta publicação?

Havia fome em Cabo Verde e o Cónego tomou a iniciativa de sensibilizar toda a população da Guiné pedindo auxílio para as vítimas, assim apareceu em 31 de Outubro de 1883 esta folha A Fraternidade, Guiné a Cabo Verde. Folha destinada a socorrer as vítimas da estiagem. Tratava-se de uma folha de 4 páginas e a sua tiragem era um verdadeiro recorde para a Guiné, 10 mil exemplares, atenda-se igualmente ao número reduzidíssimo dos funcionários da Imprensa Nacional em Bolama, em 1883. A mensagem principal era a de partilhar a dor do outro.

Tratou-se de um empreendimento a todos os títulos inéditos, nele participaram portugueses e franceses, guineenses e cabo-verdianos, coisa nunca vista seis mulheres escreviam na folha, foi um ajuntamento e tanto: cónego, governador, chefes de serviços e pequenos funcionários, oficiais de alta patente ao lado de sargentos, um agente consular, gerentes de casas comerciais e pequenos comerciantes. E também coisa nunca vista, até não se atendeu muito à hierarquia, o Administrador do Concelho de Buba, Capitão António José Machado, não hesitou em reconhecer no seu depoimento a incapacidade do governo do reino para resolver o conflito entre Fulas e Mandingas.

O impacto material, os socorros financeiros, os agradecimentos são largamente documentados. Uma citação do que veio do Governo-geral da Província de Cabo Verde: “As estreitas relações e laços de amizade que outrora ligavam o distrito da Guiné a Cabo Verde não minguaram nem enfraqueceram com a sua separação. Disso dá uma prova frisante o ato humanitário e generoso dos habitantes da Senegâmbia portuguesa”.

Já demoradamente se falou no nosso blogue de uma das figuras mais prestigiantes da cultura guineense do século XIX, Marcelino Marques de Barros (1844-1929) a quem a Guiné e Portugal não tratam com o devido carinho, dada a monumentalidade da sua obra na evangelização e nas ciências sociais e humanas. Fez parte de comissões importantíssimas, foi o primeiro ensaísta da entidade guineense, poliglota em termos de línguas africanas faladas na Guiné, autor do primeiro dicionário português-crioulo, com 5420 palavras. João Dias Vicente escreveu um trabalho muito apurado subordinado ao título “Subsídios para a bibliografia do sacerdote guineense Marcelino Marques de Barros”.

Investigação igualmente importante é a de Filomena Miranda e intitulada “Grandes famílias luso-africanas guineenses ou Gans do século XIX: o seu papel na integração urbana de autóctones – subsídios para o seu estudo”. Gam é um termo usado no crioulo da Guiné-Bissau para designar a casa de uma determinada família. No século XIX e ainda no início do século XX o termo era usado para se referir às casas das grandes famílias luso africanas das praças na Guiné. Assim, até muito recentemente (anos 1950/1960) ouvia-se dizer Gam Pinto, Gam Martins, Gam Carvalho para se referir às casas de família de Pinto, Martins ou Carvalho (abro parêntesis para dizer que no regulado do Cuor havia e há Gam Gémeos, na orla do Geba Estreito, servia-me do ancoradouro para utilizar o Sintex na época das chuvas). Gam é portanto o termo usado para designar local, sítio onde vive determinada família.

Filomena Miranda analisa as grandes famílias das praças de Cacheu, Bissau e Bolama. Nas praças podiam-se encontrar dois tipos de famílias. Um, que ainda estava em termos culturais e económicos muito ligado às etnias de origem, caso das famílias dos “grumetes”, que viviam um processo de assimilação (o grumete, segundo alguns autores é o meio termo entre o cristão e o gentio). O outro, a grande família luso-africana que vivia no centro das praças, na sua grande maioria mestiços de autóctones com portugueses, cabo-verdianos e outros, apresentavam um acentuado grau de assimilação de valores europeus. A língua utilizada pelos membros da família era o crioulo.

O Gam terá as suas origens nos empreendimentos comerciais que se deram na Costa da Guiné a partir do século XV. Recorde-se a figura dos lançados ou tangomaus. Teixeira da Mota refere-se aos tangomaus como portugueses que viviam na Guiné à margem das leis, coabitando e cruzando-se com os nativos, e que deram origem aos chamados filhos da terra e que se deslocava com grande liberdade entre as populações africanas. As mulheres dos portugueses eram conhecidas por nharas, auxiliavam os seus parceiros nas transações, colaborando como intérpretes de línguas e culturas. O mesmo papel tiveram os seus filhos, chamados “filhos da terra”, os grumetes e os cristãos.

No século XIX, ao longo do Rio Grande de Buba desenvolveram-se feitorias que assentavam a sua economia na produção e exploração da mancarra. Os seus proprietários eram luso-africanos, portugueses e franceses que utilizavam trabalhadores de várias etnias, principalmente os mancanhas. É à luz deste panorama económico que os Gans se organizaram dando resposta ao sistema de exploração. O Gam integrava o páter-famílias, a mulher, os filhos, os “mininos di criaçon” e os empregados. Daí, como sublinha a autora, o importante papel social do Gam. Neste lugar funcionava a escola a que tinham acesso os autóctones na Guiné, convém recordar que as escolas públicas eram escassas e que as primeiras escolas femininas apareceram em 1881. Os Gans foram locais de educação e preparação de crianças guineenses que aos poucos iam fazendo a sua integração no meio urbano. Também deste modo se fermentou a mestiçagem cultural.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18469: Notas de leitura (1053): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (28) (Mário Beja Santos)