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sexta-feira, 19 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25760: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (5): No RI 1, fazendo tempo... "Tinha que ir para a guerra, que remédio!"...


1. Retomar (ou dar a conhecer) alguns dos seus escritos é também uma forma homenagear o  A. Marques Lopes (1944-2024), que em vida foi cor inf DFA, na situação de reforma, alf mil at inf, da CART 1690 (Geba, 1967/1968) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), membro da direção da delegação do Norte da Associação 25 de Abril (A25A) e, em termos históricos, o nosso quarto grão-tabanqueiro mais antigo, depois do fundador, Luís Graça, do Sousa de Castro e do Humberto Reis, tendo  entrado para a nossa tertúlia em 14/5/2005)...

 
Falando dos seus escritos, temos para já a sua página no Facebook e  o seu livro de memórias "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp., editado também no Brasil). Estamos a selecionar algumas das melhoras páginas que ele nos deixou.  No nosso blogue, tem tem cerca de 280 referências.

"Cabra-Cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015) é uma autobiografia,  elaborada com recurso ao artifício literário do "alter ego": o livro foi  escrito sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que por sua vez conta a história do seu amigo e confidente António Aiveca...

 Publicou, nos útimos dois anos,  na  sua página do Facebook, diversos excertos do "Cabra Cega", assumindo cada vez mais,  de maneira explícita e consciente, que o personagem "António Aiveca" era ele próprio, António Marques Lopes.... bem como o psudónimo literário, 
João Gaspar Carrasqueira. De  ascendência alentejana, o A. Marques Lopes   nasceu em Lisboa, na Mouraria, em 1944. Vivia em Matosinhos, onde morreu muito recentemente.

Este excerto do seu livro de memórias, é retirado das pp. 165/169 e 187/178, seguindo a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook (aqui a narrativa era já feita na 1ª pessoa do singular). A cena inicial, a conversa entre os aspirantes Aiveca e Gonçalves (pp. 165/169) passa-se no bar de oficiais do RI 1 (Amadora).


No RI 1, Amadora, fazendo tempo... "Tinha que ir para a guerra, que remédio!"...

por A. Marques Lopes 


Quando acabámos de almoçar fomos para o bar de oficiais. Pedimos cafés.

 Não queres um whisky?  
– perguntou-lhe o Gonçalves. (...)

 Chega-me um café.

Os outros dois enfiaram-se numa mesa a jogar poker de dados. Ele e o Gonçalves foram para umas cadeiras que estavam ao canto da sala.

 Então conta lá como é que te livraste daquela treta dos padres?

 
– Ora, fiz como tu. Um dia disse-lhes que me queria vir embora e vim. Mas, antes, andei mais de dois anos a magicar. Na altura em que estava na Filosofia já as minhas dúvidas tinham começado e avolumaram-se de tal modo que o director me mandou para o colégio do Porto, para pensar disse-me ele, vê lá. Tinha-lhe dito que não tolerava aquele ambiente, que havia lá uma cambada de hipócritas que batiam punhetas debaixo dos lençóis à noite, e que no dia seguinte pareciam anjinhos a rezar na igreja. Até lhe disse que também o fazia, não tive medo, mas ele, em vez de me dizer logo para me ir embora,  ainda fez que me massacrasse durante um ano e meio no Porto.

–  É, pá, mas então tinhas-lhe dito logo que querias sair. Eu não demorei tanto tempo. Foi cerca de um mês, só. Fui ter com ele, disse-lhe que não queria continuar e saí calmamente nesse mesmo dia. Fiquei livre, tirei o sétimo ano e fui depois para a Universidade.

 E não arranjaste um emprego?

 
– Não precisei. Os meus pais apoiaram-me. Até alugaram uma casa para mim em Lisboa. Onde ainda estou, aliás  disse como se fosse a coisa mais natural do mundo e levantou o indicador direito  – ah, eu escrevi-te a dizer onde era, lembras-te?

–  Lembro-me, sim. É na Rua Almirante Barroso, ali para os lados do Chile.

O Gonçalves levou o copo do whisky à boca e eu aproveitou para continuar. Queria dizer-lhe antes que ele falasse novamente. Sentiu o à-vontade dele como uma injustiça.

 Pois é, para ti foi fácil, estou a ver, mas para mim não. Tive de ir viver apertadamente numa casa pequena onde já moravam os meus pais e os meus irmãos. Além disso tive de ir trabalhar para os ajudar, porque eles não têm as possibilidades que os teus, pelos vistos, têm. Foram as perspectivas que eu tinha destas dificuldades que também tiveram influência nas minhas hesitações antes de tomar a decisão de me vir embora. E como é que tu saíste assim tão de repente e nem sequer tiveste de esperar que viesse a dispensa dos votos para assinar? Se calhar os teus pais foram-te buscar ou então tinhas dinheiro, sei lá. Mas eu não, tive de esperar até ao fim e que me pagassem o comboio para Lisboa.

Ele tinha pousado o copo e olhava-o seriamente. Interrompeu-o.

– Espera aí, Aivec, tem calma, deixa-me dizer também. É claro que eu tinha dinheiro, sempre tive dinheiro guardado, estava-me borrifando para aquela treta do voto de pobreza. E a dispensa dos votos era problema deles, que o resolvessem, por mim deixei-me da castidade e da obediência. E quanto ao resto 
 apontou-lhe novamente o indicador  –  não penses que eu não tenho consciência das desigualdades que há, não estou de acordo com isso. E, olha, para te provar, estive metido num movimento contra esta situação toda, e é por isso que estou aqui agora. Fiz o primeiro ano na universidade mas, quando tinha começado o segundo, fui preso durante uma acção de contestação. Mandaram-me logo para a tropa.

 
– Estás a ver? – Aiveca apontou-lhe também o dedo, propositadamente, e sorriu, já estava calmo.   – Mais uma diferença. Tu ainda fizeste o primeiro ano, e vieste para a tropa por protestar. Se não te tivesses metido nisso tinhas acabado o curso, certamente, e só virias depois. Comigo não foi assim. Entrei na universidade em Outubro do ano passado mas em Janeiro deste ano já estava em Mafra. Ainda fui a uma repartição qualquer que há na Rua do Passadiço para pedir o adiamento, mas um gajo de lá perguntou-me em que Universidade eu andava. Quando lhe disse que estava em Letras,  o palerma riu-se. Que não davam adiamento porque não queriam atiradores de caneta, só os de canhota na mão.

 É, sei bem. Interessa-lhes é médicos, para tratar dos feridos, cortar braços e pernas, passar certidões de óbito, ou engenheiros, para construir quartéis, abrigos subterrâneos e aldeias para os pretos. Eu andava em Direito, não sei se lhes interessavam os gajos dali, nem sei se me deixariam acabar o curso, é que, sabes?, só não vão para a guerra os filhos e familiares dos governantes ou dos seus amigos.

Baixou a voz e inclinou-se um pouco para mim.

– E tu, estás disposto a ir para a guerra?

Admirou-se com a pergunta, encolhou os ombros e respondeu-lhe.

 É,  pá, o que é que hei-de fazer? É a vida, não há remédio.

–  Não há remédio,  o caraças. Tens de pensar 
–  e abaixou ainda mais a voz    que nós, sobretudo, é que decidimos da nossa vida.

– 'Tá bem, mas há coisas que são inevitáveis, e esta é uma delas.

 Não é nada, pá, não é nada. Tu podes mudar. Até já mudaste uma vez, não é?

Calou-se quando reparou que os oficiais estavam a abandonar o bar. Levantou-se, o Aiveca  também. Desceram até à parada.

 
– Bem, temos de ir embora ao trabalho. Depois vou para Lisboa, só durmo aqui quando estou de serviço. Não queres vir comigo? 

 
– Não. Estou a pensar ir a casa só aos domingos, para ver os velhotes.

–  Mas vem lá hoje, pá. O Serafim, aquele gajo que estava à minha frente na mesa durante o almoço, vai também. Anda lá, tenho uma ideia para ver contigo, agora não dá, e acho que te vais interessar.

–  Não, não vou. Prefiro dormir aqui do que na casa apertada dos meus pais. Depois falamos nisso.

O Gonçalves pareceu um pouco desiludido. Parou, pôs a mão esquerda no  ombro do Aiveca e estendeu-lhee a direita. Ele ficou  espantado com o gesto mas estendeu-lhe também a mão, instintivamente.

 – 
É pena, Aiveca. Adeus, se não nos virmos. Hás-de ter notícias minhas –  e afastou-se apressadamente.

Aiveca ficou  especado a vê-lo afastar-se. Estava completamente baralhado com o gesto e as palavras dele. Acabou por ir andando em direcção à CCS com um torvelinho de interrogações na cabeça. Aquela do aperto de mão não era normal num local onde todos se viam durante o dia inteiro, tanto mais que a saudação da praxe era bater a pala, mas isso não era entre eles, claro, porque eram da mesma patente. E o se não nos virmos, o adeus, será que já tinha sido mobilizado e ia formar companhia? Era capaz de ser isso, sim, mas podia ter-lhe dito quando estiveram a falar no bar…


Capa do livro 
"Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial",
de João Gaspar Carrasqueira 
(pseudónimo do nosso camarada
 A. Marques Lopes)
(Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp.
ISBN: 978-989-51-3510-3,

Colecção: Bíos, Género: Biografia).


(...) Na segunda-feira levantou-se cedo, era o hábito que ganhara, e já estava pronto quando foi o toque de alvorada. Vagueou calmamente pela parada, observando tudo o que estava à volta dela, lendo os letreiros que estavam nos vários edifícios indicando a que se destinava cada um. Era uma forma de se inteirar de tudo aquilo, aproveitava aquele tempo para isso, pensando ao mesmo tempo o que é que o capitão lhe destinaria para aquele dia. Vi um soldado que se aproximava.

– O meu aspirante é o aspirante Aiveca ?

–  Sou. O que é que há?

–  O nosso capitão Ferreira quer que vá ter com ele ao gabinete.

Porra que o homem madrugara. Mas ainda bem, ia saber o que fazer. Viu logo que estava com má cara.

– Aiveca, você sabe onde está o aspirante Gonçalves?

 – Não sei, meu capitão, ainda não o vi hoje.

 – Que merda!  – estava mesmo lixado.  – Ele hoje está de serviço à companhia e já devia cá estar!

Olhou depois para ele de modo perscrutador:

– Eu vi que vocês os dois estiveram muito tempo a falar lá ao canto no bar de oficiais. Ele disse-lhe que tinha algum problema?

 Não, meu capitão, não me falou de problema nenhum. Disse-me que depois do serviço ia para casa, como habitualmente…

 É,  pá, tanto tempo e foi só disso que falaram?

Tocou-lhe uma campainha na cabeça e ficou alerta.

 Não foi só isso, meu capitão, claro. Fomos colegas na escola e estivemos a lembrar esses tempos.

Nem esteve para lhe dizer que a escola era o seminário. Não pareceu convencido, mas não insistiu.

– Bem, você vai ficar a substituir o aspirante Gonçalves. Daqui a pouco vai tocar para a formatura e eu vou estar lá para me apresentar a companhia.

Foi assim que entrou no vários serviços à CCS do RI 1. Formaturas, ver se os ranchos estavam bem, prevenções, etc.

O Gonçalves nunca mais apareceu e falou-se durante algum tempo no bar de oficiais, e a meia voz, que ele e o Serafim tinham desertado. Mais uma vez tomou uma atitude e decisão rápidas, pensou Aiveca. Deve ter ido para França, era para onde iam muitos, já sabia. Mas teve condições para isso, como quando saiu do seminário, os paizinhos ajudaram-no e vão continuar a ajudá-lo certamente. Mais uma diferença. Se ele, António Aiveca, quisesse fazer isso como é que podia? Só se fosse para os bidonvilles nos arredores de Paris viver miseravelmente como os milhares de imigrantes que lá estão. Continua a haver coisas que só alguns podem fazer. Tinha de ir para a guerra, que remédio. (...)

António Marques Lopes

Página do Facebook do A. Marques Lopes | 19 de janeiro de 2022, 22:00 e livro "Cabra Cega" (2015, pp.  
165/169 e 176/178)


(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos, itálicos, parênteses retos: LG)

_________

Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 
16 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25749: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (4): Depois de Mafra, o RI1, Amadora, como aspirante miliciano, à espera da mobilização para o ultramar

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22253: Estórias avulsas (106): O Aspirante Carvalho e a nossa (in)sanidade mental (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535/BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74)


Angola > Ao centro, o capitão miliciano de infantaria João Manuel de Morais Lamas de Mendonça e Silva, que comandou a CCaç 3535 até à primeira quinzena de janeiro de 1973.  


Foto (e legenda) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Fernando de Sousa Ribeiro [ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 (Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74), do BCAÇ 3880; é licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto; vive no Porto; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande desde 11/11/2018, sentando à nossa sombra do nosso poilão no lugar n.º 780; tem 2 dezenas de referências no blogue.]
 
Date: terça, 1/06/2021 à(s) 18:22
Subject: Mais um texto meu (o último) (*)
 

Caro Luís,

Tenho mais um texto a partilhar contigo, e que poderás publicar no teu blogue se quiseres, relativo a um aspirante que conheci em Angola e que era doente mental. O texto não faz parte do meu livro, porque eu não tenho qualquer intervenção na história. O meu estatuto foi unicamente de observador. Posso, contudo, assegurar-te que os casos narrados no texto se passaram tal como os descrevo, nomeadamente o incidente com a granada de mão. A versão do incidente que o próprio agressor pessoalmente me contou é coincidente, quase palavra por palavra, com a versão que a vítima me tinha contado antes. Garanto, por isso, que o incidente se passou tal como o descrevo. 

Eu não tenho em minha posse qualquer fotografia do aspirante, nem sei onde poderei encontrar uma. Nesta situação, só posso descrever-to, dizendo que ele era um indivíduo relativamente baixo e entroncado e que usava óculos, uns óculos bastante redondos, que apropriadamente lhe davam um aspeto um tanto ou quanto alucinado.

Um abraço

Fernando de Sousa Ribeiro, 
ex-alferes miliciano, 
CCaç. 3535 / BCaç 3880, Angola 1972-74


2. Estórias avulsas > O Aspirane

No meu tempo de tropa, os muitos capitães milicianos que tiveram a responsabilidade de comandar companhias operacionais na guerra colonial eram habitualmente selecionados para esse posto em função da idade. Seguia para capitão, e não apenas para alferes, quem estivesse indicado para vir a ser oficial miliciano com uma especialidade operacional e tivesse uma idade superior a um determinado limite. Não me lembro ao certo de qual era esse limite, mas julgo que devia ser à volta de 23 ou 24 anos. Olhe-se para os jovens que agora têm 23 ou 24 anos, repare-se nas criançolas que quase todos eles ainda são e compare-se com as brutais responsabilidades que foram exigidas aos capitães milicianos na guerra. 

Depois de frequentarem o COM (Curso de Oficiais Milicianos) em Mafra, tal e qual como acontecia com os militares que iriam ser alferes milicianos de Infantaria, os futuros capitães milicianos frequentavam o chamado CCC (Curso de Comandantes de Companhia). 

Eu não estou em condições de descrever em que é que consistia o CCC mas calculo que os futuros capitães teriam que aprender a lidar com as diversas questões relacionadas com o comando de uma companhia, nas quais se incluiam as questões operacionais, administrativas, contabilísticas, logísticas, disciplinares, etc. 

No âmbito do CCC e em jeito de estágio, já com o posto de alferes, os futuros capitães milicianos eram enviados para África por cerca de quatro meses, para que, integrados numa companhia real, pudessem aprender como é que as coisas se faziam na prática. Na minha própria companhia, a Companhia de Caçadores 3535, em Zemba, esteve durante algum tempo um destes alferes, que tinha ido para lá estagiar junto do capitão Lamas da Silva, que era então o comandante da mesma. O próprio Lamas da Silva já tinha tido um estágio deste tipo, antes de se tornar capitão miliciano. O estágio do Lamas deve ter acontecido no ano de 1971 e ocorreu na cidade do Luso (agora chamada Luena), no leste de Angola. 

Quando o Lamas da Silva (Foto n.º 1, acima) chegou ao Luso para o seu estágio, estava lá colocado um aspirante a oficial miliciano que sofria de sérias perturbações mentais. Era o aspirante Carvalho. Nalgumas unidades chamavam-lhe Meireles, mas Carvalho é que era o seu último apelido. Este aspirante, porém, nunca assinava Carvalho com todas as letras; sempre e sistematicamente assinava Carvalho sem V! Até no bilhete de identidade ele tinha assinado Carvalho sem V… 

Enquanto esteve no Luso, este aspirante fez diversas tropelias, algumas inocentes, mas outras perigosas. Por exemplo, uma noite ele foi visto a correr completamente nu pelas ruas da cidade, com a malta atrás dele para o agarrar! 

Este indivíduo mantinha-se no posto de aspirante sem ser promovido a alferes, por causa das asneiras que ia fazendo e das sucessivas punições que estas lhe iam valendo. Ele não tinha um comportamento que lhe permitisse ser promovido. Na verdade, ele nem aspirante deveria ser. A sua doença mental era tal, que ele deveria ter sido isentado de todo o serviço militar e submetido a um tratamento psiquiátrico em condições. Mas não foi isso o que lhe fizeram. Limitaram-se a passá-lo aos auxiliares. 

De vez em quando, ele era enviado para o Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar de Luanda, onde ficava internado. O Serviço de Psiquiatria era uma coisa verdadeiramente tenebrosa. Nem os campos de concentração nazis conseguiam ser piores do que aquilo. O Serviço ficava numas instalações situadas na zona da Samba, longe do centro da cidade. Estas instalações eram constituidas por alguns pavilhões muito próximos uns dos outros e estavam rodeadas por muros altíssimos e coroados de arame farpado. Lá dentro, era impossível estabelecer todo e qualquer contacto com o mundo exterior, a não ser que alguém abrisse o portão, a única ocasião em que os doentes lá internados poderiam ver uma nesga do largo fronteiro às instalações. De resto, o isolamento do mundo para quem estava internado era total. Lá dentro, não se via outra coisa que não fossem muros e paredes, nas quais se roçavam os doentes de olhar perdido, encharcados em drogas. Estar internado em tais condições implicava ficar doido varrido para o resto da vida. 

No entanto, o aspirante Carvalho não se deixava amarfanhar por aquilo e, por mais sedativos que lhe dessem e por mais tratamentos que lhe fizessem, ele conseguia sempre fugir dali para fora. Como fugia só com a roupa que trazia no corpo e sem dinheiro, acabava depois por ser encontrado a dormir na rua... 

O incidente mais grave que o aspirante protagonizou no Luso envolveu o então alferes Lamas da Silva. Por razões que desconheço ou sem razão alguma, o aspirante ganhou um ódio de morte a um certo sargento que estava lá no Luso. Uma noite, depois de jantar, enquanto o resto do pessoal que estava na messe de oficiais ia conversando e bebendo as suas cervejas e os seus whiskies, o aspirante levantou-se de repente e afirmou: 

— Vou matar o filho da puta do sargento Fulano. 

Foi ao seu quarto, saiu de lá com uma G3 nas mãos e dirigiu-se à messe de sargentos. Logo se gerou uma enorme confusão, com o pessoal a procurar demovê-lo dos seus intentos, mas a medo, porque aquele maluco estava armado. No meio da confusão, o Lamas da Silva conseguiu arrancar a arma das mãos dele. 

O incidente parecia ter terminado desta forma, mas não terminou. Quando foi para a cama, o Lamas levou consigo a espingarda do aspirante, colocou-a debaixo do travesseiro e deitou-se. 

A dado momento, o aspirante apareceu à porta do quarto do Lamas com uma granada na mão, dizendo: 

— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada. 

— Não dou — respondeu o Lamas da Silva. 

— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada — repetiu o aspirante.

 — Não dou. 

— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada. 

— Já disse que não dou!... 

O aspirante lançou a granada para dentro do quarto do Lamas da Silva.  Este só teve tempo de saltar para debaixo da cama e proteger-se o melhor possível, antes de a granada explodir. Se a granada fosse defensiva, daquelas que espalham estilhaços de ferro quando rebentam, o Lamas não teria saído dali com vida. 

Mas a granada era ofensiva. Não espalhava estilhaços de ferro, mas tinha um grande poder explosivo. Ao rebentar, a granada destruiu o recheio do quarto e o Lamas da Silva ficou ferido por estilhaços. Foi evacuado e ficou internado no hospital. Mesmo quando, mais tarde, comandou a companhia 3535, o Lamas ainda tinha no corpo alguns estilhaços, que os  médicos não tinham podido tirar-lhe. Ele valeu-se disso para conseguir sair definitivamente de Zemba e abandonar o comando da companhia. 

Um dia, quando o capitão Lamas da Silva ainda estava em Zemba, quem foi que desembarcou lá, chegado numa coluna vinda de Santa Eulália, a fim de cumprir uma pena de prisão de um mês? O aspirante Carvalho! 

Quando o viu, o Lamas da Silva ficou branco como a cal da parede. 

— Tu aqui?... — balbuciou o Lamas, espantado. 

— É a vida! — respondeu o aspirante, encolhendo os ombros. 

E nunca mais se falaram. Mais do que isso, até. Não só não se falaram, como nem sequer se cruzaram mais. Se o Lamas da Silva ia para um lado, o aspirante ia para outro e vice-versa. O aspirante tinha ido para Zemba cumprir uma pena de um mês de prisão por causa de um incidente que ele tinha provocado em Santa Eulália, onde estivera colocado ultimamente. 

Uma noite, encontrando-se ele de serviço como oficial de dia ao Comando de Agrupamento 3952, a que então pertencia, o aspirante abandonou o seu posto e foi para a sanzala, onde andou aos tiros com a pistola de serviço. Felizmente não acertou em ninguém. O coronel de Infantaria Carlos Lacerda, que com o posto de major foi segundo-comandante do Batalhão de Caçadores 3880. Como não podia deixar de ser, quando chegou a Zemba, o aspirante foi apresentar-se ao comandante da unidade, que naquele momento era o major Carlos Lacerda, porque o tenente-coronel estava de férias. O major, ao observar os papéis que o aspirante tinha trazido, comentou: 

— Você tem aqui um currículo impressionante! São porradas e mais porradas... E agora vem aqui cumprir mais um mês de prisão... Pois olhe, a única prisão que temos aqui em Zemba é uma coisa que há ali num torreão. Mas aquilo não tem condições nenhumas, não é prisão nem é nada. Este quartel aqui em Zemba é que é todo ele uma prisão, isso sim! Isto é um autêntico campo de concentração. Até eu, que não cometi crime nenhum, estou aqui preso. Se eu quiser sair daqui, só posso ir com uma escolta. Portanto, considere-se preso e ande por aí... Mas veja lá como é que se comporta! Ao mais pequeno incidente, eu abato-o, ouviu? Abato-o! 

— O meu major abate-me?! — admirou-se o aspirante. 

— Abato-o, já disse! 

— Ó meu major, se isto aqui em Zemba é assim à Texas, então o melhor é irmos os dois ali para o meio da parada, para ver quem é que dispara primeiro... 

— O quê? Você não se assustou com o que eu lhe disse? — perguntou o major, surpreendido com a reação do aspirante. 

— Eu não — respondeu este. 

— Não teve medo? A sério? 

— A sério. 

— Eh, pá! — exclamou o major. — Você é dos meus! É de gajos assim que eu gosto! Gajos de tomates, sem medo... Acho que nos vamos dar bem. Venha daí beber um whisky. 

E assim nasceu uma grande amizade entre o major Lacerda e o aspirante Carvalho. Como poderão confirmar todos quantos estiveram em Zemba nessa altura, o aspirante nunca causou qualquer problema, fosse de que ordem fosse, enquanto lá esteve. Quem o visse em Zemba, diria que ele era um indivíduo perfeitamente normal, alegre e bem disposto e que se dava bem com toda a gente (menos com o Lamas, claro). Fartou-se de jogar matraquilhos com a malta. 

— Aqui em Zemba é que me sinto bem — confessou ele uma vez. — Sinto-me tão bem, que até já deixei de tomar os medicamentos para a cachimónia. Não sinto falta nenhuma deles. 

Quando terminou a pena de prisão, o aspirante, em vez de voltar para Santa Eulália, foi transferido para o Batalhão de Artilharia 3860, sediado na Damba, a cerca de 100 km a sul de Maquela do Zombo. Foi a sorte dele, e já vamos ver porquê. Na Damba, as condições mentais do aspirante voltaram a deteriorar-se. Os incidentes que ele provocava eram cada mais frequentes e cada vez mais graves. O comandante do batalhão da Damba já estava pelos cabelos, já não podia aturá-lo mais. O aspirante arriscava-se a apanhar mais uma punição de um momento para o outro. 

Um dia, chegou à Damba a notícia de que tinha mudado para Maquela do Zombo um tal Batalhão de Caçadores 3880... Logo o aspirante pediu licença ao comandante para integrar a próxima coluna que se deslocasse a Maquela, para fazer uma visita ao seu amigalhaço Lacerda. Talvez para se ver livre dele por umas horas, o comandante deu-lhe autorização e o aspirante lá foi. Quando voltou à Damba, o aspirante vinha mais bem disposto e passou a comportar-se melhor. A visita ao major Lacerda tinha-lhe feito bem. 

Então o comandante da Damba passou a ter o seguinte procedimento para com o aspirante: sempre que este começasse a fazer muitas asneiras, era metido numa viatura e levado para Maquela. Mais tarde, quando ficasse mais calmo, voltava para a Damba. 

E assim se passaram alguns meses, sem que o aspirante voltasse a sofrer qualquer punição. Por volta de janeiro de 1974, o batalhão da Damba chegou ao fim da sua comissão militar e o aspirante Carvalho (ou Meireles, como era chamado na Damba) regressou finalmente à Metrópole, juntamente com o batalhão. 

Ao todo, o aspirante fez cerca de quatro anos de comissão. E nunca foi promovido a alferes; ficou aspirante até ao fim. (**)

 [Tíitulo do poste,  da resposnsabilidade do editor: LG ]
____________

Notas do editor:

sexta-feira, 28 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (II): tirem-me daqui!



João Tunes, ontem e hoje: na Guiné, foi Alf Mil trms (primeiro, na CCS do BCAÇ 2884, Pelundo,1969/70; e depois, na CCS de outro Batalhão, Catió, 1970/71). Engenheiro - químico, escreve diariamente, com lucidez, paixão e talento, contra a corrente do(s) tempo(s), no seu blogue Água Lisa (já vão vai na versão 6).


Fonte: Bota Acima, blogue de João Tunes, 7 de Abril de 2004

I - TIREM-ME DAQUI !

Os civis fardados à força que tinham habilitações consideradas suficientes, eram militarizados como soldados cadetes durante seis meses e o seu aproveitamento era coroado com o título (modesto) de Aspirante a Oficial Miliciano.

Esta patente, uma espécie de grau de estagiário em oficialato, durava até chegar a ordem de envio para África. Quando a guia de marcha era recebida, era-se automaticamente promovido a Alferes Miliciano. Todas as regras têm excepções. O Barros foi despachado para a Guiné como Aspirante. Ficou famoso por ser a excepção à regra e porque era meio xoné. Em rigor, perto dos quatro quintos xoné. Licenciado em Filosofia, o Barros era incapaz de se adaptar às regras da vida militar. A instituição castrense bem tentou fazer dele um homem de armas mas o sujeito era relapso à farda, aos procedimentos, à ordem unida e ao espírito guerreiro.

Quando cadete em Mafra, o Barros era sempre o último a chegar à formatura e, quando chegava, os atavios estavam sempre mal amanhados e quantas vezes a Mauser ao ombro vinha com o cano a apontar para o chão... Porque, o que o Barros gostava mesmo era de discutir Sócrates e Platão. A instituição teve de resolver o problema do Barros. Nada fácil. Deve mesmo ter sido caso para reunião de generais reumáticos no Estado Maior General ou coisa parecida. A guerra aquecia e as frentes de combate não paravam de aumentar. Era precisa mais gente, cada vez mais gente, para conter a guerrilha. Começava a haver escassez no recrutamento. A procura de mancebos ultrapassava a oferta. A decisão foi sábia: o Barros ia mesmo para a guerra (mas para a Guiné, porque ele só merecia o pior) mas não era promovido a alferes. Seria Aspirante para sempre. Logo ele, que o que mais aspirava era voltar aos livros e às discussões filosóficas, coisas bem alheias aos trabalhos da guerra.

Na Guiné, andou de quartel em quartel, acumulando punição atrás de punição. O Aspirante Barros não servia, cada vez servia menos, pois a cachimónia cada vez ia trabalhando pior. Como era um perigo nas operações, ia sendo dispensado de sair para o mato, acumulando detenções sobre detenções até o Comandante pedir a Bissau a sua substituição. Então, o Aspirante Barros enchia o saco do fardamento com os seus livros e rumava a outro quartel. Até que a cena se repetia. E repetiu-se muitas vezes.

Uma vez, o General Spínola visitou um quartel onde estava o Aspirante Barros e quis conhecê-lo. O Barros apareceu mal amanhado e com olhar ausente. Spínola disparou a censura:
- Você não tem vergonha de ser o único Aspirante na Guiné?

O Barros concentrou-se, olhou Spínola de frente e disse mansamente:
- Estamos em igualdade, o senhor, que eu saiba, é o único General na Guiné.

Puseram o Barros numa prisão em Bissau por ter insultado o General. O Barros, então, deixou de ler. Podia ler, quem já pouco olhava? O Tenente Coronel Melo, comandante do Batalhão no quartel de Catió, era um oficial com pretensões intelectuais (por onde passava, estudava os costumes étnicos e ia escrevendo livros sobre os usos e costumes das tribos africanas). Era opositor ao regime e não gramava o Spínola, embora fizesse a guerra com todo o profissionalismo. Era também um católico devoto. Em resumo, o Tenente Coronel Melo era um católico progressista, gostava de armas e de paradas, não gramava o fascismo e tinha bom coração. Sabendo da história do Barros, o Tenente Coronel condoeu-se e pediu para o colocarem no seu Batalhão. E o Aspirante Barros lá veio com o seu saco (agora vazio de livros) parar a Catió. E passou a ser meu companheiro de quarto. Companheiro silencioso. O Barros quando chegou a Catió também já tinha deixado de falar.O Barros foi dispensado de serviços e passava os dias deitado na cama. Dispensado de todos os serviços, não. Para lhe dar algum sentido de utilidade militar, o Barros entrava na escala de oficial de dia ao quartel com a missão única de presidir ao içar e ao arriar da bandeira (havia outro oficial que fazia o serviço restante).

O Barros cumpria a sua única tarefa militar segundo um ritual tacitamente assumido por todo o quartel. O sargento de dia perfilava a tropa, dirigia-se à janela do quarto do Barros e berrava enquanto fazia a continência da praxe:
- Meu Aspirante, apresenta-se a guarda de dia.

O Barros, ouvindo o berro do sargento, levantava-se em cuecas, assomava à janela, e naqueles preparos, imitava uma espécie de continência. Então, o sargento de dia mandava içar ou arrear a bandeira portuguesa e o Barros voltava à solidão do seu silêncio.A partir de certa altura, o Barros passou a instalar-se, durante o dia, no bar dos oficiais, bebendo copos atrás de copos. Tinha, como companhia, o Tenente Coronel Melo que preferia escrever os seus livros e fazer os seus despachos ali, no silêncio diurno do bar enquanto o resto dos militares cumpriam as suas rotinas de serviço. O Tenente Coronel escrevia, pensava, escrevia. Barros bebia em silêncio.

De tempos a tempos, o Barros arremessava o copo contra a parede e gritava:
- TIREM-ME DAQUI! 

O Tenente Coronel comentava,  paciente:
- Calma, nosso Aspirante.

E o Barros acalmava até novo arremesso, novo grito e novo apelo à calma por parte do Comandante.

E a cena ia-se repetindo ao longo do dia e dos dias, num ritual assumido pelos dois oficiais e respeitado por toda a tropa sem dar lugar a galhofa. A única consequência negativa destas cenas era a redução assustadora no stock de copos no bar de oficiais. Mas, isso não era problema sem solução: na guerra, para beber é preciso copo?

Era habitual que, a meio da noite, o Nino Vieira se lembrasse de mandar os seus rapazes mandar-nos morteiradas para dentro do quartel. Ao primeiro rebentamento, havia que agarrar a G3, nossa companheira inseparável, e correr para irmos cumprir funções defensivas e contra-ofensivas. Para que o Nino não se ficasse a rir de nós. O Barros não se mexia. Limitava-se a abrir os olhos e fixá-los no tecto. Imóvel. O Aspirante Barros já tinha deixado de aspirar a sobreviver.O Barros esteve duas semanas em Catió, sem castigos que avermelhassem mais a sua caderneta disciplinar.

Um dia, o Tenente Coronel Melo apareceu sorridente. Tinha conseguido (com a ajuda do médico do Batalhão) uma consulta de psiquiatria para o Barros com vista à sua evacuação da Guiné. O Barros não acabou o tempo da sua comissão na guerra da Guiné. Foi libertado para a vida civil como Aspirante a Oficial Miliciano.

Não voltei a ver o Barros. Mas, volta e meio, o Barros entra-me pela memória dentro. E então, a raiva, ai a raiva, a raiva aos que alimentam guerras, faz-me um nó na boca do estômago. Não sei sequer se está vivo, onde está e o que faz o meu antigo camarada e companheiro de quarto. Espero bem que não ande a passear, sem olhar, sem falar, sem ler e a gritar TIREM-ME DAQUI!, ouvindo os palermas saudosistas do Império a clamarem contra o crime da descolonização e caçarem votos aos ex-combatentes. Porque esses merdosos não valem um caracol ao pé do Barros. Desejo sinceramente que o Barros esteja recuperado e a discutir Sócrates e Platão. Algures. Em paz.
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Nota de L.G.: