1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Agosto de 2023:
Queridos amigos,
Ignorava completamente a pintura e o desenho do jovem Querubim Lapa (1925-2016), rendi-me sempre à sua cerâmica azulejar e ainda hoje entro na pastelaria mexicana para me prantar em devoção perante o seu trabalho, aliás um dos seus ícones. A exposição patente no Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira deixou-se de boca aberta. Primeiro pelo trabalho museográfico e museológico, de primeira água. O catálogo é de referência e até a brochura de distribuição gratuita é uma bela síntese de toda a atividade deste escultor, ceramista, pintor e desenhador. É uma viagem por uma poética neorrealista, Querubim foi um exímio observador e praticamente do realismo social, encontramos as suas filiações no realismo oitocentista, como mais adiante ele se sentirá atraído pela temática da arte antiga e até do expressionismo alemão.
Nesta primeira viagem vamos sentir o pulsar desse jovem observador e as suas preocupações transpostas numa fineza lírica bem singular. Como escreve David Santos, "Querubim Lapa concilia no seu exercício de consciente situação histórica uma mais subtil relação com o ambiente reivindicativo do realismo social, voluntariamente adotado desde os desenhos iniciais. Essa era uma opção que o situava, sob o ponto de vista discursivo, na esfera desse encontro entre o passado clássico e o presente moderno, desapossando em parte o discurso neorrealista da sua normativa mais comum nos anos 1940 e 1950, ligada à exposição e urgência de uma mensagem de denúncia social, para instaurar um compromisso com formas e espectros cromáticos de promessa lírica intemporal". Estou absolutamente convicto que ninguém se sentirá defraudado diante de tão ambiciosa exposição que revelará a muita gente o outro Querubim.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (130):
Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (1)
Mário Beja Santos
É uma exposição surpreendente, o nome Querubim Lapa (1925-2016) associa-se instantaneamente a notabilíssimos trabalhos de cerâmica azulejar, de que ele foi um artista de referência, está agora patente no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, uma exposição que tem o propósito de dar a conhecer a sua atividade quando ele aderiu a um cânone que marcou uma geração. São cerca de duas centenas de trabalhos entre as décadas de 1940 e 1960. Querubim começou por desenhos de pequeno formado que realizou entre 1945 e 1948, profundamente inspirados no realismo de observação social, vamos ver mendigos, feirantes, vendedeiras, cenas de circo, tudo marcado pelo realismo. Ele tinha uma grande vontade de participar na transformação social do país. O visitante tem à sua disposição uma bem fundamentada brochura gratuita e um catálogo de referência, pela sua elevada qualidade.
Respigo da brochura a leitura que o historiador de arte David Santos faz:
“No imediato Pós-Guerra, os objetivos reclamados pelo neorrealismo constituíam uma alternativa para a maioria dos artistas portugueses da terceira geração modernista, aqueles (como Querubim Lapa, nascido em 1925) que em 1945 frequentavam ativamente as escolas de belas-artes, pressentindo no fim do conflito mundial a esperança e a oportunidade de uma mudança política no nosso país.
Apesar do status quo desfavorável assente nos condicionalismos políticos impostos pelo Estado Novo, Querubim Lapa integra com empenho e consciência o movimento neorrealista português, ao desenvolver um trabalho que atinge a sua plenitude entre 1948 e 1951, firmando um processo estético muito particular, marcado pela conciliação entre valores sociais e a sua extraordinária expressão lírica.
Sobre a importância do período neorrealista no seu percurso artístico, Querubim Lapa dirá muitos anos mais tarde: ‘Logo a seguir à guerra vivi intensamente o período neorrealista; participei em imensas exposições e os meus quadros eram, nessa fase, a expressão de uma experiência coletiva, muito rica sobre certos aspetos. Nessa época, a literatura, o teatro, o romance, a pintura, tentavam fazer o retrato de uma sociedade que urgia modificar. Não fomos ouvidos, calaram-nos a voz, mas o movimento neorrealista ficou como um dos períodos mais fecundos da arte portuguesa’.
Fundado no genuíno envolvimento de uma geração que teve de sobreviver ao Estado Novo, a um exercício quotidiano privado de liberdade política e de muitos outros aspetos da modernidade, o neorrealismo representou para quem o viveu um momento inesquecível de comunhão de valores em torno da transformação artística e social de um país. Por isso, num contexto criativo de vozes multidimensionais, o contributo de Querubim Lapa representa um dos mais singulares projetos de criatividade pictórica no Pós-Guerra.”
O visitante encontrará esta exposição em dois andares deste belo edifício concebido por Alcino Soutinho uma exposição onde estão representados os seus primeiros trabalhos, dar-se-á relevo à sua singularidade na poética social, a articulação entre o neorrealismo e outras experiências e, como é timbre de todos os movimentos artísticos, o que fica de memória e da sua transmissão nas correntes das artes plásticas que se seguem.
Tive a ventura de ir assistir a uma visita guiada pelo curador David Santos, um comunicador de primeira água e procuro hoje e nas semanas seguintes dar-vos conta de como esta exposição surpreendente é também uma janela sobre um tempo, uma homenagem a alguém que foi muito mais do que um grande ceramista escultor, isto na correnteza de movimentos artísticos do passado que Querubim conhecia e que pôde reelaborar na sua singularíssima pintura e desenho. A visita à exposição vai começar, oiço e interpreto à minha maneira.
Imagem da inauguração da exposição Querubim Lapa, uma poética neorrealista
Querubim Lapa no trabalho que lhe deu notoriedade: a cerâmica azulejar, começou na Fábrica Viúva Lamego
Querubim Lapa na maturidade, junto de um dos seus trabalhos icónicos
Registo de gente humilde
As mulheres, as fainas, as crianças, um olhar desnudado e poético sobre a gente pobre
O circo será um tema atrativo dos artistas neorrealistas, é a magia e o sonho que fazem esquecer as durezas da vida
Os autorretratos, um certo olhar de viés como se estivesse a advertir que não lhe escapamos ao registo, um dia haverá essa oportunidade, era este um dos cânones do autorretrato do realismo social europeu
É um tema clássico, a espera do barco, mas num registo indeclinável de rutura com o tardo-naturalismo, nada de arrebiques na perspetiva entre a mulher, a criança e o barco, e temos em ênfase de desmesura de mãos e pés, a criança esquálida, as ameaças vêm do céu plúmbeo.
Para mim, um devoto incondicional da sua cerâmica azulejar, os motivos de tarefa destas mulheres já me parecem ir na aproximação do que será o seu trabalho de síntese, baseado na sua formação de escultor, de desenhador/pintor e ceramista, cores profundamente chamativas, este quadro de duas mulheres em conversa onde pode haver, ou não, a transmissão de segredos, tem uma organização notável, torna-se imponente com rodilha e canastra a obrigar-nos a especular sobre os motivos da conversa.
O historiador de arte David Santos analisa num dos textos do catálogo de referência dedicado à exposição as reminiscências de uma arte clássica, de posturas que lembram a ordenação pictórico e escultórica de períodos do mundo antigo, iremos encontrar outros artistas noutras partes do mundo que buscarão figurações e poses que aqui encontramos nestas três mulheres, ocorre-me, na disposição espacial desta mulher à direita a escultura de Henry Moore.
O artista evolui, mas não descura a essência do realismo social, à esquerda temos algo como o desespero e alguém que procura dar consolo, mantém-se o exagero em mãos e pés disformes, à direita é uma atmosfera de intimidade, alguém lê uma carta, alguém segue atentamente a leitura, confrontados os dois quadros veja-se a mestria no tratamento dos verdes, na habilidosa organização espacial e na luminosidade de ambos os quadros.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24862: Os nossos seres, saberes e lazeres (601): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (129): O Convento dos Capuchos (ou da Cortiça) que começou por ser o Convento de Santa Cruz da Serra de Sintra (2) (Mário Beja Santos)