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segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23544: Notas de leitura (1477): "A Guerra de Bissau, 7 de Junho de 98", por Samba Bari, um guineense diplomado em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada; Sinapis Editores, 2018 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É meritória a iniciativa de Samba Bari, coligindo e tratando de notícias que ele guardou, vivia no estrangeiro quando eclodiu o conflito político-militar. Claro que a bibliografia do conflito é hoje apreciável, mas é sempre estimulante acolher novos olhares. Pode haver poucas novidades, mas toda esta reportagem tem um fundo de melancolia, um anúncio de desaire, era inevitável que toda aquela destruição, o reacender de ódios entre velhos camaradas iria forçosamente apresentar uma dolorosa fatura que se chama de trauma. E não houve uma personalidade política capaz de conclamar a reconciliação e o andar para a frente, dentro de um estado de sincero perdão. Samba Bari fez bem em também socorrer-se da história oral, atenda-se ao depoimento que colheu a Hélder Vaz, hoje embaixador da Guiné-Bissau em Portugal, pleno de patriotismo e apegado ao bom relacionamento luso-guineense.

Um abraço do
Mário



Um guineense usa a reportagem para contar o conflito político-militar de 1998-99 (1)

Beja Santos

A obra intitula-se "A Guerra de Bissau, 7 de Junho de 98", o seu autor é Samba Bari, um guineense diplomado em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada que vive em Manchester, Sinapis Editores, 2018. Trata-se de mais um contributo sobre o conflito político-militar que devastou a Guiné-Bissau por cerca de onze meses. Sobre este conflito, Samba Bari entendeu socorrer-se dos órgãos de comunicação social, e baseado em todo este acervo noticiarista escreve um livro que é uma autêntica reportagem. Para o leitor interessado, lembramos que há obras literárias sobre o conflito, caso do esplêndido relato "Comandante Hussi", por Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira, Clube do Autor, 2011, Jardim Botânico, um romance de Luís Naves, Quetzal Editores, 2011 e vários relatos como "Bissau em chamas", de Alexandre Reis Rodrigues e Américo Silva Santos, Casa das Letras, Lisboa, 2007, "Crónica dos (des)Feitos da Guiné", por Francisco Henriques da Silva, Almedina, 2012, o "Conflito Político-militar na Guiné Bissau", por Guilherme Rodrigues Zeferino, IPAD, 2003, "Guiné – 24 anos de Independência, 1974-1988", por José Zamora Induta, Hugin Editores, 2001 e o estudo científico "Colapso e Reconstrução Política na Guiné-Bissau (1998-2000)", Lars Rudebeck, Uppsala, 2011 (versão portuguesa), isto para não esquecer "História(s) da Guiné-Bissau", de que sou autor, Edições Húmus, 2016.

O pretexto da reportagem tem a ver com o facto de Samba Bari ter vivido no estrangeiro esta guerra de pendor fratricida, pegou nos textos dos jornais guardados, recorreu à história oral e dá-nos o seu ponto de vista, sem alardes. Até 7 de junho de 1998, a Guiné-Bissau podia orgulhar-se, a despeito de se poder considerar ter um regime despótico, não ter sofrido de uma guerra devastadora, tudo ficara circunscrito, em 1980, a um golpe de Estado que afastou um conjunto de cabo-verdianos da cúspide do PAIGC, acontecimento que conduziu à separação da Guiné de Cabo Verde. O que começou em 7 de junho terminou em 7 de maio do ano seguinte, quando a Junta Militar, dirigida por Ansumane Mané chegou a Bissau e Nino Vieira, após se ter refugiado na embaixada portuguesa, partiu para o exílio. Conflito devastador do princípio ao fim, na derradeira batalha viam-se dezenas de corpos caídos por terra enquanto o palácio presidencial foi saqueado e incendiado. A violência não acabou nesse dia, Ansumane Mané terá sido executado em novembro de 2000, a cerca de trinta quilómetros de Bissau, outros elementos da Junta irão ser mortos, posteriormente.

Samba Bari elenca algumas das causas remotas e próximas que conduziram a um conflito que teve caraterísticas muito especiais: iniciados os tiroteios que marcaram a revolta, consciente de que à volta de Ansumane Mané estava a nata de todos aqueles que tinham lutado pela independência, Nino Vieira pediu apoio internacional ao Senegal e à Guiné-Conacri, jamais terá pensado que o armamento destes países e os respetivos militares irão personificar a sua derrota. O presidente, outrora carismático, ficou circunscrito a Bissau; a Junta Militar só lhe deixou saída para o mar e as principais estradas foram bloqueadas e o aeroporto tomado. Em poucos dias a capital esvaziou-se, o corpo diplomático fugiu, com exceção do embaixador português, os tiroteios iam destruindo infraestruturas, os hospitais não escaparam.

Samba Bari procura dar-nos o retrato do ditador, do seu círculo de fiéis, da ganância dos seus negócios, dos seus ódios de estimação, do trauma que provocou quando mandou executar Paulo Correia, 1.º Vice-Presidente do Conselho de Estado, Viriato Pã, Procurador-Geral da República, à frente de um rol de mais 44 acusados. A política externa de Nino era completamente errática, umas vezes do lado da China Popular, outras da Formosa, umas vezes com Israel e a Indonésia, o que criava mal-estar no seio da Organização da Unidade Africana e Portugal, no caso da Indonésia era inaceitável este estreitamento de relações quando Timor estava ocupado. Ao longo dos últimos anos o relacionamento com a chefia das Forças Armadas deteriorara-se. A causa próxima tinha a ver com o tráfico de armas para o Casamansa, uma região em permanente conflito com Dacar, um conflito étnico aparentemente insolúvel. Nino acusava Ansumane de ser o responsável pela venda clandestina de armas aos revoltosos, Ansumane dizia literalmente o oposto. E não havia grandes dúvidas de que nas primeiras eleições democráticas de 1994 a vitória de Nino sobre o seu adversário Kumba Yalá estava envolta de bastante batota. Ao destituir Ansumane Mané do cargo de Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, Nino incendiou as Forças Armadas. No início desse dia 7 de junho, a casa do brigadeiro Ansumane Mané foi atacada a tiro, o brigadeiro Bric-Brac (seu nome de guerra) não estava lá, tinha ido convocar os seus fiéis homens de armas. Horas depois três fiéis de Nino caíram numa emboscada na estrada que liga o aeroporto ao centro da capital. Começaram os tiroteios, Nino desistiu de uma viagem ao estrangeiro, barricou-se no Palácio Presidencial.

O descontentamento nas Forças Armadas não podia ser maior, com salários em atraso, tinha havido o abandono das fileiras de centenas de militares, Ansumane foi à procura dos mais resistentes e operacionais. No interior, a população militar era flutuante. Por exemplo, o quartel de Gabú, poucos dias antes da guerra, tinha apenas um militar e o de Bafatá três. A Junta Militar recrutou todos os descontentes, muitos deles esperavam uma oportunidade para obterem o estatuto semelhante aos designados “Combatentes da Liberdade da Pátria”, que eram todos aqueles que tinham combatido o colonialismo português.

Samba Bari recorda o procedimento de António Guterres, da CPLP, do Comandante Hélder Costa, do “Ponta de Sagres”, que correndo os maiores riscos atracou no cais de Bissau para recolher os fugitivos; o comportamento do embaixador português que se recusou a partir e que se revelará um destacado chefe de missão, tentando que as conversações diplomáticas chegassem a bom porto; a tentativa da Gâmbia para um cessar-fogo, que falhou; uma entrevista a Hélder Vaz, então presidente do grupo parlamentar do Movimento Bâ-fata (e hoje embaixador da Guiné-Bissau em Portugal) sobre as razões da crise; o estado calamitoso das multidões em fuga, a criação de fundos humanitários, a propaganda de um lado e do outro, a tentativa do bispo de Bissau, D. Artur Septímio Ferrazzeta, que tentou improficuamente o diálogo entre as partes; a raiva que se ia apoderando dos revoltosos com a duplicidade da política francesa; a tentativa de mediação da CPLP que conduziu ao memorando de entendimento que foi rubricado em 23 de julho de 1998 a bordo da Fragata “Corte Real” e a desilusão posterior; e a oposição guineense a querer ver os senegaleses fora da Guiné. Entretanto, prosseguiram outras conversações, há a esperança de se ter chegado a um cessar-fogo. Esperança de pouca dura.

(continua)

Tanque abandonado, imagem da guerra civil de 1998-99
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23539: Notas de leitura (1476): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (2) (Mário Beja Santos)